Os detalhes permanecem vívidos na memória: era década de 1980 quando a adolescente Suzana Amaral atravessou o Rio Grande do Sul com mãe e três irmãos para finalmente reencontrar o pai no Hospital Colônia Itapuã (HCI), em Viamão. A convivência em São Borja fora interrompida havia quase 10 anos, quando Aristides Amaral, um servidor público, fora internado à força após o diagnóstico de “lepra” – palavra antiga para designar uma doença dermatológica hoje chamada de hanseníase.
Aristides foi uma das 2.474 pessoas que, entre 1940 e 1985, ingressaram de forma compulsória no HCI, uma minicidade de 1.251 hectares no interior de Viamão, Região Metropolitana de Porto Alegre, criada pela política de isolamento do governo brasileiro para conter a hanseníase. Ele habitava um quarto dentro do cassino da “área de diversão” e construía, com amigos também pacientes, uma casa para a família fora dos muros. Todavia, antes de o imóvel ficar pronto, a família chegou de táxi em Itapuã – sem possuírem o endereço exato, orientaram o taxista com uma fotografia dele à frente do “prédio de jogos”.
A convivência entre pacientes e pessoas de fora era proibida: o hospital era dividido em “área limpa” (para funcionários) e “área suja” (para doentes). Aristides suplicou à direção aval para a família ali permanecer até que a casa em construção ficasse pronta. Recebeu retorno positivo, desde que mantivessem segredo.
– Ficamos dois meses escondidos no cassino, onde meu pai morava e tinha um quarto. Naquela época, não podia circular gente com saúde aqui dentro. Ficávamos eu, meus dois irmãos e minha irmã de dia no cassino e, de noite, dormíamos na casa do meu tio e da minha tia, que também eram pacientes. A gente ficou, mas não podia circular. Era divertido – relembra Suzana.
A adolescente cresceu, casou e teve dois filhos, mas jamais saiu da colônia: aos 59, Suzana vive em uma casa, a mãe, Theresinha, 85, em outra, e um irmão, paciente psiquiátrico, em uma terceira residência – o pai já faleceu. Agora, a família, décadas após ter migrado, receia ser separada em uma encruzilhada que coloca, de um lado, moradores do HCI e, do outro, o poder público.
Em janeiro, a Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) firmou convênio com a prefeitura de Viamão para que os 46 moradores do HCI fiquem sob cuidado do município, e não mais do Estado. Há 38 pacientes psiquiátricos, que serão transferidos a residenciais terapêuticos. Os oito últimos ex-hansenianos do local devem, 82 anos após o surgimento da instituição, optar por partir ou ficar.
Indivíduos com transtornos mentais graves moram há anos na colônia – o último grupo, com 30 pacientes psiquiátricos, veio em 2018. Para cuidar de todos os moradores, atuam cerca de 150 servidores estaduais concursados e funcionários terceirizados. O custo mensal de manutenção do Hospital Colônia Itapuã é de R$ 750 mil.
A segregação de pacientes com hanseníase remonta a tempos bíblicos, mas ocorreu de forma patrocinada pela União em uma das maiores ações higienistas brasileiras do século 20: em 1923, o governo determinou a internação compulsória dos então chamados “leprosos”. Na década de 1940, diversas colônias foram construídas para isolar pacientes, medida que perdeu força na década de 1960, mas perdurou em alguns Estados, incluindo o Rio Grande do Sul, até meados dos anos 1980, explica o livro Hanseníase: Direitos Humanos, Saúde e Cidadania (vários autores, editora RedeUnida). A colônia de Itapuã concentrou casas, pavilhões, cassino, igrejas, mercado, jornal, prisão para quem fugia, cemitério e até moeda própria. O HCI foi um dos 169 espaços criados no Brasil para abrigar pessoas com hanseníase e, separadamente, seus filhos, órfãos de pais vivos, relata estudo da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Embora a cura tenha aparecido em 1941, o governo federal baixou em 1949 uma lei obrigando filhos de pacientes a serem afastados dos pais – medida que caiu em 1968.
