Ao longo das últimas semanas, milhares de brasileiros foram impactados por duas importantes mudanças em planos de saúde: o maior aumento na mensalidade dos últimos 22 anos - famílias relatam encarecimento de até 77% - e os impactos de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que deve reduzir o acesso a terapias especializadas, sobretudo para pessoas com câncer, autismo e síndromes genéticas.
Moradora de Cachoeirinha, a assistente terapêutica Andressa Preuss, 40 anos, não sabe como dará conta de pagar, a partir do mês que vem, o aumento de 41% no plano de saúde dela, do marido e do filho Davi, de cinco anos e no espectro autista – a mensalidade subirá de R$ 1,7 mil para R$ 2,4 mil.
— Fica totalmente inviável. Esse valor compromete metade da nossa renda familiar. Se ficar assim, vamos ter que abrir mão do meu plano e do meu esposo para deixar só o Davi. Temos plano de saúde há 10 anos. Se ficar esse o valor, vamos para o SUS — diz Andressa, que é uma das mulheres à frente do grupo Mães Atípicas do Rio Grande do Sul.
Ela se esforça para manter Davi no convênio porque conseguiu na Justiça o direito de o plano de saúde custear tratamentos especializados para o filho. O pequeno faz, com profissionais especializados em autismo, terapia ocupacional, terapia com cavalos, fonoaudiologia e terapia ABA (Análise do Comportamento Aplicada, tradução livre).
Pelo menos 8 milhões de brasileiros foram afetados pelo reajuste de até 15,5% no valor dos planos individuais e familiares autorizado, no fim de maio, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com o aval do Ministério da Economia. É o maior percentual já aprovado nos últimos 22 anos. Para planos coletivos, não há limite de encarecimento, já que o percentual é definido por livre negociação e pode ser bem acima dos 15,5%, caso de Andressa.
O argumento dos planos é de que houve aumento das despesas em 2021 - com procedimentos eletivos, por exemplo, represados durante os primeiros dois anos de pandemia. O reajuste vale para o período de 1º de maio de 2022 a 30 de abril de 2023.
Por nota, a ANS informa a GZH que, no caso dos planos coletivos com 30 beneficiários ou mais, "estes possuem reajuste definido em contrato e estabelecido a partir da relação comercial entre a empresa contratante e a operadora, em que há espaço para negociação entre as partes. Nesses casos, é fundamental a participação do contratante na negociação do percentual".
Esse valor compromete metade da nossa renda familiar. Se ficar assim, vamos ter que abrir mão do meu plano e do meu esposo para deixar só o Davi
ANDRESSA PREUSS
Mãe do Davi, de cinco anos e no espectro autista
O aumento ocorre em um cenário no qual 47% dos brasileiros tiveram que ajustar o orçamento em 2021 para não perder o plano de saúde, segundo pesquisa com cerca de 1 mil pessoas feita pela Associação Nacional das Administradoras de Benefícios. O levantamento ainda mostra que 83% dos entrevistados têm medo de perder o plano.
A advogada Sue Hellen Oliveira, 31 anos, recebeu por e-mail o aviso de aumento de 77% no plano de saúde do filho, Matteo, de três anos e autista – a mensalidade subiu de R$ 350 para R$ 620.
— Eu não tenho plano de saúde para mim. Eu tinha, mas, depois do início da terapia do Matteo, meu dinheiro é para ele. Não tenho como arcar com aumento de praticamente R$ 300 reais. Estou com advogado para tentar reduzir judicialmente o valor — resume Sue Hellen.
Decisão que estabeleceu rol taxativo preocupa usuários
Eu não tenho plano de saúde para mim. Eu tinha, mas, depois do início da terapia do Matteo, meu dinheiro é para ele
SUE HELLEN OLIVEIRA
Mãe de Matteo, de três anos e autista
O encarecimento se soma a outra mudança nos planos de saúde: a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 8 de junho, que estabeleceu o rol taxativo - em suma, convênios agora só são obrigados a cobrir procedimentos e terapias inclusos na lista determinada pela ANS (confira aqui). Senão, o plano não precisa bancar, salvo algumas exceções.
Até então, a lista de procedimentos e terapias era considerada, pela grande maioria dos juízes, apenas como uma “relação mínima” a ser custeada pelos planos. Caso o paciente entrasse na Justiça, em geral ganhava o direito, por liminar (decisão imediata e provisória), de ter acesso a terapias mais avançadas e eficazes.
A mudança pode prejudicar pessoas com câncer e autismo, mas também indivíduos com síndrome de Williams, Down e Turner e outras enfermidades genéticas e raras. Há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) que ainda pode mudar o entendimento do STJ.
Foi por via judicial que a autônoma Gabriele Loss, 23 anos, conseguiu o direito de o plano de saúde cobrir tratamentos para a filha Manuela, de sete anos, que tem Hipomelanose de Ito, uma doença genética rara que afeta o cérebro e causa epilepsia. A mãe teme que a filha perca a cobertura do plano – só as seis sessões semanais de eletroestimulação, custeadas pelo convênio, custam R$ 3 mil a cada semana.
— Minha filha está quase caminhando, aprendendo a falar, com a esperança de ter um dia melhor. Talvez isso acabe, porque eu não conseguiria bancar essa realidade. Estamos com grandes avanços. Parar o tratamento é um retrocesso muito grande. Imagina eu entrar com um processo e esperar não sei quantos meses para ter alguma chance. É surreal pensar em passar por isso — diz a mãe, que paga o convênio para a filha, mas se trata no SUS e em consultas avulsas com médicos particulares.
