Professor de Climatologia e Oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Eliseu Aquino dedica-se há quase 30 anos aos estudos da Antártica e das mudanças ambientais globais. Aos 51 anos, ele aponta que os cientistas já observam alterações no ciclo hidrológico no Rio Grande do Sul. Segundo o climatologista, a agricultura será o setor mais afetado entre 2025 e 2040. GZH conversou com o especialista sobre a situação no Estado e sobre o mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no início de agosto.
Quando os cientistas começaram, de fato, a se preocupar com as mudanças climáticas no planeta?
Nos anos 1960 e 1970, os climatologistas já afirmavam que a Terra iria aquecer, se a humanidade continuasse emitindo gases de efeitos estufa (CO2), usando carvão e desmatando, porque eles conheciam o comportamento e a composição química da atmosfera. Mas uma das perguntas que se fazia nos congressos, na época, era: se ela aquecer, qual o impacto nos fenômenos e no clima? Esses mesmos grupos de cientistas demandaram que se formalizassem nos congressos científicos como de meteorologia, climatologia e negociações internacionais científicas mesas de discussão sobre a mudança climática porque, até então, o tema não estava na agenda científica. E essa discussão foi crescendo porque os cientistas perceberam que precisavam comunicar esses prognósticos iniciais aos tomadores de decisão. Assim, a Organização Meteorológica Mundial foi provocada a criar o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para passar a abastecer a humanidade com esses relatórios.
O que se falava sobre a situação climática do Rio Grande do Sul nesse período inicial das discussões oficiais?
Já nessa época, os primeiros modelos ainda básicos e rudimentares sobre a alteração do clima mostravam que a circulação atmosférica seria intensificada na Região Sul do Brasil, pelas suas latitude e geografia. Por conta da bacia do Prata, com os Andes a oeste, a Antártida ao sul e a Amazônia ao norte. E essa mudança na circulação atmosférica significava eventos de tempestade mais intensos nos meses quentes e frentes frias mais reforçadas gerando chuva e tempestades de alto impacto.
Os prognósticos de mais de 50 anos estão se confirmando.
Sim, viemos observando isso. Várias frentes frias vieram com intenso impacto. Um exemplo: a mais recente teve trovoadas, sem desastres. Teve muita chuva, em pouco tempo, mas sem grandes mudanças num ambiente que já estava com déficit hídrico. Outra possibilidade foi como ocorreu no inverno do ano passado, com frentes associadas a sistemas explosivos. Choveu e teve uma gigantesca inundação no sul do Brasil. Esses eventos, o de agora, as ondas de frio, a estiagem e essas tempestades, são, no nosso ponto de vista da atmosfera, associadas a um planeta mais quente. Um planeta mais quente mexe com a circulação, fortalece eventos meteorológicos em algumas regiões, como o Sul, uma atmosfera mais aquecida carrega mais vapor d’água, alimenta mais as nuvens e deixa-as com capacidade de volume de chuva e tempestades mais intensas.
Essas constatações sobre o Rio Grande do Sul também vêm sendo observadas pelo Centro Polar e Climático?
Até o relatório do IPCC (divulgado em agosto deste ano), a equipe do laboratório já observava os dados e eventos meteorológicos e climáticos do Rio Grande do Sul. Nos últimos 50 anos, o Estado ficou 1,2°C mais quente, a estação do ano que mais aqueceu foi o inverno, as estações passaram a ter mais chuva de modo geral dos anos de 1970 até agora. Comparando os anos de 1940 com a década de 2000, está chovendo no Estado, em média, 9% a mais na primavera, 7% a mais no verão e 17% a mais no outono. Significa que está chovendo mais nas estações quentes. E observamos que aumentou a chuva, mas sempre associada a fenômenos mais intensos ou que, normalmente, têm facilidade de se tornarem intensos – os chamados sistemas convectivos.
Mas, mesmo com essas chuvas mais intensas no Estado, seguimos com déficit hídrico. Há uma explicação científica para a questão?
Sim, no Rio Grande do Sul, detectamos nos 20 anos mais recentes que existem eventos de chuva concentrada. A chuva do mês inteiro, às vezes, ocorre em menos de 24 horas, e passamos o restante dos 25 a 28 dias sem chuva. Por isso, mesmo, a gente, olhando o cenário de previsão futura de que choverá mais no Estado, a notícia ruim é que essa chuva não é uniforme ou bem distribuída. Já observamos essa situação dos anos de 2000 até agora nos relatórios do IPCC. Quando olhamos o sistema de esgotamento de água das cidades, o tamanho do telhado de um shopping center ou em casa, estimamos valores extremos. O que ocorre é que, frequentemente, está chovendo muito acima do mais esperado em curto tempo, causando alagamentos. Em seguida, porém, o recurso hídrico some porque estamos sempre com longos períodos sem precipitação. Para abastecermos o recurso hídrico no solo, o certo seria sempre ter uma chuva penetrando no solo para mantê-lo úmido. Quando há nas margens dos rios ou nas áreas de formação de mananciais ou nascentes vegetação preservada, elas guardam essa umidade e vão cedendo lentamente. É quase uma poupança de recurso hídrico. O problema é que, nas últimas décadas, invadimos as margens de rio e as áreas de preservação permanentes e, por consequência, levamos o sistema ao limite. Por isso, vivemos sempre sem água e, de repente, com dilúvio.
