— Qual é a vacina?
— Tem Janssen?
— Dói?
— Em quanto tempo fico imunizado?
— Não pode ser a da Pfizer?
— Quer dizer que eu fiquei 1h30min na fila para receber esta vacina?!
— Quando posso beber álcool?
— Esta é a melhor?
— É aquela boa?
— O que você acha desta?
— É a que protege mais?
Na mais urgente e desafiadora campanha de vacinação da história, a rotina dos profissionais de saúde que aplicam os imunizantes contra a covid-19 é exaustiva pelo volume de trabalho, pela celeridade necessária e também pela demandante interação com o público, o que se verifica na repetição de orientações e de respostas frente às dúvidas — e reclamações — mais comuns.
No cenário atual, em que se multiplica o personagem popularmente chamado de “sommelier de vacina” — o escolhedor —, alavancado pelas postagens nas redes sociais, os vacinadores se dedicam a expor argumentos capazes de tranquilizar as pessoas e dar rápida vazão aos estoques, independentemente do fabricante da dose preferida no momento.
Para retratar o dia a dia de enfermeiros e técnicos em enfermagem, além de estudantes de graduação capacitados em cursos específicos, a reportagem de GZH conversou com quem está na linha de frente de movimentadas unidades de Porto Alegre — no caso do Postão do IAPI, no bairro Passo D’Areia, na Zona Norte, chegam a ser aplicadas até 1,2 mil injeções contra as complicações da infecção pelo coronavírus em um único dia. Sobressaem-se os relatos de alegria pela oportunidade de participar da iniciativa que definirá o rumo da crise sanitária, mas também o abatimento decorrente de episódios de impaciência e agressões verbais.
Cassiane Kerkhoff, 46 anos, é enfermeira da Unidade de Saúde Assis Brasil, no Sarandi. Em uma das tardes mais frias do ano, no final de junho, a fila com cerca de 200 pessoas perdeu, de imediato, cerca de 40 delas quando se anunciou, na calçada, que haviam acabado as doses da Janssen. A cena se repete pela cidade com outros imunizantes, mais visados em uma ou outra fase, como o da Pfizer. A informação vai correndo pela fila, no boca a boca, enquanto servidores checam a documentação e preenchem as carteirinhas, adiantando o serviço.
— As pessoas viram as costas e vão embora, de bando. Ficam garimpando a vacina que querem — lamenta Cassiane.
Antes, o procedimento era anotar as informações numa planilha e depois repassá-las para o computador. Agora, os dados são inseridos diretamente no sistema. Quem desiste em cima da hora gera trabalho dobrado, pois o registro tem de ser excluído. A “peneira” do lado de fora não poupa as equipes de situações desagradáveis com quem finalmente entra na sala de vacina.
— Vocês estão f****** mesmo, né? Receberam a CoronaVac — comentou uma mulher, em referência ao imunizante distribuído aos profissionais de saúde no início do ano, quando apenas a fórmula desenvolvida pela farmacêutica Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, era distribuída no país.
Cassiane devolveu:
— Olha, não me sinto dessa forma. Fui das primeiras a serem vacinadas. Não me contaminei em todo esse tempo trabalhando diretamente com pessoas com covid-19 e estou muito feliz com a vacina que recebi. Acho que a senhora não tem que ter esse tipo de percepção.
Sem dizer nada, a paciente ficou só olhando para a enfermeira.
Pessoas mais humildes querem receber a vacina que tem. Não lembro de uma pessoa humilde recusando ou escolhendo.
CASSIANE KERKHOFF
Enfermeira
A unidade atende um público bem variado, de diferentes estratos sociais, mas a fatia que recusa determinados fabricantes farmacêuticos e insiste na caçada de outros é claramente a de poder aquisitivo mais alto, segundo Cassiane:
— Pessoas mais humildes querem receber a vacina que tem. Não lembro de uma pessoa humilde recusando ou escolhendo.
Há de se ter tolerância e resiliência, reconhece a enfermeira. Essa mesma parcela de público costuma protagonizar agressões verbais aos servidores.
— Está demorando! Você é uma plasta! Volta logo para a sala e senta a bunda na cadeira — vociferou alguém certa vez.
Os colegas tentam conduzir e resolver os conflitos, mas houve ocasiões em que a Guarda Municipal precisou ser acionada. O horário de atendimento também é gatilho para embates. As unidades devem fechar às 17h — mesmo que a grande procura force uma extensão desse limite até 18h30min ou mais —, e é comum a distribuição de senhas no meio da tarde, marcando o último habilitado a se vacinar. Se um interessado chega cinco minutos antes do encerramento e descobre que não poderá ser imunizado naquele dia, a frustração transborda. Em um posto com a maior parte do time formada por mulheres, como o da Assis Brasil, as situações mais tensas são desencadeadas por homens.
— Se eu pegar covid, parabéns! A culpa vai ser sua! — gritou um deles, ameaçando ligar para a prefeitura para falar com autoridades.
