O Brasil tem seis remédios contra a covid-19 aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas nenhum é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) até agora — a pasta afirma que acompanha publicações sobre o tema para dar celeridade às análises (leia mais no fim da reportagem). As medicações são aplicadas apenas em hospitais e em pacientes de convênio ou particular com alto risco de piora. Nenhum é a "bala de prata" para acabar com a pandemia, segundo especialistas.
Entre as seis drogas (veja no infográfico a seguir), uma é antiviral e cinco são de anticorpos monoclonais - proteínas produzidas em laboratório que ajudam o organismo a identificar o Sars-Cov-2 e combater a replicação viral. Há ainda três remédios desenvolvidos para outras doenças e que são usados contra a covid-19, como anticoagulantes e anti-inflamatórios.
Desde o início da pandemia, a ciência busca um remédio que possa ser vendido em farmácias e usado em casa no início da doença. Todavia, ainda não há “bala de prata” que revolucione o tratamento contra a doença, segundo médicos — nem mesmo no Exterior. A maioria das drogas aprovadas no Brasil é oferecida a idosos ou pessoas imunossuprimidas e com comorbidades graves em ambulatórios hospitalares, antes de adoecerem gravemente e serem internados em leitos clínicos ou Unidades de Terapia Intensiva (UTI).
— O Brasil engatinha na oferta. Na Europa e nos Estados Unidos, há opções de uso oral para tratamento domiciliar, mas nosso arsenal terapêutico é para uso exclusivamente hospitalar. O problema é que esses tratamentos precisam ser administrados até o sétimo dia de sintomas. Na prática, os pacientes que chegam ao hospital estão com mais dias de evolução da doença, então o uso não desempenha papel tão significativo — explica André Luiz Machado, médico infectologista do Hospital Conceição, de Porto Alegre.
Em novembro, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão independente que aconselha o Ministério da Saúde a incluir ou não novos remédios no SUS, recomendou que as drogas aprovadas pela Anvisa contra a covid-19 não fossem oferecidas a usuários do sistema público.
Os remédios, disse o Conitec, “sugerem benefício clínico em pacientes com alto risco de progressão para doença grave, contudo não é possível realizar a recomendação a favor do uso destes medicamentos no momento devido a seu alto custo, baixa experiência de uso e a sua indisponibilidade no sistema de saúde”. As medicações variam de preço - alguns tratamentos variam de R$ 2,2 mil a R$ 20 mil.
A negativa de inclusão no SUS barrou, indiretamente, a entrada no mercado particular de algumas drogas. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o mercado privado, planos de saúde não são obrigados a cobrir os custos das seis medicações quando usadas em ambiente ambulatorial – justamente quando a maioria das drogas deve ser usada. A cobertura dos gastos é obrigatória quando os remédios forem aplicados durante a internação.
O Casirivimabe e o imdevimabe são drogas usadas em conjunto para pacientes que buscam hospital com covid-19 leve a moderada. A farmacêutica Roche afirmou a GZH que, como negocia apenas com governos federais para dar conta da demanda global, não venderá o remédio ao mercado brasileiro, nem mesmo privado. O coquetel foi oferecido ao Ministério da Saúde por cerca de R$ 6,2 mil.
Acesso ainda é precário
Para o infectologista André Machado, a inclusão das drogas no SUS salvaria vidas e reduziria a ocupação hospitalar. Ele também diz que o governo deve "levar em consideração equidade e justiça ao oferecer saúde". Mas o médico Rafael Scheffel, coordenador da comissão de medicamentos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), diz que os remédios aprovados no Brasil contra o coronavírus são caros.
— Todos esses medicamentos têm algum benefício, mas nenhum é uma pílula mágica para usar em todo mundo e resolver o problema da pandemia. Não conheço nenhum país que tenha incorporado o uso de todos esses medicamentos. Depois da aprovação pela Anvisa, tem que levar em consideração custo e acesso. De onde se tiraria dinheiro? Das vacinas? Da atenção primária? Se o custo fosse mais baixo, não seria errado pensar em incorporar — diz Scheffel.
A imunologista Cristina Bonorino, integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), defende que o governo federal ofereça os remédios pelo SUS para garantir acesso igualitário às drogas. Ela também diz que o governo federal precisa investir para universidades pesquisarem anticorpos monoclonais, tecnologia que compõe a maior parte dos remédios liberados no país.