Em 2007, o Estado brasileiro reconheceu o erro e se tornou o segundo país, ao lado do Japão, a aprovar lei que estipulou pagamento de pensão vitalícia aos hansenianos segregados da sociedade – filhos não têm direito ao benefício. Hoje, 4.725 brasileiros recebem R$ 1.831 por mês, informa o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) – em 2018, eram mais de 9 mil pessoas. Moradores da colônia de Itapuã ainda recebem gratuitamente remédios, cesta básica e transporte para afazeres da rotina, como ir ao banco.
Desde janeiro, o poder público busca convencer os habitantes do HCI de que a vida pode ser melhor fora dos muros, mas alguns ex-hansenianos, após terem sido obrigados a viver reclusos por décadas, não dão sinais de entusiasmo. Ninguém será obrigado a sair, e quem ficar seguirá assistido pelo poder público, garantem as autoridades ao Ministério Público, que acompanha o caso (veja a seguir). Suzana e a mãe não são pacientes, mas mudaram por causa de Aristides e consideram Itapuã seu lar.
– Eu tenho história aqui dentro, sou filha de paciente, tenho familiares enterrados aqui. Sou contra a mudança. As pessoas vão sair e tem todo esse espaço, por que não investem aqui, se os pacientes estão acostumados a viver aqui? – diz Suzana, que ganhou casa por ter sido, além de filha, cuidadora de hansenianos até se aposentar.
O governo do Estado e a prefeitura de Viamão explicam que o destino de cada morador será definido após conversa individual e mapeamento de necessidades e vontades, e que ninguém será obrigado a sair. A ideia é transferir pacientes psiquiátricos para quatro residenciais terapêuticos – casas mantidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com assistência 24 horas, onde vivem no máximo 10 indivíduos com problemas de saúde mental. O primeiro residencial ficará pronto até agosto.
Dos oito ex-hansenianos que seguem no HCI, cinco têm problemas físicos ou mentais e moram em quartos na enfermaria do hospital, ao lado de pacientes psiquiátricos. Outros três moram sozinhos, em casas. Estado e prefeitura de Viamão prometem que, quem desejar, viverá em residências equivalentes às atuais.
O governo gaúcho explica que a transferência de pacientes de saúde mental é motivada pela necessidade de cumprir a Lei Federal da Reforma Psiquiátrica, de 2001. A legislação diz que manter pacientes psiquiátricos internados por toda a vida é uma violação de direitos humanos e que essas pessoas devem ser reintegradas à vida comunitária. A saída é alocá-los em residenciais terapêuticos até voltarem para a família ou viverem sozinhos. No dia a dia, pacientes devem consultar os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Para os ex-hansenianos, o objetivo é também reintegrá-los à sociedade.
– A gente foca no que diz a legislação, que estabelece que não pode haver pessoas morando em hospitais, então a gente segue o projeto da desinstitucionalização. Entendemos que há 38 pacientes psiquiátricos para desinstitucionalizar e que não há mais motivo em ter um local daquele tamanho sem pacientes – afirma a diretora do Departamento de Coordenação dos Hospitais Estaduais do governo do Estado, Suelen Arduin.
A diretora ressalta que ex-hansenianos que vivem sozinhos poderão morar em casas individuais em Viamão custeadas pelo governo e que aqueles que vivem sob assistência 24 horas na enfermaria terão a possibilidade de receber assistência equivalente gratuita em residenciais terapêuticos.
– A gente vai zelar pelo cuidado. Esse processo é para preservá-los. Hoje, do jeito que está, temos um número muito pequeno de pessoas. Manter o cuidado que temos não é fácil, com o número de servidores e de pacientes que tem lá. A gente vai seguir o que diz a legislação para 38 pacientes psiquiátricos. Dos oito ex-hansenianos que moram no Hospital Colônia, não tem como manter uma estrutura do jeito que tem hoje para essas pessoas, mas eles serão olhados e reintegrados – acrescenta Arduin.
