Até mesmo bebês e crianças muito pequenas, menores de três anos, podem sofrer com a chamada covid longa, condição que se caracteriza pela persistência de sintomas por pelo menos dois meses após o diagnóstico de covid-19 e ainda é objeto de investigação científica. O período mínimo de 60 dias é utilizado como referência pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e também foi parâmetro em um grande estudo populacional conduzido na Dinamarca, publicado no último dia 22 no periódico científico The Lancet — Child & Adolescent Health. Trata-se de uma das primeiras e mais amplas pesquisas sobre o tema.
O levantamento, conduzido por pesquisadores do Hospital Universitário Rigshospitalet, de Copenhague, baseou-se nas respostas a um questionário fornecidas por cerca de 44 mil mães de pacientes, número que incluiu infectados (11 mil) e também o grupo de controle (33 mil sem histórico da infecção). Em três faixas etárias, os autores elencaram as queixas mais comuns que perduraram após a doença, a partir de uma lista com 23 sintomas.
São desconfortos recorrentes em crianças — em consequência de enfermidades variadas —, não só nas que passaram pela infecção pelo coronavírus, mas chamou a atenção a maior prevalência deles na parcela que havia tido a doença. Isso sinaliza que a covid longa também afeta a parcela da população que, nas fases iniciais da pandemia, acreditava-se estar a salvo de contaminação ou de quadros mais graves.
— Ainda que o risco de crianças desenvolverem covid longa seja pequeno, o problema deve ser reconhecido e tratado seriamente — disse a professora e coautora do estudo Selina Kikkenborg Berg em comunicado à imprensa.
São poucas as investigações científicas já disponíveis sobre o impacto da covid longa nesse público, que passou a receber as vacinas por último e tem ainda um grande número de menores de cinco anos sem acesso aos imunizantes, como é o caso do Brasil e da imensa maioria dos países. No dia 21 de junho, os Estados Unidos começaram a aplicar as primeiras doses em bebês a partir de seis meses.
Conforme o estudo dinamarquês, os sintomas mais comuns variaram de acordo com a idade. Na faixa de zero a três anos, foram alterações de humor, irritações na pele, dor de estômago, tosse e perda de apetite. De quatro a 11 anos, destacaram-se alterações de humor, problemas de memória e concentração e irritações na pele. No recorte de 12 a 14 anos, preponderaram fadiga, alterações de humor e dificuldades de memorização e concentração.
Qualidade de vida
O objetivo da pesquisa, segundo Selina, era determinar a prevalência de sintomas duradouros em crianças e bebês, avaliando também a qualidade de vida. De acordo com os resultados, embora crianças com diagnóstico positivo para covid-19 sejam mais propensas a apresentar sintomas persistentes em relação àquelas do grupo que não tem histórico da enfermidade, a pandemia afetou todas as esferas cotidianas.
Em geral, os casos positivos para covid-19 reportaram menos problemas nas áreas psicológica e social. Entre pré-adolescentes e adolescentes (12 a 14 anos) do grupo com covid, os voluntários tiveram menos medo, problemas de sono e preocupação quanto ao que poderia acontecer com eles. Uma explicação possível para isso é que, nessa faixa etária, o entendimento sobre a pandemia é mais amplo. Quem enfrentou a doença acabou por conhecer, por experiência própria, do que se tratava, enquanto os não infectados continuavam temendo algo desconhecido e restringindo atividades na tentativa de evitar o vírus.
Com o passar do tempo, diminuem as possibilidades de realizar comparações desse tipo, uma vez que mais e mais crianças acabam testando positivo. Selina reforça a importância de se entender melhor a covid longa para que especialistas possam aprimorar os diagnósticos. Decisões de autoridades a respeito de isolamento, intervenções não farmacológicas (como uso de máscaras) e estratégias de vacinação também podem ser melhor definidas a partir desses achados.
Tosse dificulta diagnósticos infantis
Chefe da Unidade de Internação Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Guilherme Guaragna Filho ressalta a tradição de bons estudos populacionais conduzidos na Dinamarca e indica, na prática, que resultados do trabalho publicado no periódico The Lancet — Child & Adolescent Health, no final de junho, refletem o que se vê no dia a dia de atendimentos, embora ainda não exista um apanhado de caráter científico com recorte do Rio Grande do Sul ou do Brasil.
