Enquanto a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), em Glasgow, na Escócia, segue até o próximo dia 12 discutindo estratégias para enfrentar os impactos climáticos no planeta, cientistas se preocupam com as consequências do aquecimento global, entre elas o surgimento de novas epidemias. Para a classe científica, a raiz do problema está nas ações causadas pelo homem, que influenciam diretamente no aumento da temperatura média da Terra. Por consequência, ecossistemas acabam desestabilizados, podendo levar ao surgimento de novas doenças.
Essa afirmação faz parte do relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, divulgado em agosto. No documento, os cientistas apontam as mudanças climáticas como piores e mais rápidas do que se temia. Por volta de 2030, uma década antes do estimado, a Terra poderá alcançar o limite de mais 1,5°C na temperatura, com riscos de desastres sem precedentes para a humanidade, que já vem sendo atingida por inundações e ondas de calor. O estudo foi além, responsabilizando o ser humano pela situação, advertindo que não há outra opção além de reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa.
Especialista em vetores, Rodrigo Kruger, professor e pesquisador do Departamento de Microbiologia e Parasitologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), vem trabalhado nos anos mais recentes a influência das alterações do clima na distribuição de vetores e, consequentemente, no surgimento de potenciais surtos epidêmicos causados por insetos e carrapatos.
– As epidemias causadas por vírus ou algum outro patógeno estão diretamente associadas ao contexto ambiental. Elas não surgem do nada. Isso sempre tem um ponto de origem – ressalta o pesquisador.
Kruger explica que a partir do momento em que há alterações ambientais, surge uma desregulação daquilo que ocorria naturalmente no ambiente. E, por consequência, a biodiversidade precisa se rearranjar. Um exemplo é a Amazônia, onde mais de 7 mil vírus já foram catalogados e circulam naturalmente em períodos intermitentes, mas controlados pela própria diversidade do local. Ou seja, na floresta há uma gama de hospedeiros – de insetos a roedores – que já estão ajustados à presença desses vírus. Quando esses hospedeiros são eliminados em uma alteração brusca do ambiente, seja por queimadas ou desmatamento, esses vírus procurarão novos hospedeiros ou vão se tornar mais frequentes em hospedeiros que estão dominando aquele ambiente por conta das alterações. Ao se hospedarem em populações maiores de animais, os vírus podem chegar aos humanos que vivem no entorno. É o que a epidemiologia chama de quebra de barreira: a capacidade que o vírus adquire de passar de um grupo de animais para os humanos. Foi o que ocorreu com o HIV, com o ebola e com o Sars-Cov-2.
– A quebra de barreira ocorre pelo contato frequente entre populações humanas e patógenos que pode se dar pela alteração do ambiente, que tem relação direta com o tipo de civilização atual. Hoje, estamos baseados numa produção energética centrada em combustíveis fósseis, como o carvão e o petróleo, e na alteração ambiental para a produção de mais proteína animal: o desmatamento e a queimada, culminando com a liberação de mais gás carbônico para a atmosfera, desestabilizando os ecossistemas naturais. Essas alterações dão a chance de transferência de um vírus de animais silvestres para populações de animais domésticos e humanos. Então, temos a probabilidade de aumento na frequência de novas epidemias no futuro se insistirmos neste sistema de produção – detalha Kruger.
As epidemias causadas por vírus ou outro patógeno estão associadas ao contexto ambiental. Elas não surgem do nada.
RODRIGO KRUGER
Professor da UFPel
Chefe do Núcleo de Estudo de Eventos Meteorológicos Extremos e Mudanças Climáticas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a pesquisadora e professora Nathalie Tissot Boiaski destaca que, em concomitância com a crise climática, o Brasil ainda precisa se preocupar com a atual crise ambiental. Ela acrescenta aos problemas já citados por Kruger os garimpos irregulares na Amazônia e as queimadas no Pantanal, na caatinga e no serrado, que influenciam diretamente no aquecimento do planeta. No final de outubro, o Observatório do Clima divulgou relatório afirmando que as queimadas e o desmatamento da Amazônia fizeram com que, em 2020, o Brasil tivesse o maior montante de emissões desde 2006. Segundo o estudo, a emissão brasileira de gases de efeito estufa cresceu 9,5% no ano passado, enquanto no mundo houve queda de quase 7%.
– O momento é agora. Se pararmos com o desmatamento e com essas intervenções nos ecossistemas podemos estagnar a situação e não deixar que as coisas piorem. Não há mais tempo para conversa fiada e contestações. Temos que agir. O Brasil, principalmente, tem muitas riquezas naturais e precisa cuidá-las. A importância dos nossos biomas não é para nós, é para o planeta – sintetiza Nathalie.
