Desde que a pandemia de coronavírus alvoroçou o mundo, ações de testagem em massa da população ganham espaço no noticiário internacional e no debate acadêmico. Coreia do Sul, Singapura e, mais recentemente, países do Golfo Pérsico despontam como modelos de rastreamento e controle. O Brasil se mantém no fim da lista de testes realizados, enquanto pesquisadores reforçam a importância da medida em larga escala e sugerem alternativas viáveis, baseadas em recortes regionais, que poderiam ser adotadas inclusive no Rio Grande do Sul.
Entre elas, estão a verificação de nichos específicos, como trabalhadores da Região Metropolitana e de setores distintos da economia, e a adoção de aplicativos de celular, a exemplo do que vem sendo feito no Rio de Janeiro, para orientar a execução das análises (leia os detalhes mais abaixo).
É consenso entre os especialistas que, quanto mais testes são feitos, mais robustas são as informações à disposição do gestor público. Na hora de tomar decisões, isso é fundamental.
— A Organização Mundial da Saúde vem batendo nessa tecla desde o início, e não é à toa. O Brasil até hoje não teve êxito. Nossa testagem é rudimentar e nos oferece números imprecisos, o que vale também para os Estados. Temos de mudar essa realidade para que possamos de fato ver o que se passa — defende Luciano Goldani, professor titular de Doenças Infecciosas da UFRGS.
O retrato exato do cenário depende de uma série de fatores, entre eles a particularidade dos testes escolhidos. Há basicamente dois tipos: um deles, denominado RT-PCR, identifica a presença do vírus no organismo, e o outro, mais rápido, aponta a existência de anticorpos no sangue (veja os detalhes abaixo).
Em verificações amplas, explica o sanitarista Claudio Maierovitch, coordenador do Núcleo de Epidemiologia e Vigilância em Saúde da Fiocruz, o RT-PCR serve para detectar onde a infecção está ativa, possibilitando o bloqueio das cadeias de transmissão. Isso ocorre quando um caso é confirmado e isolado, e as autoridades buscam seus contatos, que também são testados e confinados, e assim por diante.
A outra modalidade mostra quem já foi infectado e ajuda a entender qual é a tendência da epidemia. Por exemplo: uma amostra colhida em determinado município pode revelar em quais bairros o vírus está circulando mais e, assim, orientar medidas imediatas de mitigação.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
— Nenhuma das duas estratégias significa testar toda a população de uma vez, mas usar os testes para alimentar sistemas de informação que irão embasar as ações — ressalta Maierovitch (leia a entrevista completa no fim do texto).
Ou seja: não se trata, necessariamente, de avaliar todos os habitantes de um local a esmo.
— Excesso de informação é igual a nenhuma informação — sintetiza Ricardo Kuchenbecker, professor de Epidemiologia da UFRGS e gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Para que a medida cumpra sua função, é preciso traçar um plano levando em conta as características do lugar, a fase da epidemia e o que se busca obter. Não há modelo perfeito a ser reproduzido, nem mesmo uma taxa ideal de testes.
A Coreia fez algo que não é factível para nós. O Brasil está muito longe disso (...) Adotar a testagem em massa, hoje, exigiria uma estratégia totalmente customizada.
RICARDO KUCHENBECKER
Epidemiologista
Neste início de junho, Emirados Árabes é o país que, proporcionalmente, mais analisa amostras coletadas de seus moradores, com 217,1 mil testes por milhão de habitantes — no Brasil, a taxa é de 4,4 mil (veja os gráficos). Desde o começo, a testagem foi ampla, com a instalação de drive-thrus em cidades como Dubai e Al Ain. Abu Dhabi chegou a receber um centro de testes para trabalhadores. O tamanho da população é semelhante à do Rio Grande do Sul, mas as similaridades terminam aí. O país é um dos mais ricos do mundo, tem o islamismo como religião oficial e, durante a pandemia, adotou medidas duras, incluindo toque de recolher.
A Coreia do Sul, que já esteve no topo do ranking e é um exemplo citado à exaustão, também se distancia da nossa realidade, inclusive na forma como as pessoas respondem a ordens ou orientações. Naquele naco do globo, logo que surgiram os primeiros doentes, os testes começaram em grande volume. Os resultados eram ligados ao sistema de telefonia celular e era possível saber onde o infectado andou e com quem esteve, permitindo ação cirúrgica das autoridades.
