Coberta por máscara N-95, escudo facial, touca, avental impermeável e luvas, a enfermeira Isis Marques Severo, 41 anos, entrou no quarto isolado de um dos pacientes internados no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) para covid-19 do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), em uma manhã recente de janeiro, e sentenciou:
– Bom dia! Vamo se animar!
Alessandro Pereira de Vargas, 32 anos, transportado de avião para a Capital em dezembro, em estado gravíssimo, revelava-se triste e abatido. O auxiliar de escritório de Dois Irmãos das Missões, cidade de 2 mil habitantes no extremo norte do Rio Grande do Sul, fora internado em Tenente Portela e, em condições delicadíssimas, transportado de ambulância para o embarque na aeronave em Frederico Westphalen, rumo ao HCPA. Quase morreu em decorrência do severo comprometimento pulmonar. Em lenta reabilitação após semanas de imobilidade, totalmente dependente de aparelhos para respirar, precisava reaprender, naquele ponto da vida adulta, lições da infância, como engolir e levantar da cama. Ainda inspirava e expirava com certa dificuldade.
Isis acionou a trilha sonora, empolgou-se com o hit sertanejo que remete seu pensamento ao marido, agora trabalhando a milhares de quilômetros de distância, e começou a dançar, acompanhada pela colega Fernanda da Silva Figueiró, técnica em enfermagem de 36 anos. “Investe em mim, aposta tudo em mim/ Eu prometo te fazer feliz/ Eu prometo te fazer feliz”, ditava a letra na voz de Gusttavo Lima e Jonas Esticado. As duas rodopiaram diante do paciente. A partir de então, Alessandro teve a fisionomia alterada pelo show improvisado. Ria. O astral mudou por completo.
O novo CTI do HCPA, no sétimo andar do Bloco B, contíguo à sede, dispõe de amplas janelas com vista para a cidade e não opera unicamente na cadência dos alarmes e bipes de monitores de sinais vitais, bombas de infusão de medicamentos e ventiladores mecânicos, aparato tecnológico que mantém vivos os criticamente doentes. Em uma iniciativa espontânea, motivada pela consternação de uma profissional confrontada com a arrastada agonia de um rapaz de 19 anos, previamente saudável, fã de pagode, surgiu e se firmou entre a equipe assistencial da UTI C uma singela ferramenta terapêutica. Um rádio AM/FM conquistou a fama de impulsionar a melhora e promover alta breve para quem desfruta de seu cardápio musical e noticioso.
Companheiro da enfermeira Isis havia uma década, desde que o parceiro, preparador físico de futebol, mudara-se para a Ucrânia – hoje Michel Huff, 45 anos, é contratado do Arsenal Tula, time da primeira divisão russa –, o aparelho da marca Philips, preto, com caixa de som dupla, foi levado ao HCPA como doação. Apesar de ainda estar em uso, como fonte de informação e descontração, o eletrônico enfrentava a acirrada concorrência dos variados sons da vitalidade de João Miguel, filho de quatro anos da intensivista.
– Olhei para o rádio um dia e pensei: ele me fez tão bem, me faz tão bem. Vou levá-lo para fazer bem para os pacientes – lembrou Isis.
Logo depois, ela entrou em férias, período em que ficou sabendo da morte do paciente que motivara a troca de endereço do aparelho. No retorno ao trabalho, perguntou:
– Cadê o radinho?
Passadas três semanas, e apesar do abatimento do time pelo falecimento do garoto, o aparelho, após um período em um armário, voltara a circular. Levado até as proximidades do leito de outros doentes, o antigo parceiro de solidão e saudade da enfermeira parecia demonstrar poderes quase mágicos, milagrosos, empolgando os funcionários de turno em turno. Transformou-se em amuleto. Estava, inclusive, batizado.
– O “radinho da alta”? – respondeu a técnica em enfermagem Naira Silveira Pernanguá, 34 anos.
A distração possível
De meados de agosto até aqui, o radinho “adoeceu”. Diagnóstico: inadvertidamente, alguém o conectou a uma tomada na voltagem errada. O conserto, ao preço de R$ 70, afastou-o da linha de frente por uma semana. O radinho também se multiplicou, graças à enfermeira Deise Maria Bassegio, 37 anos, que apelou a grupos de WhatsApp do condomínio onde reside, em Canoas. Deise se apresentou, falou da destinação que seria dada aos eventuais objetos sem uso que pudessem ser repassados a ela. Dois moradores atenderam ao pedido – um deles deixou a doação no capacho, em frente à porta, justificando ser integrante de grupo de risco e preferir não ter contato direto com a condômina que frequenta um local altamente vulnerável a contaminação.
