Quase dois anos após o início de uma pandemia que, na China, é combatida com algumas das medidas mais rigorosas do mundo, reclamações começaram a surgir no país contra a estratégia de tolerância zero à covid-19. Foi em Wuhan, capital da província chinesa de Hubei, onde o coronavírus surgiu pela primeira vez, ainda em dezembro de 2019.
Enquanto muitas nações — inclusive no cauteloso continente asiático — tentam aprender a conviver com o vírus, a China mantém as fronteiras fechadas e decreta confinamentos e testes em larga escala, às vezes motivados por apenas um caso.
Os custos da estratégia são bem conhecidos pelos 210 mil habitantes de Ruili, uma cidade na fronteira com Mianmar que já passou por três importantes confinamentos e frequentes séries de testes, o que deixou muitos negócios à beira do colapso.
Um comerciante identificado apenas como Lin afirmou que sua joalheria está por um fio, sem turistas ou clientes, afastados pelas restrições sanitárias.
— Continuamos operando (...), mas estamos sobrevivendo — disse Lin, que não revelou o nome completo por medo de represálias.
Em uma entrevista de muita repercussão este mês, o professor Guan Yi, da Universidade de Hong Kong, questionou a estratégia chinesa, argumentando que o país não deveria adotar testes em larga escala "a cada oportunidade" nem administrar doses de reforço de vacinas sem ter dados suficientes sobre sua eficácia.
Durante o primeiro ano da pandemia, a China conseguiu interromper com sucesso as infecções. Mas a variante Delta mostrou que é mais difícil de ser contida.
Nas últimas semanas foram detectados casos em mais de 40 cidades, mas o número de contágios continua sendo muito pequeno em comparação com outros países, ainda mais em uma população de 1,4 bilhão de pessoas. Porém, milhões de chineses foram confinados e viram suas vidas afetadas: casamentos cancelados, funerais com duração reduzida, escolas fechadas e voos suspensos que deixaram milhares de turistas bloqueados.
Indiferentes à pressão
Demitidos quando não conseguem controlar os contágios, os funcionários dos governos locais optam por medidas cada vez mais drásticas. Uma região ofereceu milhares de dólares em troca de informações sobre um foco de casos.
— Pequim enfrenta uma pressão interna crescente para mudar para uma abordagem mais flexível — declarou Yanzhong Huang, do Council on Foreign Relations.
A saga desesperada de um homem pelo país provocou comoção nas redes sociais. O empresário saiu de Pequim para uma viagem de negócios e não conseguiu retornar à capital apesar de estar vacinado, de ter apresentado resultado negativo em um teste e de não ter viajado para uma área considerada de risco.
Depois que o incidente viralizou nas redes sociais, as autoridades admitiram que algumas pessoas podem ter sido bloqueadas por engano.
As redes também explodiram quando, na região central do país, funcionários do serviço de saúde mataram um cachorro enquanto os proprietários do animal estavam em quarentena.
— Como podemos confiar em um Estado que diz servir ao povo, mas aplica a lei tão brutalmente? — questionou uma pessoa.
Mas a maioria dos analistas duvida que as autoridades locais revisarão a estratégia antes dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, em fevereiro, ou até antes do importante Congresso do Partido Comunista no final de 2022.
Uma eventual flexibilização também dependerá de um avanço das vacinas disponíveis. A China apostou em cinco fármacos locais, mas suas taxas de proteção são inferiores às vacinas produzidas em outros países.
Algumas fontes do governo já expressaram dúvidas sobre a eficácia contra a variante Delta. A imprensa estatal, no entanto, tenta impedir qualquer debate sobre a estratégia chinesa, considerada um sucesso.
No limite
Enquanto isso, em Ruili a frustração dos moradores ficou evidente com uma publicação na rede social social WeChat do ex-vice-prefeito Dai Rongli: ele afirmou que as medidas "estão acabando com as últimas gotas de vida" da cidade.
— Apenas os que estão nesta situação sabem o quanto nos sentimos miseráveis — declarou um morador.
A imprensa local informou que um bebê já foi submetido a mais de 70 testes de covid.
Sem renda, um produtor de vídeos de sobrenome Lu disse que usou todas as economias para pagar o aluguel de seu escritório.
— Não posso aguentar muito mais tempo — disse.
Alguns moradores decidiram que não podem esperar mais por mudanças. Um comerciante de jade de sobrenome Wen disse à AFP que deixou a cidade com sua família após meses de luta.
— Não há negócios para fazer em Ruili — declarou.