Nas últimas décadas, invadimos margens de rios e áreas de preservação permanentes. Assim, levamos o sistema hídrico ao limite. Por isso, vivemos sempre sem água e, de repente, com dilúvio.
De alguma forma, isso acaba afetando a agricultura local?
Já estamos observando uma pequena tendência de diminuição de chuva no inverno. Significa que o ciclo hidrológico está sendo alterado com a mudança climática nesse aspecto importante do nosso clima. Na prática, o agricultor do Rio Grande do Sul está acostumado a passar o inverno com bom regime hídrico, capaz de suportar primavera e verão mais secos. Porém, nas duas últimas décadas começamos a enfrentar estiagens e invernos mais quentes, começamos a acumular em alguns invernos déficit hídrico. Daí, entramos verão com chuva muito concentrada, mantendo o déficit hídrico, aumentando o desastre e o custo de produção. É tudo extremamente danoso do ponto de vista da qualidade de vida no ambiente e de qualquer economia que se queira pensar. Podemos falar que em 2004 e 2005 tivemos um baque econômico no Rio Grande Grande por estiagem e seca severa, a economia baseada na agricultura fez PIB negativo no Estado devido a eventos climáticos. Em 2012, tivemos uma estiagem severa, com danos milionários. A estiagem de 2020/2021 só não foi ruim para a agricultura no Rio Grande do Sul porque choveu bem em janeiro deste ano e era, exatamente, o momento ideal para as culturas do período. Foi somente sorte. Se não tivesse ocorrido, seria um desastre do ponto de vista financeiro. Mas, quando olhamos para o pequeno agricultor, ele sofreu porque faltou água até para os animais. Vamos encontrar prejuízos em escalas diferentes. O fato é que a agricultura sofrerá muito no cenário 2025-2040. Nos municípios e no Estado precisamos considerar que futuros gestores públicos e tomadores de decisão tenham a agenda do meio ambiente como primordial.
Não há como mudar esse cenário?
Não. Podemos trabalhar para minimizar os efeitos. A nossa janela de oportunidade é nos prepararmos e, de forma urgente, iniciarmos um movimento para diminuir a emissão de gases, melhorar o transporte público e investir em energia alternativa limpa – solar, eólica e hidráulica. Mas não mudaremos o cenário em que vivemos hoje e que deve se intensificar nas próximas duas décadas. Não tem volta. O Rio Grande do Sul, com as mudanças climáticas, facilmente terá mais estiagens e secas, mais chuvas intensas concentradas, mais ondas de calor com maior intensidade e duração em comparação com décadas anteriores e ainda ondas de frios mais robustas que, inclusive, podem ocorrer no verão, com friacas em pleno Natal. Quando analiso esses casos individualmente, todos engrenam nesse padrão de mudança de circulação geral da atmosfera. O que está sendo previsto: a temperatura aumentar até 1,5°C, o que o acordo de Paris quer evitar até 2050. O que nós já sabemos: atingiremos +1,5°C até 2040, lamentavelmente. Nesse cenário, de aumento de 1,5°C, é certo que choverá de forma irregular, concentrada e intensa no sul do Brasil. Se chegarmos ao aumento de 2°C na temperatura média global, que no nosso ponto de vista deve ocorrer de fato até 2050, esse cenário intensificará ainda mais na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande do Sul. Se chegarmos entre 2°C e 4°C, que é realmente uma grande preocupação, os fenômenos se intensificarão muito mais ainda.
O que seria essa intensificação?