O Estado também quer possibilitar a antigos pacientes uma vida mais próxima à sociedade, de acordo com desejos e sem nenhuma imposição, acrescenta Marilise Fraga de Souza, chefe da divisão de Políticas Transversais da SES-RS.
– A maioria dos ex-hansenianos vive em enfermaria. Queremos mostrar a eles que podem viver em uma casa, e não de forma institucionalizada. Não será nada compulsório, conversamos para mostrar que eles têm a possibilidade de outras perspectivas de vida – diz Marilise.
Abandono e exuberância
Caminhar pelo Hospital Colônia Itapuã é voltar ao passado. Um pórtico de entrada traz a frase “Nós não caminhamos sós”, em referência à vigilância sobre pacientes. A área lembra uma cidade abandonada, com prédios em risco de desabamento, mas transborda natureza exuberante, flores coloridas e atmosfera de paz.
Alguns antigos moradores já se mudaram, caso de Maria Nunes, 76 anos, e do marido, o militar reformado Sebastião Nunes. Ela viveu na colônia de 1977 a 2020 – fora internada aos 30 anos com hanseníase e chegou a trabalhar no armazém da instituição. Decidiram sair quando Sebastião adoeceu e necessitava de tratamento em Porto Alegre – hoje, vivem em uma casa nos arredores.
– Eu, por mim, voltava (para o hospital colônia), mas o marido quer ficar aqui. E agora estão querendo levar o povo que tem lá para fora. Desde que eu fui para a colônia, falam em fechar. Isso é assunto antigo. A gente se mudou e ainda ganho comida (cesta básica), mesmo morando fora eles dão alimentação. A gente saiu, mas eles ainda estão cuidando da gente – conta Maria.
O coordenador-nacional do Movimento de Reintegração de Pessoas Afligidas pela Hanseníase (Morhan) e membro da Comissão de Vigilância em Saúde do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Artur Custódio, alega que o poder público tem dívida social com os últimos moradores de hospitais colônia e que não há determinação do Ministério da Saúde para transferir ex-hansenianos – o governo federal não respondeu ao pedido de comentários feito por ZH.
– O Estado pode fechar o hospital colônia, mas induz a opinião pública ao falar que gasta o dinheiro do contribuinte com poucas pessoas. Só que está posta qui uma questão de direitos humanos. Estamos falando de pessoas que tiveram suas vidas sequestradas. Estado e sociedade precisam ter compromisso de deixar que essas pessoas, no período final da vida, vivam em paz. O Estado está com discurso de desinstitucionalizar pacientes psiquiátricos, mas, na saúde mental, as pessoas não tinham vontade própria. Na hanseníase, elas tinham, foram sequestradas da família e colocadas lá, onde criaram vínculos afetivos. Defendemos que esses lugares são patrimônios históricos de memória afetiva – diz Custódio.
Valdeci Ramos Barreto, de 80 anos, saiu de Nova Prata em 1959 para cuidar da mãe com hanseníase. Dormiram juntas em um pavilhão – havia nove quartos, cada qual para duas pessoas. Com a convivência próxima, Valdeci também adoeceu, e há mais de cinco décadas mora no Hospital Colônia Itapuã com a filha, hoje acamada. A matriarca casou três vezes, sempre com outros pacientes. Deu à luz 11 filhos, todos arrancados dos braços após o parto para viverem em casas de amparo. O contato foi reavido anos depois.
– Não podia botar a mão nos filhos. Mostravam e diziam: “Ó o filhinho”. Depois, passaram os anos… Será que era meu filhinho? Naquele tempo, não se tocava. De jeito nenhum – diz Valdeci, sentada em uma cadeira enquanto segura um bebê imaginário nas mãos.
No quarto em que vive com a filha na enfermaria do Hospital Colônia Itapuã, há duas camas de madeira, pia, fogão de quatro bocas, geladeira e uma TV, onde Valdeci assiste novelas. Grudada na parede, há uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes ao lado de uma foto dela, de outra filha e do terceiro marido. Um hack exibe um quadro das filhas.
– Agora, aos 80 anos... Não tenho a intenção de sair – diz, sucinta.