— Vemos crianças com tosse e sintomas gastrointestinais persistentes, especialmente nesta época em que as doenças do inverno estão explodindo. Eles entram até como fatores que confundem na hora do diagnóstico atual. A tosse é um dos maiores confundidores. Às vezes, perguntamos para os pais quando começou a tosse. Respondem: “Há alguns meses”. Questionamos se a criança teve covid. “Teve, mas foi lá atrás.” Não temos como afirmar, mas pode ser covid longa — relata o médico.
Para Guaragna, um dos principais méritos da pesquisa dinamarquesa é, justamente, poder atestar a existência da covid longa infantil, tema ainda pouco estudado.
— Houve uma diferença significativa entre os casos (de covid-19) e os controles (participantes sem histórico da doença até então). Por exemplo, os controles podem ter tido outras doenças que não covid. Alguém com asma, que estava com tosse, fez o teste e deu negativo. Essa criança não ficou tanto tempo tendo sintomas quanto crianças que positivaram para a covid. Isso foi muito significativo, estatisticamente, no estudo, em todas as idades. Tosse e sintomas gastrointestinais em crianças de zero a três anos foram muito mais prevalentes no grupo com covid do que no grupo de controle — explica o pediatra do HCPA.
Guaragna aponta um aspecto importante: todas as faixas etárias apresentaram alterações de humor. As questões de ordem psicossocial são um problema também entre adultos:
— Temos muito mais medo do desconhecido do que é conhecido. Muitos idosos estavam morrendo de medo da covid, fizeram as vacinas e pegaram a doença nessa leva da Ômicron e depois falaram que era uma “gripezinha”. Para quem tomou três ou quatro doses, pode ser só uma gripezinha mesmo. Para as crianças, a mesma coisa: elas sentiram muito o isolamento, o medo do desconhecido. Muitas perderam pai, mãe ou os dois, perderam os avós. Tive paciente que perdeu pai jovem, de 34 anos. Essas crianças que perderam familiares e não tiveram a doença ficaram com receio. Ter a doença, sentir na pele, sofrer com as mortes, isso muda a percepção.
Infectologista pediátrico do Hospital Moinhos de Vento, Marcelo Comerlato Scotta identifica três cenários negativos para a covid em crianças: a fase aguda da doença, que tem como principal risco o comprometimento respiratório; a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), complicação pós-covid potencialmente grave que se caracteriza por um processo inflamatório generalizado, de três a quatro semanas após o início dos sintomas ou mesmo em casos assintomáticos; e a covid longa.
— Não se tem quantificado, ainda, quantas crianças vão desenvolver covid longa. Para covid aguda e SIM-P, já temos isso mais quantificado. A covid aguda, para quem tem comorbidades e doença mais grave, tem mais chance de evoluir para covid longa. Pensando nos adultos, a questão de estar vacinado parece que impacta também, mas não temos estudos para crianças. Outro ponto é que a covid longa pode acontecer depois da SIM-P. Ou seja, é uma complicação levando a outra — observa o infectologista.
Scotta relembra que o periódico Archives of Disease in Childhood propôs, recentemente, o período de 12 semanas de persistência de sintomas como referência para que o quadro seja descrito como covid longa para o público infantil.
— A covid longa, na imensa maioria das vezes, não tem risco de óbito. É mais um incômodo. A maior limitação ainda é não se conseguir quantificá-la muito bem para crianças. Os sintomas são inespecíficos. O estudo (dinamarquês) acha mais sintomas na criança que teve covid do que em quem não teve. O que falta saber é o percentual das crianças que tiveram covid que desenvolvem covid longa. Provavelmente, o número é bem baixo. A mensagem é: além da fase aguda e da SIM-P, há esse outro problema que a covid pode causar — complementa Scotta.
