O choro da pequena Catarina, na época com três anos, suplicando o avô e a avó "de volta" foi a gota d'água para Elenice Machado Barbieri, 62 anos. A reação da pequena fez com que a acupunturista decidisse tornar os encontros com as netas mais frequentes, porém, cuidadosos, após meses de limitações impostas pelo alastramento da covid-19.
Ao longo de 2020, a máxima que pregava o afastamento como um ato de amor serviu de mantra para muitas famílias como a de Elenice. Embora doloroso, o distanciamento dos parentes, especialmente os mais velhos, foi o preço a se pagar a fim de preservar a saúde de milhares de pais, mães, avôs e avós, mais suscetíveis às complicações da covid-19.
— Foi o pior momento da minha vida. Foi muito difícil, mas ficar longe delas foi muito sofrido — resume a avó da Catarina.
Mais de um ano depois do início desses cortes abruptos nas relações familiares, o cenário é diferente. Graças às vacinas e a um maior conhecimento da doença, foi possível reaproximar entes queridos com mais segurança e menos receio. E ainda que diferentes, os reencontros deram mais ânimo para os idosos, que foram fortemente impactados pela distância de seus familiares.
— Muitos se privaram dessa socialização em razão da covid-19, pois os desfechos em idosos eram muito graves. E tudo isso se modificou com a vacinação. Aquelas restrições de um ano atrás, que eram impositivas, mudaram com a chegada da vacina — observa Maria Cristina Cachapuz Berleze, chefe do Serviço de Geriatria do Hospital São Lucas (HSL) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
É neste horizonte, de um pouco mais de tranquilidade, que relações tão especiais, como a dos avós com os netos, começam a ser retomadas. Ainda que exija cuidados, a proximidade pode e deve acontecer, estimulam especialistas.
— O mais importante é avaliar a condição clínica da criança. Se ela estiver com sintomas respiratórios ou febre, pode ser coronavírus. Portanto, o ideal é não manter o contato direto com os avós, mesmo que vacinados. Crianças saudáveis e sem sintomas e avós vacinados não precisam restrições — completa a médica do HSL.
Mala e cuia
Foram 10 meses brincando com a avó por meio de videochamadas diretamente de Florianópolis. Lá da capital catarinense, Maitê, cinco anos, passava horas a fio "maquiando" e brincando com a aposentada Eli Araújo de Freitas, 77 anos, que vive em Porto Alegre.
— A gente falava por vídeo, ficávamos, às vezes, duas ou três horas brincando, desenhando, pintando e assim ia matando a saudade — fala Eli, que estava com o coração apertado de saudade e preocupação com a família distante.
A psicóloga Arieli Groff, 37, mãe de Maitê e filha de Eli, acompanhava a rotina dos pais à distância, e contava, nessa missão, com a ajuda dos vizinhos deles. Enquanto a pandemia e as suas limitações persistiam, a psicóloga começou a notar os pais mais fechados.
— Meu pai (Ari Martins de Freitas), tem 81 anos e a mãe tem 77, e eram muito ativos. Ele fazia musculação, tai chi chuan. Fui observando-os mais deprimidos — lembra.
Foi então que, em outubro do ano passado, Arieli resolveu fazer as malas da filha e do marido, Luciano Groff, 40, e pegar a BR-101 rumo a Porto Alegre para visitar os pais. Antes de cair na estrada, porém, todo mundo teve o teste negativo para covid-19 confirmado. Para não correrem riscos, levaram lanches para evitar paradas em restaurantes. Como os pais ficaram sabendo só quando eles estavam prestes a viajar, o vô Ari ficou perplexo e não conteve as lágrimas no momento do reencontro.
— Ficamos 10 meses sem nos vermos e essa semana perto deu um gás para seguirmos em isolamento até dezembro — conta Arieli.
O segundo encontro ocorreu em dezembro, quando os avós optaram por assumir um possível risco de contaminação para participar do aniversário de cinco anos da neta e passar os festejos de fim de ano juntos. No trajeto até o Estado vizinho, a dupla tomou todos os cuidados e evitou ao máximo paradas desnecessárias.
Com o sentimento de esperança renovado depois da virada do ano, Arieli conta que estava na expectativa por mudanças. O que talvez ela não soubesse àquela altura era que a mudança incluía o endereço. Depois da Páscoa, surgiu, entre Arieli e Luciano, o assunto de um possível retorno a Porto Alegre.
