Por Bernardo Lewgoy
Professor do Departamento de Antropologia da UFRGS
Por Caetano Sordi
Doutor em Antropologia pela UFRGS
Em que pesem as mirabolantes teorias da conspiração ligadas ao Laboratório de Virologia da cidade chinesa de Wuhan, tudo leva a crer que origem do vírus causador da presente pandemia deva ser procurada em um local bem mais prosaico. A saber, em um dos muitos “mercados úmidos” daquela cidade, onde, em condições propícias, o patógeno teria efetuado o salto evolutivo que caracteriza a emergência de doenças compartilhadas entre animais e humanos (zoonoses).
Repetindo um conhecido enredo, acredita-se que algum animal silvestre ou doméstico, entre os vários oferecidos à venda no mercado de Wuhan, teria servido de ponte para o agente infeccioso passar de morcegos a humanos, cabendo ao pangolim (bicho parecido com o tatu sul-americano) o protagonismo da história, na hipótese mais conhecida.
Em janeiro, a mão forte do Estado chinês foi rápida em decretar o fechamento do local, assim como a proibição do comércio de animais selvagens em todo o país. Desde então, diversas vozes no debate internacional têm defendido a abolição completa dos mercados úmidos, de modo a estancar o que se entende ser a casa de máquinas de múltiplas pandemias.
Todavia, se essas exortações manifestam preocupações genuínas com a saúde e o bem-estar de humanos e animais, por outro lado também carregam o risco de reproduzir estereótipos e preconceitos contra os modos de vida asiáticos, especialmente em relação aos chineses.
Com efeito, há tempos que os mercados úmidos – assim chamados em oposição aos mercados “secos”, de produtos não vivos e manufaturados – habitam certo imaginário exotizante sobre o Leste Asiático como lugar das inversões mais radicais dos tabus alimentares ocidentais, seja pelo consumo do excessivamente selvagem e longínquo (morcegos), seja pelo demasiadamente doméstico e próximo (cães). No entanto, o foco exclusivo sobre essas excentricidades ignora que a dieta proteica média dessas populações é mais semelhante à nossa do que se imagina, sendo o uso alimentar e medicinal de animais selvagens, no mais das vezes, uma questão de nicho.
Não há dúvidas de que o cotidiano dos mercados úmidos envolva encontros humano-animais propícios para o surgimento de zoonoses. Contudo, o mesmo pode ser dito de outros lugares do mundo globalizado, em que a supressão de habitats naturais e a industrialização da produção animal engendram condições ainda mais favoráveis para o aparecimento de doenças emergentes. Basta recordar que o surto de H1N1 de 2009 partiu de uma granja industrial de porcos no México, e que as crises da Vaca Louca, nos anos 1980 e 1990, ocorreram nas altamente tecnificadas criações bovinas europeias.
Em artigo recentemente publicado no jornal inglês The Guardian, Jonathan Foer e Aaron Gross puseram o dedo na ferida da pandemia que enfrentamos: ao liberar patógenos mortais em nosso frágil meio ambiente, o modo como criamos e comemos animais ameaça nossa sobrevivência. Não se trata do terrível aquecimento global ou da extinção em massa de espécies: de origem antrópica fartamente documentada, esses problemas são já matéria de consenso na comunidade científica internacional. Por serem fenômenos de efeito lento e progressivo, nos acostumamos a minimizar sua importância, para alegria de negacionistas climáticos, governos extremistas, desmatadores, mineradores e grandes corporações petroleiras. O drama do coronavírus é o completo oposto desse cenário, e talvez por isso nos auxilie a tomar a consciência necessária para que desenvolvamos o que o sociólogo Ulrich Beck chamou de “catastrofismo emancipatório”.
Seus efeitos são dramáticos e imediatos, convocando um sentido de urgência e reflexão profunda no modo como nos relacionamos com o meio ambiente e os animais.
Nesse sentido, os combalidos animais selvagens vendidos nos mercados úmidos são apenas o sintoma mais visível de um problema muito maior. Se não desarmarmos o coquetel explosivo das relações predatórias que mantemos com os demais seres que habitam a Terra, só nos resta esperar a próxima pandemia – quiçá ainda mais mortal.