Os rádios têm se provado benéficos, especialmente, para aplacar sinais de humor deprimido ou ansiedade. Como para tantos apreciadores desse meio de comunicação, o “radinho da alta” virou companhia no isolamento das áreas covid-19, interditadas, salvo raras exceções, à visitação de familiares. Os enfermos têm contato apenas com quem lhes presta assistência, e para muitos, que sofrem acentuada perda de peso, massa muscular e força, nem o celular é uma distração possível, pois não conseguem sustentar o telefone nas mãos.
No processo de “desmame” do ventilador mecânico, quando a sedação é reduzida e se estimula o despertar, a programação radiofônica ajuda a situar o paciente e pode ser eficaz contra o delirium, síndrome que acomete hospitalizados, afetando o estado mental (o indivíduo pode ficar com o discurso desconexo e agir de forma diferente da habitual). Ao informar repetidamente a hora, a data, a previsão do tempo, os locutores das emissoras convidam à reinserção no cotidiano.
Atestado o sucesso empírico da iniciativa, profissionais da enfermagem propagandeiam o “radinho da alta” entre os ocupantes dos 10 boxes individuais, com divisórias envidraçadas, da UTI C.
– Olha, se aceitar, você pode ter alta em dois dias, hein? – oferta a técnica Fernanda da Silva Figueiró.
Dias atrás, uma mulher de 49 anos resistiu às propostas de diferentes cuidadores. Alegava querer ficar em silêncio. Acabou por concordar, quando considerou que já tinha refletido o bastante sobre a vida e se sentia pronta para se reconectar ao mundo exterior. Fernanda, então, falou sobre a fama do rádio. A paciente sorriu:
– Se soubesse, teria aceitado antes!
Para frisar que a reputação do “radinho da alta” não é sem fundamento, Fernanda recordou:
– Fiquei dois dias fora. Quando voltei, ela não estava mais aqui.
O "pai do Jean Pyerre"
Repórter e fotógrafo de ZH passaram quatro horas na unidade C do CTI HCPA ao longo da manhã e até o início da tarde de 29 de janeiro. Ambos vestiram todos os equipamentos de proteção individual (EPIs) necessários e receberam minuciosa orientação nos processos de paramentação (colocação dos EPIs) e desparamentação (retirada), com incontáveis higienizações de mãos durante todo o período. A pedido do Grupo RBS, o HCPA estimou o custo dos EPIs destinados à equipe, e a empresa efetuou a doação de materiais de uso hospitalar em valor igual ao orçado.
O repertório de histórias emocionantes é numeroso nesses quase seis meses de experiência. Em uma breve roda de bate-papo naquela sexta-feira, surgiram as lembranças mais marcantes: o idoso que sabia tudo sobre os desdobramentos da pandemia e a expectativa pelas vacinas, mantendo todos informados; o baterista de 28 anos que curtiu canções da banda de punk rock Ramones; a mulher de 30 anos que ouviu um hino religioso sobre “anjos que cantam no céu e dizem amém” e saudou o aviso de provável alta no dia seguinte, colocando a mão no rádio:
– Glória a Deus!
Unanimidade no grupo, Eduardo da Luz Corrêa, 49 anos, vigilante do HCPA, ostenta o título de celebridade. Ele próprio se intitula “uma lenda do CTI”. Conhecido no local por ser vigilante da instituição, Eduardo desenvolveu uma forma gravíssima de covid-19 em agosto. Seu caso atraiu atenção da imprensa e do público por conta do filho famoso – o meio-campista Jean Pyerre, do Grêmio. Após aguda piora, com duas paradas cardíacas, pareciam esgotados os recursos para salvá-lo, e os médicos convidaram a família para a despedida.
Entraram a esposa, a empresária Luciana Casagrande Silveira, 49 anos, e o caçula dos quatro filhos, José Carlos, o Zeca, 18 anos, também jogador de futebol. Jean Pyerre não se encorajou a encarar o pai, desacordado, em condições tão precárias.
– Não temos filhos. Você não vai ver seus netos crescerem? Eu não acredito, pai. Precisamos de ti aqui – implorou Zeca, atleta do Vizela, de Portugal.
A preocupação com a humanização do cuidado está tão arraigada que a equipe vai atrás de qualquer coisa que possa trazer benefícios ao paciente. Por mais que o trabalho técnico seja muito intenso, trabalhamos com a humanização o tempo todo.
RITA GOMES PRIEB
Psicóloga do CTI e chefe do Serviço de Psicologia do HCPA
Os familiares se demoraram no hospital, aguardando o óbito. Eduardo resistiu, e daquele dia em diante passou a reagir. Esteve entre os primeiros pacientes a desfrutar do primeiro “radinho da alta”. Apaixonado por samba de raiz e pagode, manteve-se atento também às novidades do esporte. Em uma sessão de fisioterapia, pregou um susto nas “abelhinhas”, apelido carinhoso pelo qual chamava as baixinhas do CTI – o vigilante mede 1m95cm. “Vou dar uma sacaneada”, pensou ele. Arriscou uma sambadinha.
– Seu Eduardo, o senhor não presta mesmo! Quer nos matar de susto? – reagiu uma delas.
