Para economizar energia ao percorrer distâncias maiores, os seres humanos passaram a andar sobre os dois pés, com as pernas estendidas e a coluna ereta. O que, hoje, soa óbvio, não era tão lógico assim há cerca de 3,6 milhões de anos, época na qual, segundo estudos, apareceram os primeiros bípedes que se tem conhecimento.
Graças a essa evolução, os seres humanos passaram a poupar muita energia.
O segredo desta economia está na postura ereta e bipedal que adotamos ao caminhar, oscilando o corpo para cima e para baixo e, assim, otimizando o mecanismo pendular. Dessa forma, poupamos até 70% de energia.
— A caminhada é um traço comportamental fundamental no processo evolutivo. É altamente funcional, pois, durante milhões de anos nosso organismo se adaptou para realizar esse tipo de movimento. Simplificando: é algo que somos preparados evolutivamente para fazer, por isso é tão prazeroso — diz Leonardo Tartaruga, professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Esefid/ UFRGS).
Nesse trajeto de milhões de anos, a caminhada também se desenvolveu: foi deixando para trás o aspecto exclusivo de sobrevivência e, mais recentemente, ganhou ares de exercício físico. A partir dessa nova percepção, cresceu o interesse em investigar a atividade e seus benefícios para a saúde, resultando em inúmeros estudos.
Um dos mais recentes, publicado no começo de setembro, associou a quantidade de passos por dia à mortalidade. Mas esse não é o único. Pelas bibliotecas virtuais, há uma infinidade de pesquisas que analisam os mais diversos pontos dessa atividade básica, simples e essencial na existência humana.
O que melhora?
Acessível e democrática, a caminhada oferece diversos benefícios para a saúde física: melhora o transporte de oxigênio pelo corpo, a força do coração e o fluxo sanguíneo cerebral. Também ajuda na osteoporose, reduz a chance de trombose venosa profunda, o risco de infarto, de acidente vascular cerebral, controla a pressão e melhora o diabetes, enumera o médico Glauber Signorini, diretor-técnico do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul.
— O corpo humano não foi feito para ficar parado. O movimento faz a máquina ser funcionante. É como um carro que não é ligado: começam os problemas — compara Signorini.
De lambuja, o exercício dá uma força para a saúde mental, diminuindo a ansiedade, a depressão e melhorando a autoimagem.
Para além de tudo isso, a caminhada tem impacto social importante na vida de seus praticantes. À frente de diversos projetos da Esefid, Tartaruga observa que grandes repercussões em grupos de maior vulnerabilidade, como em indivíduos com Parkinson, por exemplo:
— O Parkinson é uma doença degenerativa que aparece em pessoas de meia idade que já têm a vida estabelecida. Então, começa esse desligamento com as relações sociais. Aí, vem o exercício como uma coisa incrível. Os familiares vêm nos agradecer. Temos alunos que voltaram a patinar, a dirigir e a caminhar para cumprir distâncias mínimas que impactam muito socialmente.
Quantos passos devo dar?
Bastante popular, a recomendação de dar 10 mil passos por dia não é uma diretriz científica. Conforme pesquisadores, a ideia de quantificar os passos diários surgiu na década de 1960, quando uma empresa japonesa lançou um pedômetro batizado justamente de manpo-kei, que significa “medidor de 10 mil passos”.
Agora, uma pesquisa realizada pela University of Massachusetts, nos Estados Unidos, avaliou se o número de passos diário e a intensidade deles tinha associação com o risco de morte prematura em homens e mulheres de meia idade. Publicado no The Journal of the American Medical Association, o trabalho acompanhou 2.110 adultos por 10 anos e conseguiu evidenciar que aqueles que deram ao menos 7 mil passos por dia tiveram risco de mortalidade 50% a 70% menor na comparação com aqueles que caminharam menos.
A intensidade, por sua vez, não teve efeito negativo e nem positivo. “Nossos achados apoiam os de estudos anteriores, sugerindo que o aumento de passos por dia entre a parte menos ativa da população pode fornecer benefícios de mortalidade”, escreveram os autores.
Apesar dessa medida, o médico do esporte do corpo clínico do Hospital Mãe de Deus, Felix Albuquerque Drummond, que também é diretor do Instituto de Medicina do Esporte, explica que andar entre 5 mil e 7 mil já trariam vantagens aos seus praticantes.
— Isso varia conforme a idade, a condição de saúde dessa pessoa, se tem doença associada, se é obeso. O fundamental é que devam se mexer dia sim e dia não, ou diariamente, se estiver acostumada. Mas podemos dizer que, de 4 mil a 8 mil passos por dia, é uma recomendação razoável.
Antes de começar
Simples, a caminhada está a um par de tênis de distância daqueles interessados em praticá-la. Contudo, antes de sair por aí batendo perna, a recomendação é fazer uma revisão médica, orienta Signorini. Segundo o cardiologista, no Brasil, menos de 5% da população investe da medicina preventiva.
— Todo o indivíduo que vai iniciar a atividade deveria, após os 30 anos, fazer avaliação para saber se está apto. Não é colocar tênis e sair — argumenta, fazendo uma analogia aos cuidados tomados antes de fazer uma cirurgia: ninguém passa por um procedimento desse porte sem antes passar por uma revisão.
Esse cuidado deve ser redobrado no caso de pessoas com doenças prévias, como hipertensão, por exemplo.
Para começar
Indivíduos sedentários e de mais idade devem começar gradualmente, isto é, caminhar o suficiente para ficar ofegante, sem preocupação com a intensidade ou duração. Drummond sugere que se pratique a caminhada acompanhado e conversando.