Para o antropólogo Jean Segata, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que estuda as relações entre meio ambiente e humanos na pandemia de coronavírus, o que a sociedade vive hoje já é um sintoma de uma catástrofe muito maior. A pandemia, justifica Segata, é parte dos efeitos desses desequilíbrios que têm sido provocados justamente pela ação destrutiva do homem.
Segata acredita que o aquecimento global acabou reunindo diversas outras agendas, o que se tornou um grande problema. Assim, a sociedade deixa de discutir sua gênese, ligada aos processos históricos que envolvem a violência estrutural, a colonização e a dominação dos ambientes, dos animais e das plantas.
– Há muitas maneiras de pensarmos a possibilidade de uma relação entre aquecimento global e novas pandemias. Primeiro, arqueólogos ou disciplinas que têm esse diálogo com a arqueologia e a relação climática têm mostrado, por exemplo, como o degelo de calotas polares tem exposto patógenos que estavam congelados. Essa dinâmica natural de predações de equilíbrio de espécies que estão adormecidas pode provocar uma espécie de um encontro randômico. Segundo, o aquecimento global ecoa diretamente as ecologias em rápida transformação. Essas feridas cada vez mais expostas podem ser materializadas pelas conurbações, grandes e desordenadas extensões urbanas. É cimento no lugar de chão, é concreto no lugar desses ecossistemas, os complexos industriais e a sua alta produção de resíduos – exemplifica.
Estamos vulneráveis. Precisamos ligar o sinal vermelho, porque o amarelo já foi acionado há 20 anos.
NATHALIE BOIASKI
Professora da UFSM
Cientistas alertam que as emissões de gases de efeito estufa, as mudanças de temperatura, do nível de chuva e até do número de animais podem causar desequilíbrio ambiental. O mesmo é dito sobre a alteração do pH (índice que indica o nível de alcalinidade, neutralidade ou acidez de uma solução aquosa) dos oceanos. Estudos indicam que os oceanos estão 27% mais ácidos justamente por conta da perda de biodiversidade. Um estudo publicado no periódico científico Communications Biology identificou que a acidificação desestabiliza o equilíbrio ecológico das algas e prejudica os recifes de corais e outros organismos, como alguns tipos de mariscos, algas, plânctons e moluscos, dificultando sua capacidade de formar conchas e levando ao seu desaparecimento.
Em 2015, durante a COP21, na França, 191 lideranças assinaram o Acordo de Paris, comprometendo-se a apresentar na COP26 estratégias para diminuir as emissões, ajudando a limitar em até 1,5°C o aumento da temperatura global. Entre os motivos pelos quais os países devem trabalhar em conjunto para que a temperatura média global aumente apenas até esse patamar estão menor risco de escassez de alimentos e água, a extinção de menos espécies e a diminuição das ameaças à saúde humana decorrentes da poluição do ar, da má alimentação e da exposição ao calor extremo. Além disso, o crescimento econômico teria impacto reduzido. Porém, se o planeta alcançar 2°C a mais na temperatura, os impactos podem ser intensos e generalizados sobre a natureza e os seres humanos: um terço da população mundial seria regularmente exposta a um calor severo, causando problemas de saúde e mais mortes relacionadas às altas temperaturas, recifes de corais de água quente seriam destruídos e o gelo do mar Ártico derreteria inteiramente pelo menos um verão por década, com impactos sobre a vida selvagem e as comunidades. Também não está descartada a perda irreversível de gelo na Groenlândia e na Antártica, causando a elevação do nível dos mares ao longo dos anos.
– Se seguirmos no ritmo atual, há grandes chances de termos mais pandemias, e mais violentas. Estamos vulneráveis, a sociedade já está doente de alguma maneira. Precisamos ligar o sinal vermelho, porque o amarelo foi acionado há 20 anos. O Acordo de Paris é uma agenda que os países precisam seguir e não estão seguindo – acrescenta Nathalie.
Com mais de 500 artigos científicos publicados, a maioria sobre o impacto das interferências humanas no meio ambiente e na saúde, o médico patologista Paulo Saldiva, professor e pesquisador na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), afirma que é preciso falar também dos ambientes urbanos, onde as ondas de calor se acentuam.
– O surgimento das cidades, o domínio do método de produção de alimentos, que permitiu que passássemos de caçadores/coletores para produtores nos fixou e fez com que a população aumentasse, e, então, foi possível haver doenças de alta contagiosidade. Antes, não havia densidade populacional para isso. Se surgissem, eram autolimitadas, porque o grupo era pequeno. Quando temos um número maior de pessoas, ganhamos como civilização, com trocas de experiência e geração de cultura. Ao mesmo tempo, porém, deixamos as pessoas mais próximas entre si, num ambiente insalubre – diz Saldiva.