A passeio em Porto de Galinhas (PE), o vigilante destacou, em entrevista, a importância do radinho em sua recuperação:
– É como se a música fosse um segundo oxigênio. Ela te alavanca, afasta a tristeza.
"Sensação de voltar à vida"
Por volta das 10h30min do dia 29, partimos para observar os radinhos em ação. Músicas animadas contrastavam com o quadro evidente de fragilidade dos ocupantes dos leitos. Em um dos boxes, uma mulher de 59 anos com pouquíssimo cabelo, resultado do tratamento contra um câncer de mama, exibia unhas bem pintadas de rosa. Sobre o corpo praticamente nu, de fraldas, repousava uma camisola listrada, cobrindo-a como um lençol. Ela demonstrava algum desconforto durante a troca do cadarço que envolvia a cabeça e mantinha firme na boca o tubo do respirador, introduzido até a traqueia. Em dois espasmos, pareceu prestes a vomitar. No radinho, a dançante Love Generation, de Bob Sinclair.
– A senhora gosta dessa música? – questionou Isis.
Ela sinalizou afirmativamente, duas vezes. Negou sentir dor.
No boxe ao lado, um homem de 34 anos pediu para que sintonizassem na emissora que costuma ouvir no carro. Apreciador de músicas lentas, repousava com Say You, Say Me, de Lionel Richie, às 11h20min. Mas foi na batida agitada da canção seguinte, Another Night, de Real McCoy, que as enfermeiras Isis e Juliana Tonding, 34 anos, passaram a vasculhar os braços do funcionário de pizzaria em busca de uma veia a ser puncionada.
– Vou apertar, tá? – avisou Isis.
Ele fechou os olhos, aos acordes da introdução da balada Lost in Your Eyes, de Debbie Gibson. Em tradução livre do inglês, diz uma estrofe: “Não me importo de não saber para onde estou indo/ Você pode me levar para o céu/ É como estar perdido no paraíso/ Quando estou perdido nos seus olhos”. A dupla utilizava as imagens mostradas por um ecógrafo (ultrassom) na procura pela veia.
– Somos as enfermeiras mais vampiras aqui! Mas vamos tentar só mais uma vez. Se não der, não vamos insistir – gracejou Isis, tranquilizando-o.
Deu certo. Elas vibraram. Depois de Father Figure, de George Michael, Isis se agachou ao lado do rádio-relógio e mexeu na antena para melhorar a sintonização. Empolgou-se com Os Barões da Pisadinha, mas o paciente confessou preferir algo mais tranquilo. No correr do dial, optou pelo programa Esportes ao Meio-Dia, da Rádio Gaúcha.
– Nunca fico no silêncio – contou o colorado, faceiro com o ótimo momento do time.
Psicóloga do CTI e chefe do Serviço de Psicologia do HCPA, Rita Gomes Prieb comentou que a ideia para a disponibilização de artigos tão simples simboliza uma preocupação permanente dos profissionais que prestam atendimento aos infectados pelo coronavírus.
– A preocupação com a humanização do cuidado está tão arraigada que a equipe vai atrás de qualquer coisa que possa trazer benefícios ao paciente. Por mais que o trabalho técnico seja muito intenso, trabalhamos com a humanização o tempo todo – apontou Rita. – O rádio conecta as pessoas. Estamos falando da possibilidade de conexão com o mundo externo, algo que a covid-19 tirou dos pacientes. O rádio é o meio mais eficaz para conectar as pessoas, é uma companhia, é fácil de levar junto. O narrador de um jogo de futebol precisa contextualizar, colocar o ouvinte dentro do estádio, uma coisa que acho muito bonita. A ambiência que o rádio oferece também é muito estimulante para o psiquismo – complementou.
Alessandro, o auxiliar administrativo citado no início deste texto, conversou com a reportagem por telefone, de um leito clínico no HCPA, depois de ter alta do CTI. Há mais de dois meses hospitalizado, o entusiasta de sertanejo, forró e tecnobrega – incluindo tudo dos Barões da Pisadinha – relatou ter sido muito bem cuidado pela turma do “radinho da alta”. No dia em que reencontraria a esposa, a atendente de farmácia Cláudia de Oliveira Kaiser, 27 anos, as meninas da enfermagem improvisaram um salão de beleza no CTI, aparando-lhe a barba e ajeitando o cabelo. Resumiu o que sentiu ao emergir do vácuo da sedação e identificar, aos poucos, sons conhecidos:
– Sensação de voltar à vida. Porque eu quase “fui”, né?
Na última segunda-feira (1º), um presente aguardava Isis na portaria do prédio onde mora. O donativo foi deixado por uma vizinha: um rádio-relógio pequeno, que se acomoda na palma da mão, com pilhas e também um suprimento extra para a troca. O quarto “radinho da alta” já está circulando pela UTI C do hospital.