— Quando tiver dificuldade para conversar, é o momento de parar ou reduzir — fala o especialista do Mãe de Deus.
Embora o tempo para atingir esse estágio seja variável entre as pessoas, o ideal é começar com períodos menores. Por exemplo: 10 minutos em um dia, 15 minutos no seguinte, e assim, sucessivamente. No começo, diz o médico do esporte, pode-se treinar em dias intercalados, dependendo da resposta do organismo.
Ao atingir um tempo razoável, é a vez de mexer na intensidade do exercício, que deve aumentar.
— Depois de um tempo, acontece de a pessoa querer correr. Para isso, é imprescindível aval médico e acompanhamento do profissional de Educação Física — orienta o médico do esporte.
Não custa lembrar: durante ou após a caminhada, é preciso manter a hidratação, portanto, não deixe de tomar água. Ao terminar o exercício, alongue-se. Sempre que possível, indicam os especialistas, associe a caminhada a um exercício de força, como a musculação ou treinamento funcional.
Momento família
Desde janeiro, a empresária Paula Falcão, 37 anos, e o pai, o aposentado Flávio Falcão, 71, incluíram um novo hábito na rotina diária: colocam roupas confortáveis, calçam os tênis e vão até a pista do Centro Estadual de Treinamento Esportivo (CETE), no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. A caminhada em dupla serve de estímulo para os dias em que a preguiça quer falar mais alto.
As vantagens da incorporação da atividade são várias, diz Paula, e vão desde as mais objetivas, como emagrecimento e melhora do fôlego, até as mais subjetivas, como o contato diário com o pai.
Para o aposentado, o momento com Paula mudou o dia a dia. Quando ainda trabalhava, limitava sua rotina à ida da casa para o emprego e do emprego de volta para casa. Depois da iniciativa, para além do fato de se manter ativo, Flávio conta que eliminou as dores nas costas e que ganhou flexibilidade.
— Eu não conseguia cortar as unhas dos pés e agora consigo! — diverte-se.
Saúde mental é beneficiada
Enquanto cumpria a sétima volta na pista do CETE, a aposentada Carla Buzzacharo, 61 anos, foi interrompida pela reportagem, que a convidou a participar da matéria que você lê aqui. Depois de acenar positivamente, seguiu até completar 10 giros.
Diabética, Carla sempre praticou exercícios, como caminhada e corrida. Em razão da contaminação pelo coronavírus, a aposentada precisou diminuir o ritmo. Percebeu que as corridas ficavam mais difíceis, então, reforçou a caminhada, intercalada com pequenos trotes.
Como ainda não se sente confortável para frequentar academias, é assídua no Centro de Treinamento, sempre pela manhã ou no fim do dia.
— A caminhada ajuda no diabetes, na depressão. Eu preciso caminhar. Às vezes, venho com minhas amigas, mas elas são preguiçosas — dedura.
— Venho conforme minha ansiedade. Perdi minha irmã com covid-19, estava entrando em depressão, e caminhar me ajudou — fala.
Como Carla experiencia na prática, diversos estudos atestam que exercícios físicos, como a caminhada, podem servir como ações preventivas para desordens mentais. Publicada em 2018, uma pesquisa concluiu que o aumento da atividade física é uma estratégia eficaz na prevenção da depressão. Mais: em 2014, um trabalho da universidade de Stanford mostrou que caminhar aumento da criatividade na comparação com o ato de ficar sentado.
Ainda que os mecanismos que atuam nessa relação entre exercícios e depressão não estejam bem esclarecidos, um artigo de 2004 sugere algumas hipóteses. A primeira, chamada de termogênica, sugere que o aumento da temperatura do corpo pode contribuir para a redução dos sintomas de depressão. Outra, já bastante difundida, credita à endorfina liberada após a prática os benefícios. Também foi levantada a hipótese da distração: ou seja, enquanto a pessoa caminha, mantém distantes os pensamentos relacionados à doença.
— Somos um sistema integrado. Quando as pessoas superam o estado de preguiça e vão fazer o exercício, se sentem melhores, mais dispostas — argumenta Drummond.
Embora os resultados gerais não sejam diferentes, caminhar na rua pode ser psicologicamente mais agradável, especialmente na primavera, diz Drummond. Ainda assim, é preciso ficar atento às irregularidades do solo a fim de evitar lesões. Já na esteira, há a possibilidade de manter o ritmo e controlá-lo melhor.
Walkability
O quanto a sua cidade é adequada para caminhar? A resposta é o que pesquisadores chamam de "walkability", que poderia ser traduzido para um bizarro "caminhabilidade", ou ainda, o potencial urbanístico e geográfico que uma cidade tem para fazer a população caminhar. Pesquisas que abordam esse tema já relacionaram essa característica urbana com qualidade de vida e até mesmo com gastos com saúde pública.
— Há estudos que mostram os milhões investidos nisso e o quanto tu evitas de gastos em saúde pública — diz Tartaruga.
Para se ter uma noção real disso, uma pesquisa australiana de 2013 mostrou que pessoas que vivem em bairros com melhores condições para caminhada tiveram custo médio hospitalar cerca de 26% a 37% menor do que aqueles moradores de áreas menos propícias à atividade. Isso ocorreu, sobretudo, em razão de um número mais baixo de internações.
No Brasil, de um modo geral, problemas como pouca acessibilidade e insegurança são fatores que desestimulam as passadas diárias.
— Tem esse dilema das pessoas que ficam uma hora dentro do carro para se deslocar até a academia, e ao chegarem lá, ficam 50 minutos na esteira — ilustra o professor da UFRGS.