Dos vários sistemas naturais de amortecimento do organismo humano, os pés talvez sejam os mais importantes. São eles que recebem toda a carga do corpo quando parado ou em movimento. Para isso, cada pé possui uma estrutura extremamente rica e complexa, composta por 25 músculos intrínsecos (presentes apenas no pé), 10 músculos extrínsecos (que conectam o pé à perna), 33 articulações e 108 ligamentos.
Acontece que, em um contexto urbano e cada vez mais artificial, muitas pessoas deixaram de andar descalças. E, incentivadas pela propaganda, passaram a usar calçados e tênis reforçados por uma parafernália de estruturas rígidas e amortecedores.
— As estruturas todas dos pés acabam se atrofiando com o uso reiterado desse tipo de calçado. É como se alguém passasse a utilizar diariamente um colar cervical para prevenir o pescoço de dores devido ao uso contínuo de telas. Em pouco tempo, a musculatura do pescoço perderia massa, força e funcionalidade — diz Isabel Sacco, coordenadora do Laboratório de Biomecânica do Movimento e Postura Humana (Labimph) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Isabel também encabeça o Projeto Temático “Biomecânica e aspectos funcionais do sistema musculoesquelético de corredores: efeito crônico de exercícios terapêuticos e do envelhecimento”, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Nele participam pesquisadores da USP, da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Universidade de Amsterdã (Universiteit van Amsterdam, UvA), nos Países Baixos, e do Instituto Ortopédico Rizzoli (Istituto Ortopedico Rizzoli, IOR), na Itália.
— Temos publicado os resultados de nossas pesquisas em periódicos internacionais especializados. Entre outros, destaco um artigo publicado em The American Journal of Sports Medicine. Esse texto foi produto de duas pesquisas de doutorado vinculadas ao nosso Projeto Temático. E, nele, mostramos que um treinamento simples para os pés reduziu em duas vezes e meia o risco de lesões em corredores recreacionais — falou a pesquisadora.
Embora democrática e fácil de colocar em prática — basta um par de tênis —, a corrida tem grande prevalência de lesão: até 79% dos corredores podem se lesionar em um ano. Portanto, adotar medidas preventivas para diminuir ou retardar o risco de lesão são as recomendações da especialista:
— Alongamento não funciona. É muito importante para a manutenção da saúde do sistema musculoesquelético, mas não para prevenir lesão. Orientação online e cartilhas para educar o corredor quanto a estratégias preventivas para a corrida, ou ainda condicionamento físico específico, também se mostraram ineficazes. Porque a lesão é multifatorial e não será um calçado ou um aquecimento especial que resolverá esse problema. O que descobrimos em nossa pesquisa foi que a melhor defesa do corredor contra lesão é melhorar a estrutura musculoesquelética dos pés para ganhar força e funcionalidade — afirma Isabel.
Segundo a pesquisadora, o principal fator de risco para lesão é já ter sofrido algum problema anterior. Isso porque o corpo se vê obrigado a fazer uma série de compensações com o intuito de proteger a região lesionada e, assim, fica mais vulnerável a novas lesões. No trabalho feito por Isabel, foram recrutados 120 corredores recreacionais.
Aleatoriamente, metade combinou a corrida com alongamentos, que foram adotados como placebo. E a outra metade combinou a corrida com treinamento para os pés. Depois de oito semanas, o grupo que fez o treinamento teve uma redução de 2,42 vezes no número de lesões, comparativamente ao grupo placebo.
— Exames de ressonância magnética mostraram que, de fato, as pessoas que receberam treinamento tiveram um aumento de volume na musculatura dos pés — observa a pesquisadora.
Essa melhoria da saúde dos pés não contribuiu apenas para diminuir a incidência de lesão ou retardar sua eventual ocorrência. Modificou também a biomecânica da corrida, com um aumento da capacidade de impulsão vertical. Além disso, a prática é benéfica não apenas para indivíduos ativos, mas, também, para os sedentários.
— Já se sabe que um treinamento para a musculatura dos pés, mais especificamente do hálux, o dedo maior pé, fez diminuir em sete vezes o risco de queda em idosos — afirmou.
O treinamento para os pés é simples e pode ser feito em casa, com a ajuda de um software desenvolvido pelo próprio Labimph. O link para acessar é o https://soped.com.br/. Para além dos exercícios, a orientação dos especialistas para fortalecer a musculatura dos pés é andar sem calçados sempre que possível.