— Começamos a rever nossas prioridades como família. Fomos para Floripa em 2018 para ter qualidade de vida, mas não tínhamos rede de apoio (familiar) por perto. Como meus pais já estavam vacinados, pensamos: por que não voltar, agora que temos uma certa segurança para conviver com eles?
A família voltou para o Rio Grande do Sul de mala e cuia na segunda semana de junho e já fez um tradicional almoço de domingo, com direito a um "até logo" aliviado na despedida.
— Eles se emocionaram em dizer "até logo" e já estão até combinando de a Maitê dormir com eles. A vacina foi muito importante, pois não adiantaria a gente se mudar e seguir sem se ver. Foi fundamental para decidir pela mudança e poder os ver com mais regularidade — atesta Arieli.
— Agora, o coração da vó está calmo. Ela perdia o sono com saudade e preocupação —finaliza Eli.
Criatividade no abraço
Para Catarina, a menina que caiu no choro ao se despedir dos avós no ano passado, a pandemia foi duas vezes desafiadora: primeiro, pelo rompimento no relacionamento com as avós, com quem convivia quase todos os dias antes de ir para escolinha. E segundo, pois teve que interromper o processo de adaptação na escola e voltar para casa.
O ano transcorreu, como para maioria das famílias, com a estratégia das videochamadas e visitas aos avós à distância, para desespero da Elenice e do marido, Fernando Luiz Barbieri, 64 anos.
— Não tem como ficar longe, é muito difícil, foi um ano de provação — conclui Elenice.
Além dos avós maternos, a astróloga Lúcia Vellinho, 73 anos, o aposentado Hector Furlong, 74, e a fonoaudióloga, esposa de Hector, Andreia Fava Melo, 52, representantes do lado paterno, também viram os encontros com a menina rarearem. Na tentativa de amenizar a distância física, a família visitava a avó, que mora em uma casa, e permanecia no pátio. Por vezes, Catarina beijava a porta de vidro que separava ela e Lúcia, como se estivesse beijando a bochecha da avó. Cansada da falta de contato físico, Lúcia resolveu dar um jeito de se aproximar da família:
— Estava muito triste, pois via eles chegando lá em casa e não podia abraçar. Aí um dia resolvi juntar três sacos de lavanderia e colá-los. Ficou um plástico bem grandão, então eu entrei dentro e consegui abraçar bem forte eles.
Mais para o fim do ano, com muita cautela, a família voltou a se reencontrar, aos poucos com os avós. Até que, no verão, Elenice e Fernando Luiz, tiveram covid-19. Passado o período de isolamento deles, o contato foi aumentando, afinal, o temor da família era a contaminação deles.
Ainda assim, os avós do lado paterno de Catarina ainda sofriam com as restrições até o dia que foram vacinados.
— A gente fica mais tranquilo e vê que eles ficam tranquilos também. Agora, estamos nos encontrando mais — confirma Gabriela Machado Barbieri, 37 anos, mãe da Catarina e filha da Elenice e do Fernando Luiz.
Alerta sobre a saúde mental
Na rotina diária, especialistas que atuam no atendimento ao público de mais idade perceberam, na prática, o que inúmeras pesquisas já indicavam: a saúde mental dos idosos foi duramente prejudicada pela pandemia, refletindo diretamente na qualidade de vida dessas pessoas.
Um estudo publicado em março nos Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, mostrou que metade dos mais de 9,1 mil idosos entrevistados relatou sentimento frequente de solidão pelo afastamento de amigos e familiares. A ansiedade ou o nervosismo também foram mencionados por 31,7% dos respondentes, bem como a tristeza e a depressão, citadas em 27,5% dos casos. Segundo o trabalho, idosos que aderiram ao distanciamento com mais rigor também foram aqueles que se sentiram tristes com mais frequência.
A psicóloga Simone Bracht Burmeister, mestre em gerontologia biomédica, conta que os relatos do público idoso durante o período de isolamento deixam escapar indícios do surgimento de patologias, como síndrome do pânico.
— Há, também, um grande volume de pacientes que fala em perda de memória e desatenção com medo de ser Alzheimer. Mas pode ser o isolamento. Quando a pessoa fica mais fechada, parece que fica esquecida, pois ela não conversa, não interage — justifica a psicóloga.
Por essas e outras razões, a especialista defende a retomada dos encontros, desde que limitados a um número pequeno de pessoas e, quando possível, ao ar livre.
— A partir da vacinação, as famílias têm mais contato. No entanto, sugiro evitar grandes reuniões, com todos os filhos e netos ao mesmo tempo. O ideal é encontrar um filho em uma data, outro em outra, em grupos pequenos para manter o distanciamento — sugere Simone.