Vou te dar um exemplo que estudamos: os ciclones extratropicais, que ocorrem desde sempre no sul do Brasil, que impulsionam frentes frias, ajudando na produção agrícola, trazem chuva, e por isso nosso inverno não é seco como no restante do Brasil. Vivíamos com a história dos invernos dos nossos avós: mais úmidos e frios. O que está ocorrendo agora? Esses ciclones, com a mudança climática atual, tendem a migrar mais e se reposicionar mais ao Sul. O que ajudaria, em alguns casos, a diminuir a chuva para nós. Mas estamos olhando a quantidade e a posição desses ciclones e percebemos que os ciclones mais intensos, chamados de explosivos, não mudaram de posição, seguem se formando e atuando entre o Uruguai, o Rio Grande do Sul e na nossa costa. Parecem estar sugerindo mudança de localização, mais próximos da costa, e um sinal de intensificação. Meu avô diria: “Tem, em média, dois ciclones explosivos no Estado por ano”. Continuaremos com aqueles dois, mas mais intensos. E isso significa mais desastres por inundação e tempestades severas, como a de junho de 2020. Isso combina tecnicamente num cenário de planeta mais quente para a região do Rio Grande do Sul.
Precisamos resolver a questão local, do Rio Grande do Sul, mas me parece que estamos conectados com o restante do Brasil. Por exemplo, as queimadas na região da Amazônia influenciam diretamente o clima no Estado.
Exato. Tem uma ligação direta. Parte desses eventos tempestuosos que relatei e estamos monitorando, coletamos água e fazemos a análise da origem dessa umidade para entendermos o que está ocorrendo na América do Sul. Temos eventos em que, obviamente, a umidade vem da Amazônia. O que estamos observando à medida que se amplia o desmatamento da região amazônica, e a área sul da floresta está diminuindo ao ponto de já se falar em savanização da Amazônia, é que esse efeito contribui para uma diminuição do aporte de umidade do norte para o sul do Brasil, facilitando a estiagem por aqui. O outono, a primavera e o verão no Rio Grande do Sul contam com esse aporte de umidade da Amazônia. Mas essa variabilidade intensificada, atraso ou chegada em menor quantidade são cada vez mais influenciadas pela diminuição da floresta, impactada pelo desmatamento e pelas queimadas.
O efeito do desmatamento da Amazônia, e já se fala de savanização de uma área da floresta, contribui para uma diminuição do aporte de umidade do Norte para o Sul do Brasil, facilitando a estiagem por aqui.
Com a mudança de clima no Estado, podemos ter doenças até então comuns apenas em outras regiões do país?
Em 2040, teremos no Rio Grande do Sul mais condições favoráveis para dengue, zika vírus e outras doenças tropicais porque o clima estará mais quente. O clima subtropical do Rio Grande do Sul mais seco trará perda de biodiversidade e mais eventos extremos associados. Em cidades da Região Metropolitana, que já esquentam mais nas ondas de calor e têm ar poluído, automaticamente as pessoas terão mais doenças cardiovasculares e respiratórias, aumentando o número de mortes. Entre 2040 e 2050, quase 90% da população mundial estará morando em cidades grandes, como São Paulo. E a maior parte dela já convive com milhares de mortes por poluição atmosférica, por ambiente ruidoso e insalubre que leva a estresse físico e mental e depressão, por exemplo.
Mas o senhor ainda vê alternativas para minimizar a situação no Estado e no mundo?
Enfrentar a questão ambiental pela ótica do IPCC nos faz cobrar dos gestores públicos, dos agentes financeiros e do setor privado ações que vão desde tornar híbrido o trabalho, com home office, para poupar deslocamento, e o uso de energia limpa, como a eólica e a solar, nos prédios e nos bairros, para reduzir o consumo de energia elétrica. Trabalhando de casa, se consumirá nos comerciantes locais, dentro do próprio circuito, deixando de circular com o carro. A pandemia, infelizmente, jogou no nosso colo a possibilidade de reduzirmos deslocamento desnecessário. Estamos no antropoceno, época definida pelos cientistas como aquela em que o homem assumiu o controle do planeta: a natureza está devastada, os oceanos estão poluídos e a atmosfera mudou. Estamos cometendo um ecocídio: desmatando florestas tropicais, condenando a biodiversidade que nem conhecemos, e o ser humano também sumirá, porque perderá água e qualidade do ar, e assim por diante. O termo para isso tudo agora é crise climática. Chegamos no nosso limite. O que faremos com nossa inteligência e o potencial criativo para combatermos a situação? Cada nação trará alternativas criativas e elas só precisam ser estimuladas para virem as ideias, com as iniciativas privadas e públicas e com uma robusta legislação ambiental nos guiando para isso. O relatório de IPCC diz que é preciso fugir urgentemente do carvão, do petróleo, que não devemos mais investir em tecnologia ou em energia que não sejam limpas. Devemos fazer ciência e tecnologia com parque eólico e com energia solar. O Estado precisa investir em política e ações que pensem sobre isso e sobre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU. O Rio Grande do Sul não terá benefício com minas de carvão, por exemplo. Não estamos mais na era da produção industrial clássica. Precisamos de chip, na verdade.