Uso de máscara e álcool gel é importante contra diversos vírus
À exceção das crianças menores de cinco anos, que ainda não são imunizadas contra a covid-19 no Brasil, as demais devem estar com o esquema vacinal em dia. Para proteger, especialmente, a parcela mais jovem da população, especialistas sublinham a importância da vacinação de adolescentes, adultos e idosos que vivem no entorno dos não vacinadas. Outra atitude importante é evitar o contato dos pequenos com pessoas sintomáticas — medida válida para a infecção pelo coronavírus e também para outros vírus respiratórios.
Uso de máscara e higienização frequente das mãos também são hábitos importantes. Até os três anos de idade, não se recomenda a utilização de proteção facial nos pequenos. A partir daí, se a criança tolerar bem, deve usar.
— Máscara não é mais obrigatória na escola, mas entendo que o ideal é continuar usando. Não só o coronavírus, mas os outros vírus respiratórios que sempre acometeram as crianças estão numa sazonalidade muito alta. Temos visto emergências pediátricas lotadas, leitos pediátricos lotados. Uso de máscara e álcool gel são coisas que aprendemos na pandemia e reduzem o risco para outros vírus também. A discussão sobre precauções vai além da covid. Entendo que a população está saturada, mas temos que tentar minimizar os riscos — incentiva Scotta.
Guaragna frisa o apelo em prol da vacinação:
— Temos que vaciná-las. Na hora em que tiver uma vacina segura para menores de cinco anos, liberada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), não tenho dúvida nenhuma de que tem que vacinar.
Quanto a sintomas que perduram — e não apenas como decorrência de covid-19 —, orientação médica é fundamental. Guaragna diz que, na ocorrência de problemas gastrointestinais, a observação é mais fácil. Diarreia e vômitos que não cessam em duas semanas ou mais já estão adentrando um período que configura cronicidade.
— Para um quadro de tosse com mais de duas ou três semanas, também. Sabemos que, após uma infecção por coronavírus ou outros vírus, pode haver tosse no período de convalescença. Se a tosse tem mais de três semanas e não está melhorando, tem que investigar — aconselha o pediatra do HCPA.
O estudo dinamarquês
- A coleta de dados se deu entre janeiro e julho de 2021, época em que eram dominantes as variantes Alfa e Delta do coronavírus na Dinamarca. Não se sabe se é possível generalizar os resultados, considerando-os em momentos de predominância de variantes mais recentes ou futuras.
- Mais de 44 mil mães (ou pais, ou outro responsável legal, na ausência da mãe) responderam ao questionário elaborado pelos pesquisadores. O número total se refere a casos de crianças e adolescentes com resultado positivo em testes do tipo PCR (11 mil) e também ao de indivíduos do grupo de controle (33 mil, sem infecção prévia).
- Os dois grupos eram semelhantes em faixa etária, sexo e prevalência de comorbidades preexistentes.
- As perguntas envolveram os 23 sintomas mais comuns de covid longa.
- Os resultados demonstraram que participantes que tiveram covid-19, em todas as idades contempladas no levantamento, estiveram mais propensos a apresentar pelo menos um sintoma persistente por dois meses ou mais em comparação com o grupo de controle.
- Na faixa de zero a três anos, 40% das crianças com covid-19 tiveram sintomas persistentes, ante 27% do grupo controle. De quatro a 11 anos, 38% dos voluntários com covid-19 apresentaram sintomas por, no mínimo, dois meses, contra 34% do grupo de controle. E, entre 12 e 14 anos, 46% dos positivos para covid-19 sofreram com sintomas sugestivos de covid longa, enquanto o índice foi de 41% no grupo sem histórico da infecção.
- Na conclusão, os autores salientam que mais estudos são necessários sobre o diagnóstico e o entendimento do impacto da covid longa, das medicações prescritas e do cuidado a ser prestado, entre outros fatores.
Os sintomas mais comuns relatados na pesquisa
Zero a três anos
- Alterações de humor
- Irritações na pele
- Dor de estômago
- Tosse
- Perda de apetite
Quatro a 11 anos
- Alterações de humor
- Problemas de memória e concentração
- Irritações na pele
12 a 14 anos
- Fadiga
- Alterações de humor
- Problemas de memória e concentração