Em pouco mais de 15 meses, meio milhão de brasileiros morreram em razão de uma doença que pode ser prevenida. Desde o primeiro óbito, notificado formalmente em 17 de março do ano passado, a cada vez que o relógio contou um minuto e 20 segundos, uma pessoa perdeu a batalha contra o coronavírus e deixou o convívio de amigos e familiares.
Uma sucessão de falhas no combate à pandemia, na avaliação de especialistas em saúde, resultou na conta trágica de 500.800 mortes até este sábado (19) e segue sendo uma ameaça.
— É, sem dúvida, o maior desastre sanitário que o país já viveu, com um impacto que vai durar por gerações. Estamos falando de meio milhão de óbitos que, em muitos casos, poderiam ter sido evitados por meio de distanciamento, uso de máscara, testagem e vacinação — analisa o epidemiologista do Hospital de Clínicas Ricardo Kuchenbecker.
Não é fácil ter a dimensão do que representa esse universo de mortes. É como se o Beira-Rio recebesse 10 partidas com sua lotação máxima ou se a Arena enchesse oito vezes e ainda sobrasse gente do lado de fora — e, ao final de cada partida, restasse apenas silêncio.
É como se uma cidade do porte de Florianópolis deixasse de existir, um cidadão por vez, ao longo de 459 dias de luta contra um vírus para o qual não existe tratamento, mas há armas para combatê-lo. O problema é que a sociedade e diferentes níveis de governo escolheram as munições erradas para fazer frente a um adversário tão ardiloso.
— A sequência de equívocos que nos levou a essa situação inclui quase tudo o que se pode fazer de errado. Falta de coerência e unidade entre as múltiplas instâncias da federação e os serviços de saúde para termos uma mensagem única e integrada, má qualidade da comunicação de risco, das medidas de intervenção e do seu real significado. A comunicação dos governos, e não só do federal, foi um desastre — resume o mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard (EUA) Marcio Sommer Bittencourt.
A sequência de equívocos que nos levou a essa situação inclui quase tudo o que se pode fazer de errado. A comunicação dos governos, e não só do federal, foi um desastre
MARCIO SOMMER BITTENCOURT
Mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard
No topo da cadeia de gestão, o governo de Jair Bolsonaro jamais encarou a pandemia como seria necessário. Tratou-a inicialmente como uma gripe sem maior importância, e na sequência apostou em remédios sem eficácia contra o vírus enquanto esnobava a urgência global pela aquisição de vacinas. Medidas como uso de máscaras, distanciamento e isolamento social não foram encorajadas pelo exemplo oficial.
— O acompanhamento das ações deixou cada vez mais claro que o governo federal apostou na estratégia da imunidade de rebanho. Pensaram “vamos deixar contaminar e, em dois meses, voltamos à vida normal”. Mas deixar uma doença correr solta sempre implica muitas mortes. Outros governos que começaram a seguir esse caminho, como na Itália e na Inglaterra, recuaram quando se deram conta. Nós, não — afirma a estatística especializada em epidemiologia e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Suzi Camey.
Diante desse cenário, prefeitos, governadores e a própria sociedade civil não tiveram vontade ou força de fazer o que era preciso para conter a mortandade. Medidas mais restritivas foram rejeitadas, e grandes parcelas da população deixaram de seguir práticas primárias de prevenção como o uso correto de máscara e o distanciamento social.
— Nunca fizemos um sistema de testagem agressivo, com isolamento de casos e quarentena de contatos. Tivemos pouca implementação de medidas de controle de fluxo de pessoas, jamais controlamos as fronteiras de forma adequada ou testamos o suficiente na busca de variantes — complementa Marcio Bittencourt.
O especialista, que atua no Hospital da USP, em São Paulo, lembra ainda que a mortalidade no país foi afetada por falta de leitos, de profissionais de saúde e até de medicamentos sedativos e de oxigênio, como no caso do Amazonas, para dar conta da demanda de doentes. Mas pondera que a política do “fique em casa” também jamais forneceu uma saída adequada para uma pandemia prolongada.
— Faltou planejamento de longo prazo, um entendimento de que a situação poderia persistir e até piorar. Mesmo quem tentou fazer alguma coisa a mais acabou investindo de forma simplista na mensagem de “fique em casa”, que é insustentável a longo prazo — pontua Bittencourt.
Assim como nunca se investiu em uma estratégia de bloqueio à circulação de pessoas que derrubasse as taxas de transmissão e permitisse a posterior retomada da economia com mais segurança, apoios financeiros como o auxílio emergencial concedido pelo governo federal não foram suficientes para evitar que milhões de brasileiros tivessem de se expor a riscos para seguir ganhando a vida – e muitas vezes perdendo-a nesse processo.
— A estratégia brasileira não salvou nem vidas nem a economia — resume Suzi Camey.
Vacinação é principal esperança de melhora
A vacinação é a principal esperança de reversão no quadro desenhado até o momento. A aplicação das doses segue muito abaixo do necessário para quebrar a cadeia de transmissão do vírus, mas há promessas de acelerar a campanha. Enquanto é necessário algo próximo a 70% da população completamente imunizada, o país somava até o final da semana 11,4% de brasileiros com duas doses completas.
O Brasil fica na terceira posição global em número de doses distribuídas, mas a situação é bem pior quando se analisa a cobertura vacinal por habitantes. A colocação pode variar conforme os critérios e os rankings utilizados. Quando se eliminam países ou territórios muito pequenos, com menos de cem mil moradores, ou que não informam detalhadamente o andamento das aplicações, até sexta-feira (18) o país ocupava o 60º lugar pela proporção de pessoas protegidas contra o coronavírus. Por isso, o cenário ainda é de alerta. O desfecho da pandemia vai depender, em grande parte, de os governantes e a sociedade terem aprendido com os erros cometidos até o momento e da disposição em não repeti-los.
— Prever o comportamento do vírus não é tão difícil quanto prever o comportamento humano, se teremos as vacinas prometidas, se as pessoas vão tomá-las, se vão usar máscara e manter o distanciamento — observa Bittencourt.
O especialista em Saúde Pública projeta que, caso a vacinação siga em um ritmo próximo ao atual, a situação deve permanecer difícil até o final do inverno — período em que doenças respiratórias tradicionalmente se agravam. Mas, com a chegada da primavera, anuncia-se também uma perspectiva de melhora epidemiológica:
— Considerando que a vacinação dos adultos se complete apenas no final do ano, e a alta taxa de transmissão comunitária, não necessariamente vamos acelerar outra vez a pandemia, mas devemos seguir em patamares elevados até julho, agosto. A partir de setembro, é possível imaginar uma redução de intensidade.