Apesar de o ritmo da campanha de vacinação contra a covid-19 ganhar fôlego, gestores e especialistas da área da saúde se preocupam, cada vez mais, com a adesão abaixo do esperado à busca por um imunizante. Até a manhã desta sexta-feira (18), apenas 30,5% dos grupos prioritários do Rio Grande do Sul receberam a segunda dose, conforme dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS). Nem mesmo entre idosos a cobertura é alta: 52%.
O objetivo do governo do Estado é alcançar 90% de cobertura vacinal com duas doses em cada grupo prioritário para proteger cerca de 70% da população total contra o coronavírus e, assim, alcançar a imunidade coletiva. Isso porque haverá entraves para imunizar jovens abaixo dos 18 anos — apenas a Pfizer está autorizada a adolescentes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em Porto Alegre, os grupos que mais preocupam estão abaixo dos 70 anos. Na faixa dos 57, pouco mais de 22% dos porto-alegrenses ainda não se imunizou. Entre 58 e 59, mais de 10% não foram vacinados.
O diretor da Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter, teme que a cidade não alcance 70% da população vacinada por conta da baixa procura. Veja, a seguir, alguns motivos que explicam por que nem todos estão buscando um imunizante:
Dificuldade em ir ao posto de saúde
Milhões de brasileiros podem ter dificuldade em buscar uma vacina em horário comercial por conta do trabalho, afirma a médica Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora de Epidemiologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
— Seria preciso garantir que as unidades básicas de saúde estivessem abertas em outros horários e aos sábados. Muitos idosos dependem de pessoas que os levem, e essas pessoas trabalham. E aí precisa ter busca ativa e fazer campanha: se você perdeu a segunda dose, poderá ir no dia tal, depois das 17h, buscar — diz Gulnar.
Medo de efeitos adversos
Algumas vacinas vêm enfrentando resistência por parte da população apesar da segurança atestada pela Anvisa e pelos governos de outros países. A morte de uma mulher vacinada com o imunizante da AstraZeneca por trombose deixou uma parcela da população receosa, ainda que o efeito grave seja raríssimo.
O risco (de trombose) é infinitamente menor do que a pessoa ter o mesmo problema quando contrair o vírus. Uma gestação simples tem o risco aumentado de ter trombose.
FERNANDO RITTER
Diretor da Vigilância em Saúde de Porto Alegre
O risco de a AstraZeneca causar trombose é de apenas 0,0004%. Enquanto isso, o risco com o uso de anticoncepcional varia de 0,05% a 0,12%, da gestação é de 0,05% a 1,8% e da própria covid-19 é de 16,5%. Os dados são da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH). Efeitos mais comuns são dor no local da injeção, dores musculares, febre, mal estar e calafrios – todos administráveis com repouso e muito menos perigosos do que adoecer por coronavírus em estado moderado ou grave.
Por precaução, a vacina não é aplicada em grávidas e puérperas, mas o produto é extremamente seguro para o resto da população – e ainda protege, junto com a da Pfizer, contra as variantes Delta, identificada pela primeira vez na Índia, e Alfa, encontrada primeiramente na Inglaterra.
— Acho que as fake news estão nos engolindo nesse processo — afirmou à Rádio Gaúcha Fernando Ritter, diretor da Vigilância em Saúde de Porto Alegre. — O risco (de trombose) é infinitamente menor do que a pessoa ter o mesmo problema quando contrair o vírus. Uma gestação simples tem o risco aumentado de ter trombose — explica o diretor, usando um dos principais argumentos lembrados por pessoas contrárias à vacina.
O receio também se estende a outros imunizantes.
Tenho pacientes que perguntam: "Preciso vacinar mesmo? Toda minha família já vacinou…". Ou seja, a pessoa entende a proteção gerada pela imunidade coletiva, mas não quer correr o risco individual que é muito, muito baixo. Só que, se todo mundo pensar assim, não teremos imunidade coletiva.
RICARDO HEINZELMANN
Diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)
— Tenho pacientes que perguntam: "Preciso vacinar mesmo? Toda minha família já vacinou…". Ou seja, a pessoa entende a proteção gerada pela imunidade coletiva, mas não quer correr o risco individual que é muito, muito baixo. Só que, se todo mundo pensar assim, não teremos imunidade coletiva. Até dipirona pode trazer riscos se usada por milhões de pessoas — pontua o médico Ricardo Heinzelmann, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Dificuldade em estimar públicos
Gestores revelam que é difícil estimar o número de pessoas em alguns grupos prioritários pela ausência de dados estatísticos, o que explica a cobertura vacinal com primeira dose acima dos 100% em alguns grupos prioritários e bastante abaixo da meta em outros.
A diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde da SES, Cynthia Bastos, já afirmou a GZH que a vacinação está abaixo da meta, mas pode estar não tão ruim quanto parece. Há, ainda, dados informados com erro, como data de nascimento e idade contraditórios.