O destino da área
O Ministério Público (MP) analisa o futuro do Hospital Colônia Itapuã e a transferência dos moradores. A promotoria exigiu que Estado do Rio Grande do Sul e prefeitura de Viamão garantam que nenhum ex-hanseniano seja obrigado a sair e que o HCI funcione até que o último morador parta – medidas que, até hoje, são sendo atendidas.
– Instauramos expediente para verificar a legalidade da transferência dos hansenianos com a premissa de que, dentro de uma política higienista de Estado, eles foram segregados socialmente em área remota. Como constituíram todas as suas relações sociais, afetivas e de pertencimento naquele espaço, de forma compulsória, entendemos que seria um ato atentatório aos direitos humanos a remoção compulsória dessas pessoas com o fechamento do HCI – explica o promotor Leonardo Menin.
Autoridades garantem que tudo será calcado no diálogo, Menin acrescenta:
– Estado e município deixaram claro para nós que, mostrando às pessoas como seria a vida delas fora dali, elas aceitariam. Nós fomos lá e sabemos que as pessoas não querem sair, mas o Estado acredita que, mostrando para eles como a vida pode ser do lado de fora, eles acabarão aderindo. Nossa atuação é para que não haja compulsoriedade. Se Estado e município voltarem atrás, teremos que judicializar.
Em novembro do ano passado, o Ministério Público abriu expediente para questionar o governo do Estado sobre o que será feito com os prédios e a área do HCI. Uma igreja e o entorno de 300 metros quadrados são tombados e, portanto, devem ser conservados. O prédio da igreja atualmente está interditado, com risco de desabar.
– Há muita história lá. No país, existem vários locais assim que se tornaram museus para preservar a memória. Em Itapuã os prédios estão bem deteriorados, precisam de muito investimento para qualquer reparo. Vamos construir com o Estado as melhores alternativas. Depois, vamos entender se nossas ideias são divergentes e se podemos acolher os interesses das partes envolvidas – afirma a promotora Roberta Teixeira.
O Estado informou ao Ministério Público que reavaliará a área tombada, o que pode ampliar a zona de tombamento histórico – medida vista com bons olhos pela promotoria. O Piratini tem até o fim deste mês de junho para informar se já contratou equipe para revisar a área.
Artur Custódio defende que hospitais colônia sejam aproveitados para o SUS, enquanto o poder público permite a morada dos últimos ex-pacientes no local. Ele cita que o governo do Japão mantém todos os 12 hospitais colônia funcionando até que o último ex-hanseniano se vá. No Rio de Janeiro e no Acre, a propriedade das casas passou para o nome dos moradores, com direito de herança aos filhos. Em Rondônia e Mato Grosso do Sul, hospitais colônia foram reformados e se tornaram referências em cirurgia e fabricação de próteses.
– A grande discussão é: como utilizar um equipamento gigantesco para algo útil? Poderia ter pronto-atendimento para a comunidade ou unidade de saúde da família sem deixar de ter atenção a esses poucos moradores. Como a gente poderia estar incluindo a comunidade ali? Tem uma história lá dentro que vai se perder com esse “fechamento”. Poderia ser escola rural, poderia fazer uma parceria público-privada para uma universidade rural, preservando prédios históricos e o atendimento àquelas pessoas – diz Custódio.
Para Suzana Amaral, que se mudou para Itapuã com a família para ficar perto do pai, mudanças no hospital colônia geram temor porque são entendidas como alterações em uma cidade – e nas memórias.
– Aqui construí minha vida. Cada paciente que morreu, eu chorei. É com eles que vivi, fiz festa e convivi em casa. Eles fazem parte da minha vida. Aqui vi muito sofrimento, mas também muita felicidade. Amo isso aqui, tenho tanta paixão que sigo aqui – afirma Suzana.
GZH questionou o Estado sobre o que o governo pretende fazer com o Hospital Colônia Itapuã no futuro. A SES-RS respondeu que o foco atual é nos moradores e que o futuro do patrimônio não é discutido enquanto há pacientes vivendo no local.