Para Viviane Jardim Saccol, 41, advogada atuante na área da saúde em Porto Alegre, liminares e sentenças em favor de famílias não devem cair imediatamente porque foram emitidas na época do antigo entendimento. No entanto, como liminares são decisões provisórias, no andar do processo a Justiça pode, sim, adotar a nova interpretação e desobrigar os planos a cobrirem tratamentos.
Parar o tratamento é um retrocesso muito grande. Imagina eu entrar com um processo e esperar não sei quantos meses para ter alguma chance. É surreal pensar em passar por isso
GABRIELE LOSS
Mãe da Manuela, de sete anos, que tem Hipomelanose de Ito
— As liminares não vão cair. Mas, no correr do processo, as provas precisam ser demonstradas no sentido de que o caso da pessoa cai nas regras de exceção (previstas) para ter o direito aos tratamentos. Se for pedido um tratamento que não estiver no rol e a necessidade for comprovada, o plano pode oferecer cobertura ampliada — diz a advogada, prevendo que o rol taxativo jogará milhares de pacientes para o SUS.
Já o advogado atuante na área da saúde Jefferson Gregoire Gularte, do escritório Gregoire Gularte, de Porto Alegre, avalia que planos de saúde poderão usar o entendimento do STJ para derrubar liminares que os obrigavam a fornecer terapias mais avançadas. Mas ele também destaca que o STJ previu exceções para o rol:
— A decisão do STJ abre a possibilidade de o juiz adotar o entendimento do rol taxativo. Mas cabe análise de caso a caso para verificar se terapias ou medicamentos estão nas regras de exceção previstas pelo STJ. A pessoa talvez precise comprovar que os procedimentos que estão no rol da ANS não são suficientes para a necessidade terapêutica, o medico terá que justificar o porquê da necessidade de outras terapias — diz o advogado.
Andressa teme que, com o rol taxativo, o filho perca o direito a profissionais especializados. Se fosse pagar no particular, seriam R$ 17 mil reais ao mês.
— Hoje, posso vislumbrar o quanto, lá na frente, o Davi poderá trabalhar e ser independente. O que mais nos preocupa, como pais, é o futuro dos filhos. Como será quando eu não estiver mais aqui? Dá tranquilidade saber que o filho será independente. Mas, se ele ficar sem terapias, nos tiram isso. O rol taxativo mata a futura independência e autonomia do meu filho — diz Andressa.
Planos de saúde argumentam que, anteriormente, a possibilidade de qualquer pessoa ganhar na Justiça o direito de ter acesso a tratamentos mais caros, fora da lista obrigatória, gerava imprevisibilidade financeira e risco de colapso financeiro.
De outro lado, pessoas afetadas alegam que as mudanças reduzem a expectativa e a qualidade de vida, por inviabilizar o acesso a terapias eficazes e mais modernas.
O entendimento do rol taxativo já afetou Sue Hellen e o filho Matteo antes: em março, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) julgara recurso contra o plano de saúde e adotara a mesma interpretação do STJ - as decisões variavam a depender do juiz que julgava o caso. Só que ela já arcava com os custos do tratamento desde o ano passado, quando mudou de convênio e entrou no período de carência. Para pagar as terapias de Matteo, ela vendeu um imóvel e usou R$ 80 mil.
— Estou desesperada. Nessa idade dele, a cada mês que passa, ficar sem o tratamento adequado deixa mais atrasos para recuperar. Vendi imóvel para meu filho se desenvolver e ter uma vida com autonomia. Se não baixar a mensalidade do plano, não sei como vai ser. Não tenho mais nenhum bem para vender. Eu só quero que meu filho, a coisa mais importante da minha vida, tenha uma vida digna. Para isso, ele precisa hoje de tratamento para melhorar a forma como se expressa — diz Sue Hellen, moradora de Alvorada.
Vendi imóvel para meu filho se desenvolver e ter uma vida com autonomia. Se não baixar a mensalidade do plano, não sei como vai ser. Não tenho mais nenhum bem para vender.
SUE HELLEN OLIVEIRA
Mãe de Matteo, de três anos e autista
Sessões ilimitadas para autistas
Na segunda-feira (20), o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que a ANS providenciasse, em até 10 dias, esclarecimentos aos planos de saúde quanto à obrigação de arcar com número ilimitado de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos ou fisioterapeutas, conforme indicação médica.
Em nota enviada a GZH, a ANS cita que, na tarde desta quinta-feira (23), a diretoria da agência aprovou normativa que amplia as regras de cobertura para pessoas com transtornos globais do desenvolvimento, o que inclui autismo, síndrome de Rett e Asperger.
“A partir de 1º de julho de 2022, passa a ser obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico assistente para o tratamento do paciente que tenha um dos transtornos enquadrados na CID F84, conforme a Classificação Internacional de Doenças”, diz o texto.
A mudança também estabelece sessões ilimitadas com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas para todos os transtornos globais de desenvolvimento.
Em entrevista ao Estadão no último dia 13, o diretor-presidente da ANS, Paulo Rebello, afirmou que nenhum paciente autista está deixando de ser atendido.
— Não estamos deixando de atender nenhum paciente autista, ninguém pode dizer isso. Tem uma técnica de atendimento que não está sendo paga pelo rol? Ok, mas ela chegou a ser submetida à ANS? Outras vezes são situações muito específicas. Por exemplo, equinoterapia. Obviamente não dá para colocar tudo, há escolhas. Temos de analisar evidências científicas, custo-efetividade — declarou Rebello.