Falta de informação
Milhões de brasileiros não estão a par de que é preciso tomar duas doses da vacina nem da data em que precisam fazê-lo, destaca a médica epidemiologista Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco. Para isso, segundo ela, o governo deveria investir com mais força em campanhas de publicidade, como fazia anos atrás para estimular a vacinação contra o sarampo e a poliomielite:
— Não houve campanha oficial com informação o suficiente para as pessoas entenderem a importância da vacinação e que é preciso de duas doses. Houve e continua havendo falha na comunicação. Também há queda na busca ativa dessas pessoas, o que também influenciou a queda de cobertura vacinal de outras vacinas nos últimos anos. O SUS vem sendo muito subfinanciado, isso ataca políticas de atenção primária e de vigilância para fazer a busca ativa, o que atrapalha agora.
Preferência pela Pfizer
Com a oferta da vacina da Pfizer à população em geral (antes, estava restrita a grávidas, puérperas e professores), postos de saúde passaram a registrar filas maiores do que o observado. A busca demonstra maior expectativa dos brasileiros pelo produto em comparação ao da AstraZeneca e à CoronaVac. Escolher o produto atrapalha o andamento da campanha e a vida de todos.
— O importante é ter vacina no braço para conter a epidemia. Todas já se mostraram efetivas, a CoronaVac funciona para diminuir o número de internações e de óbitos. De que adianta esperar pela vacina da Pfizer se me exponho por um mês à covid? — questiona Gulnar.
O importante é ter vacina no braço para conter a epidemia. Todas já se mostraram efetivas, a CoronaVac funciona para diminuir o número de internações e de óbitos. De que adianta esperar pela vacina da Pfizer se me exponho por um mês à covid?
GULNAR AZEVEDO E SILVA
Presidente da Abrasco
Durante a pandemia, processos que sempre ocorreram em vacinas do passado passaram a ser acompanhados com lupa pela população, que está preocupada agora em questões como eficácia, tempo de aprovação, laboratório produzido e até mesmo país-sede da empresa.
— Os estudos mostram diferenças entre vacinas, mas há deturpação dessas informações científicas para dizer que uma vacina é melhor do que outra. E aí muitas pessoas querem esperar para receber outra. Mas não dá para esperar, ainda mais no contexto de escassez de vacinas no Brasil. Se todos se vacinarem, independentemente da vacina, chegaremos à imunidade coletiva — reforça o médico de família e comunidade e epidemiologista Ricardo Heinzelmann.
A Pfizer é buscada até mesmo para a expectativa de conquistar passaporte de imunidade e viajar ao Exterior. Mas a percepção é errônea, uma vez que todas as vacinas aprovadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) poderão entrar na Europa, o que inclui AstraZeneca e CoronaVac. O que exclui brasileiros do continente não é o uso do imunizante, mas a alta taxa de transmissão viral entre a população.
— A Pfizer virou artigo de grife. A questão é que não vai ter casaco de grife para todo mundo. O vírus está circulando. Há uma visão colonialista brasileira de que vacinas da China ou da Índia são de terceiro mundo, mas a saúde do mundo como um todo depende desses países. Várias vacinas do PNI (Plano Nacional de Imunizações) usam insumos da Índia e da China. Por que as pessoas se importam com a origem dos ingredientes da vacina e não do próprio celular? — questiona Heinzelmann.
Fake news
É consenso entre analistas e gestores que a pandemia acelerou como nunca as fake news, que põem em xeque a segurança das vacinas, especialmente da CoronaVac. Os boatos, impulsionados pelo celular, mentem que as vacinas são inseguras, que introduzem chip no organismo ou que alteram o DNA.
Nada disso é verdade. Especialistas da saúde destacam que a aprovação das vacinas contra o coronavírus foi rápida porque havia muito dinheiro investido em laboratórios espalhados pelo mundo. Com isso, foi possível angariar milhões de voluntários de diferentes países e acelerar processos que, antes, eram lentos apenas pela falta de verba.
Pesquisas são caras: é preciso de centenas de funcionários para conduzir o estudo, milhões de reais nos ingredientes a serem testados, caríssimos equipamentos de laboratório, pagar despesas de transporte dos voluntários até o hospital ou instituto de pesquisa, entre outros investimentos.
Pesquisa do Datafolha feita em dezembro do ano passado mensurou que 50% da população brasileira não queria tomar vacinas da China. A porcentagem caiu para 36% para imunizantes da Rússia, 23% dos Estados Unidos e 26% do Reino Unido. Quanto maior a escolaridade, menor a desconfiança com vacinas da China.
Durante muitos anos, a China teve a fama do produto de R$ 1,99, de má qualidade. Mas, na área de inovação e pesquisa científica, ela se destaca muito. Existe um desconhecimento sobre a China, alimentado por certo racismo e sinofobia.
JÚLIA ROSA
Relações internacionais
— Durante muitos anos, a China teve a fama do produto de R$ 1,99, de má qualidade. Mas, na área de inovação e pesquisa científica, ela se destaca muito. Existe um desconhecimento sobre a China, alimentado por certo racismo e sinofobia. De modo geral, o Brasil é eurocêntrico, voltado para os Estados Unidos e não encara com bons olhos produtos feitos em países em desenvolvimento. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro copiou e colou o discurso do Trump contra a China, e isso ganhou força aqui — afirma a relações internacionais Júlia Rosa, mestre em Estudos de China Contemporânea pela Universidade de Renmin, em Pequim, e editora-sênior da newsletter Shumiàn.