— Esses remédios são muito caros, mas são dados de graça nos Estados Unidos. Há décadas, o câncer é tratado com anticorpos monoclonais, mas esse tratamento também não está disponível no SUS. Milhares de pessoas morrem porque não têm acesso a um medicamento que sabidamente salva vidas. Temos que desenvolver a tecnologia de anticorpos monoclonais no Brasil, investindo em pesquisa. Se a gente produzisse nacionalmente, o valor baratearia em pelo menos 90%. Hoje, o governo tem que liberar esses medicamentos, é trabalho dele garantir que as pessoas tenham acesso — afirma Bonorino, que pesquisa anticorpos monoclonais na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
O debate não está encerrado: o Conitec discute novamente a inclusão ou não dessas drogas no SUS. Segundo o jornal O Globo, possível nova decisão ocorrerá após o ministro Marcelo Queiroga resolver outra questão: decidir se o governo recomendará oficialmente o uso do “kit covid”, que envolve os ineficazes medicamentos cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina. O assunto travou porque a Conitec não recomendou o uso dessas drogas, mas o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti Neto, barrou o parecer - e a decisão agora está nas mãos de Queiroga.
Nos bastidores, o governo federal está em negociações com a AstraZeneca para comprar e oferecer ao SUS o Evusheld, nova droga injetável liberada em fevereiro no país (portanto, não avaliada pelo Conitec na decisão de novembro), para uso em hospital. O remédio é aplicado em quem entrou em contato com quem testou positivo para covid-19. A AstraZeneca confirmou a GZH que está em contato com o Ministério da Saúde "há algumas semanas em prol dessa negociação", mas afirmou que não há mais informações sobre precificação e prazo de entrega. O problema, dizem especialistas, é que é preciso ir ao hospitalar para receber o Evusheld, o que deve privilegiar o uso em profissionais da saúde.
Novas drogas nos próximos meses
Para além das seis drogas liberadas, novas devem chegar ao mercado nos próximos meses. O monulpavir, pílula antiviral recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para uso nos primeiros dias da covid-19, como forma de evitar o agravamento, está sendo avaliado pela Anvisa desde novembro. O prazo de análise está suspenso porque a agência pediu mais dados à farmacêutica MSD.
Outra opção é o antiviral Paxlovid, fabricado pela Pfizer e liberado nos Estados Unidos e na Europa. O remédio deve ser usado de 12 em 12 horas nos primeiros dias da doença e é vendido em farmácias no Exterior — reduz em 89% a chance de piora da doença, segundo a Pfizer. A Anvisa recebeu, em 16 de fevereiro, pedido de avaliação para liberar o uso no Brasil — o prazo para análise acaba na metade de março.
Medicações de uso oral, vendidas em farmácia, devem trazer maior impacto no controle do coronavírus, mas não devem revolucionar do dia para a noite a pandemia, diz o médico Marcelo Basso Gazzana, chefe do setor de Pneumologia e Cirúrgica Torácica do Hospital Moinhos de Vento.
— Não dá para usar esses remédios indiscriminadamente porque vírus desenvolvem resistência. A grande questão de acabar a pandemia é o surgimento ou não de novas variantes. Medicamento antiviral não se adapta como vacina. Se atua em local onde a variante modificou, precisa fazer outro remédio. Além das medicações, precisamos focar na vacina — sintetiza Gazzana.
O que diz o governo federal
O Ministério da Saúde diz que tem dado celeridade às solicitações de análises pela Conitec referentes aos medicamentos contra a covid-19. Em nota enviada a GZH, diz que "tem acompanhado as mais recentes publicações e realizado reuniões com as empresas produtoras das tecnologias, afim de agilizar o processo de submissão de demandas à Comissão".
A pasta observa que as evidências científicas relacionadas à pandemia são dinâmicas e que o governo não incorporou o casirivimabe com o imdevimabe e o banlanivimabe com o etesevimabe porque os estudos sobre essas medicações não analisavam os efeitos em vacinados e porque nem mesmo a agência reguladora dos Estados Unidos recomenda o uso.
O Ministério da Saúde ainda acrescenta que, no caso do remdesivir, "as evidências relacionadas ao uso do medicamento em pacientes hospitalizados não foram suficientes para a incorporação no SUS".
Por fim, a pasta diz que o baricitinibe está pautado para avaliação inicial da Conitec na próxima reunião, nesta quinta-feira (10).