Rafael Corteletti, arqueólogo e professor do bacharelado em Arqueologia na UFPel um dos idealizadores do projeto de divulgação científica Arqueologia das Epidemias, acrescenta que os primeiros aglomerados urbanos, há cerca de 10 mil anos, foram também os lugares das primeiras doenças de contágios maiores, porque as pessoas começaram a viver juntas. A febre tifoide ou o cólera tinham ligação direta com a água contaminada pela falta de saneamento básico nessas primeiras aglomerações urbanas porque, naquele período, os humanos faziam suas necessidades fisiológicas muito perto das fontes de água que consumiam. À medida que os séculos se passaram e mais e mais cidades surgiram, esse tipo de situação só aumentou.
Corteletti lembra a existência de pandemias em outros momentos históricos como consequência direta do contato com animais selvagens, que acabaram transmitindo doenças para os humanos. Um exemplo é a peste bubônica, doença causada por uma bactéria que atingiu o continente europeu no século 14. A bactéria é encontrada em ratos hospedeiros, e a doença, transmitida para os humanos por picadas de pulgas contaminadas. A partir daí, a peste pode passar de humano para humano pelas secreções do corpo ou pela via respiratória. Os historiadores acreditam que a doença surgiu na Ásia Central e foi levada por mercadores para a Europa. A doença está intimamente ligada à falta de hábitos de higiene e atingiu, praticamente, todo o continente, resultando na morte de milhões de pessoas.
Para Nelson Fontoura, diretor do Instituto de Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a circulação de pessoas no mundo fez com que patologias se espalhassem com mais rapidez.
No mundo todo, são 8 milhões de pessoas que morrem de forma prematura todos os anos por conta das emissões de poluentes. E o custo dessas mortes, seja pelas internações hospitalares ou pela perda da capacidade produtiva, é muito maior do que o custo de abater as emissões. Então, estamos fazendo mal ao planeta e também ao nosso bolso.
PAULO SALDIVA
Professor da USP
Saldiva também acredita que a globalização ajudou a disseminar as epidemias:
– No mundo atual, acrescenta-se a velocidade de disseminação. Para virar uma pandemia, o cólera precisou que criassem o Suez, o Panamá e o navio a vapor. Então, alguém com cólera atravessou o oceano, levando a doença. A gripe espanhola teve aquela magnitude no início do século 20 devido ao deslocamento de tropas na Primeira Guerra Mundial. Agora, se temos uma variante Delta na Índia, em quatro semanas ela está em 90 países.
Do ponto de vista tecnológico, o pesquisador da USP acredita que a humanidade já tem as ferramentas para reduzir o aumento da temperatura global. Porém, é preciso uma mudança cultural na sociedade:
– Uma pessoa que vai de carro até a padaria pega 2 mil quilos de lata para andar 200 metros não é alguém ruim para o ecossistema, ela foi criada nessa situação. A mesma coisa ocorre com o tabaco. Tivemos uma redução de 35% da população fumante para menos de 10%. E não foi por conversão de fumante para ex-fumante. É que os fumantes morreram e veio uma nova geração que não teve o cigarro associado a atributos artificiais como sedução, poder, sucesso e habilidades esportivas.
Saldiva acrescenta que a mudança de comportamento relacionada à proteção do meio ambiente envolve intensificar o uso de energia solar e dos carros híbridos, a adoção de outros meios de transporte e a redução de energia, que ajudam diretamente na redução do efeito estufa. Ao reduzi-lo, relata, diminuem-se também os poluentes locais, como o monóxido de carbono, o dióxido de enxofre, o óxido de nitrogênio.
– No mundo todo, são 8 milhões de pessoas que morrem de forma prematura todos os anos por conta das emissões de poluentes. E o custo dessas mortes, seja pelas internações hospitalares ou pela perda da capacidade produtiva, é muito maior do que o custo de abater as emissões. Então, estamos fazendo mal ao planeta e também ao nosso bolso – explana Saldiva.
Para os pesquisadores consultados por GZH, é falsa a ideia de que estamos em um lado e o meio ambiente no qual vivemos, do outro. Estamos num ecossistema complexo do qual fazemos parte, ou seja, precisamos olhar para as populações e o entorno do espaço habitado de maneira conjunta. Kruger, por exemplo, trabalha com o conceito de one health, que tem o pressuposto de pensar em três grandes grupos que se interligam e se sobrepõem: a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. Dentro dessa perspectiva, toda e qualquer alteração que ocorra no meio ambiente impactará imediatamente nos outros dois grandes grupos, os da saúde animal e humana.
Saldiva aponta que “é chegado o momento de criarmos a sociedade protetora do ser humano. Não ficaremos bem se não tivermos um meio ambiente adequado”.
– Achávamos que tínhamos a capacidade de controlar a natureza, mas não temos. Chegamos no topo. Mas quero deixar uma mensagem de otimismo para as novas gerações: o dom da utopia e da esperança, de que eles ainda podem mudar este mundo – finaliza o professor da USP.