Cassiane afirma que, por um lado, consegue entender a revolta, mas resume o que sente em momentos assim, especialmente em expedientes de tanto esforço:
— Isso machuca.
Iniciada em janeiro, a campanha nacional de imunização contra a covid-19 já passou por fases e percalços diversos. Responsável pela sala de vacinas da Unidade Básica de Saúde Santa Cecília, a enfermeira Margery Bohrer Zanetello lembra de quando circularam vídeos denunciando casos de doses não aplicadas em idosos, o que gerou revolta e desconfiança por todo o Brasil. Muitas vezes, os profissionais se surpreendiam com explicações e procedimentos sendo gravados — por vezes, às escondidas — pelos usuários.
— Pessoas que já tinham se vacinado voltavam uma semana depois, desconfiando de que a dose não tinha sido aplicada. Sempre achavam que estávamos fazendo algo errado. É muito chato. Tentamos seguir todas as regras do Ministério da Saúde, fazer um trabalho bem feito. Felizmente, a maioria concorda e acha isso, mas esses outros nos desanimam bastante desconfiando —fala Margery, que sonha com vacinação todas as noites, tamanho o seu envolvimento.
É uma experiência enriquecedora, uma retribuição que dou para a sociedade. Em um ambiente de atenção básica, estou aprendendo muito a lidar com as pessoas. Vacinar em um momento histórico também é ótimo.
YANKA ESLABÃO GARCIA
Estudante de Enfermagem
Mas são muitas as recompensas pelos atropelos e pelo estresse diário. Os profissionais que passam o dia manejando ampolas de CoronaVac, Oxford/AstraZeneca, Pfizer e Janssen recebem chocolates, tortas, bolos e pizzas — uma senhora que se alterou voltou depois para pedir desculpas, levando cachorros-quentes. Muitos entregam cartas de agradecimento. No Posto do IAPI, desenhos decoram as paredes: “Obrigado por vacinar minha mãe”, lê-se no traço infantil em uma folha com flores, sol, arco-íris duplo e crianças segurando balões em formato de coração.
Eduardo de Moraes Pinto, 43 anos, enfermeiro, vê gente chorando e até gritando de felicidade. Superadas a fila e a demora, os segundos transcorridos dentro da sala de vacinação são desfrutados em uma atmosfera agradável.
— Quando a pessoa cruza a porta, ela geralmente está feliz, cumprimenta todo mundo. Procuramos deixar o clima o mais leve possível. Não vão nos encontrar de cara fechada. Serve de motivação para as pessoas — comenta Eduardo, que celebra o carinho recebido dos vacinados: — Nos motivamos todos os dias. Eu digo para a equipe: é isso aqui que faz valer a pena o nosso trabalho.
O enfermeiro mantém várias abas abertas no celular, pronto para tirar dúvidas, mostrar informações de fontes oficiais e desmontar fake news.
— “Quero fazer essa”, “não posso fazer aquela”, “tenho contraindicação”, dizem. Muitas vezes, as pessoas mudam de ideia. Tem as que vêm com ideias preconcebidas, e não há Cristo que as convença. “Venho outro dia”, respondem. Quanto mais dias elas demoram, mas risco correm. Informação sem qualidade vai gerando tensão. Não tento convencer, eu argumento. É um pouco cansativo. O discurso é sempre o mesmo — conta Eduardo, que todo dia depara com pacientes mentindo e tentando burlar as regras para tomar uma terceira dose.
Nos postos, a organização e o planejamento para cada dia de vacinação exigem que as equipes se mobilizem antes da abertura dos portões e também para além do fechamento. Checagens, contagens, preparação de ampolas e materiais. Ao longo do dia, podem ocorrer falta de doses, chegada de novos lotes e mudança de faixa etária.
Entre tantos experientes, existem os novatos. Aluna de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Yanka Eslabão Garcia, 23 anos, interessou-se pela atividade de extensão e se inscreveu em janeiro. Fez o treinamento para aplicação de vacina intramuscular e leu os estudos dos imunizantes. Circula por várias unidades da Capital, cumprindo a carga horária.
— Acho que posso falar por todos os estudantes: neste momento, a gente já viu de tudo — revela Yanka.
A principal tarefa é executada dezenas de vezes em um intervalo de horas: a futura enfermeira higieniza as mãos, abre a seringa, aspira a dose em frente à pessoa que a receberá, informa qual é o imunizante e a data prevista para retorno, se necessário. Mostra o volume do imunizante no corpo da seringa e pede que o paciente relaxe o braço — homens tendem a ser os mais tensos e amedrontados, confidencia a aprendiz. Ao final, ela exibe a seringa vazia.
— É uma experiência enriquecedora, uma retribuição que dou para a sociedade. Em um ambiente de atenção básica, estou aprendendo muito a lidar com as pessoas. Vacinar em um momento histórico também é ótimo — comemora.