— A Coreia fez algo que não é factível para nós. O Brasil está muito longe disso, seja pelas diferenças regionais, pela dificuldade de acesso a insumos ou mesmo pela demora nos testes. Adotar a testagem em massa, hoje, exigiria uma estratégia totalmente customizada — argumenta Kuchenbecker.
Por isso é tão difícil fazer algo do tipo em um país tão díspar e de dimensões continentais, mas não é impossível, desde que se aposte em um enfoque regionalizado. E é aí que entram Estados e municípios.
O que propõem os especialistas
Na atual fase da pandemia, o epidemiologista Ricardo Kuchenbecker avalia que uma alternativa factível seria direcionar a estratégia de testagem em massa para os trabalhadores que retomam atividades em um determinado local, como a Região Metropolitana.
São 4,3 milhões de habitantes, mas apenas uma parte passaria por exame, principalmente as pessoas que trabalham em uma cidade e moram em outra, já que a mobilidade urbana pode facilitar a transmissão do vírus e é muito presente em conglomerados como a Grande Porto Alegre. A definição do público-alvo partiria das próprias empresas, que, em seus departamentos de medicina ocupacional, detêm informações sobre seus empregados. Esse tipo de plano ajudaria a evitar, por exemplo, surtos regionais como aqueles registrados em frigoríficos.
Para diluir os custos, a ação teria de envolver um grupo de prefeituras, com apoio do Estado e do Ministério da Saúde, e a participação ativa do empresariado, que poderia ajudar a bancar parte dos testes.
Na avaliação de Kuchenbecker, a adesão dos empreendedores seria essencial inclusive para expandir esse tipo de ação a setores específicos da economia.
— Talvez a iniciativa privada pudesse ajudar a produzir informação estratégica a partir de testes em massa. Temos visto doações importantíssimas feitas por empresários, inclusive de leitos, mas, para uma retomada segura, precisamos de mais testes — destaca o especialista.
Presidente da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio-RS), Luiz Carlos Bohn diz que o setor está aberto ao debate, embora nem todos os empresários tenham condições de ajudar, em razão da crise.
— Há espaço para discussão e é uma pauta importante. Todos queremos voltar com segurança — ressalta Bohn.
À frente da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o epidemiologista Pedro Curi Hallal também considera possível implementar iniciativas do tipo no Estado. Hallal coordena a pesquisa que apura a prevalência do vírus na população gaúcha. O estudo, que agora está sendo replicado no país, vem ajudando a orientar o governo estadual na pandemia, mas envolve testes por amostragem (ou seja, estima quantas pessoas já tiveram contato com o vírus). Segundo Hallal, isso é diferente da testagem em massa.
Para o reitor da UFPel, uma saída para viabilizar a iniciativa poderia ser a adoção de um aplicativo de celular semelhante a uma plataforma que vem sendo testada no Rio de Janeiro desde o fim de abril. Desenvolvido sem fins lucrativos pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e pela Zoox Smart Data, o Dados do Bem foi criado em 25 dias e já tem mais de 100 mil downloads.
Funciona assim: a pessoa baixa o app e preenche um questionário para saber se tem sintomas de covid-19. Caso o risco seja alto, pode ser convidada a agendar exame de graça (data e horário são enviados por QR Code, no próprio celular). Se o resultado for positivo, o paciente recebe os cuidados de saúde previstos e o aplicativo pedirá a indicação de cinco pessoas com quem o infectado teve maior contato nos últimos dias para que também respondam às questões.
Em nota ao jornal O Globo, o secretário estadual de Saúde do Rio, Edmar Santos, disse que o projeto permitirá acompanhar a curva de casos de forma mais imediata e identificar as regiões mais vulneráveis. Algo parecido, na avaliação de Hallal, poderia auxiliar também o Rio Grande do Sul.
— Neste momento em que a prevalência do vírus no Estado ainda é baixa, daria para usar um método desse tipo. Não é difícil criar o app e pode ter a participação de universidades. O financiamento dos testes poderia contar com a parceria da iniciativa privada. O Rio Grande do Sul está fazendo tudo certo até agora. Por que não acertaria nisso também? — questiona Hallal.
Qual é a situação do Rio Grande do Sul
De forma progressiva, a capacidade de testes vem sendo ampliada no Rio Grande do Sul. Até a última quinta-feira (4), o governo do Estado havia distribuído cerca de 380 mil kits aos municípios.
É um número relativamente alto: se todos forem usados, a taxa será de 33,4 mil por milhão de habitante, semelhante a de países como Peru e Chile. O problema é que a maioria ainda não foi aplicada e, segundo a chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Estado, Tani Muratore, não há um dado preciso sobre quantos exames de fato foram feitos até agora.
No último dia 29, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) emitiu nota técnica expandido a possibilidade de testes para todos os casos de síndrome gripal não hospitalizados, atendidos nas unidades de saúde públicas e privadas (clínicas, consultórios, etc). Com isso, a gestora almeja que a iniciativa deslanche.
— Temos ampliado a testagem gradativamente, à medida que conseguimos os insumos. Com a nota técnica, a gente espera que os municípios consigam aplicar os testes de forma mais consistente, mas a população precisa ajudar. A gente não pode obrigar ninguém — pondera Tani, lembrando que os pacientes são orientados a ficar isolados e, dependendo do caso, a retornar em alguns dias para a coleta (cada teste funciona melhor em determinada fase da doença e, se for mal aplicado, pode dar errado e gerar falsa sensação de segurança).
Antes mesmo da nova orientação da SES, prefeituras como Esteio, na Região Metropolitana, e Porto Alegre já vinham testando todos os sintomáticos, e não apenas pacientes hospitalizados e grupos específicos, como a maioria. Na Capital, segundo o secretário-adjunto de Saúde, Natan Katz, são feitos de cem a 150 testes por dia. A capacidade supera 500.
— O próximo passo será testar os contatos das pessoas que tiveram resultados positivos, incluindo os assintomáticos — antecipa Katz.
O esforço do governo estadual e das administrações municipais — Lajeado, no Vale do Taquari, também tem avançado nisso — é reconhecido por pesquisadores, mas eles sugerem ir além.
Principais testes utilizados
1) RT-PCR
É do tipo molecular, capaz de detectar a presença de material genético do coronavírus, e pode identificar a doença a partir do terceiro ou quarto dia de infecção.
Como é a coleta
É feita com um swab (haste flexível tipo cotonete), que é friccionado na mucosa do nariz ou da garganta do paciente. A amostra é encaminhada ao laboratório.
Resultado
Pode ficar pronto em cerca de 24 horas, mas o prazo tende a ser maior devido à grande demanda sobre os laboratórios.
Prós
É considerado mais preciso. Indica se uma pessoa tem o vírus ativo e ajuda a orientar estratégias de isolamento da população na fase aguda da pandemia.
Contras
É complexo, demorado e mais caro do que o teste rápido. Depende de laboratórios com aparelhos especiais e de profissionais capacitados.
2) Rápido
A maioria dos testes rápidos não identifica o vírus em si, mas os anticorpos produzidos pelo organismo para combatê-lo.
Como é a coleta
No tipo mais comum de teste rápido, colhe-se uma gota de sangue do dedo do paciente com um perfurador. O material é aplicado sobre uma tira, onde há um reagente que os anticorpos. Se aparecer um risco, o diagnóstico é positivo.
Resultado
Leva de 10 a 30 minutos.
Prós
É simples, independe de aparelhos sofisticados, custa a metade do RT-PCR e pode ser feito na fila do ônibus e em drive-thrus, por exemplo. Ajuda a identificar a prevalência do vírus na população.
Contras
É menos preciso. Se for aplicado nos primeiros dias da infecção, quando a pessoa ainda não está produzindo anticorpos, o resultado pode ser um falso negativo.
Por que testar em larga escala é importante
- Dá a real dimensão do cenário epidemiológico e abastece o gestor público de informações para tomar decisões com maior segurança e menos riscos.
- No caso da fase aguda da doença ou em surtos localizados, testes em grande volume podem indicar se há necessidade de medidas mais rígidas de isolamento.
- Superada a fase aguda, os testes em massa podem ajudar na definição das estratégias de reabertura, inclusive com a triagem de trabalhadores.
“Não adianta fazer testes em massa se não existe um plano”, diz sanitarista da Fiocruz
Coordenador do Núcleo de Epidemiologia e Vigilância em Saúde da Fiocruz em Brasília, o sanitarista Claudio Maierovitch é um defensor dos testes em massa, desde que aplicados a partir de planejamento e de acordo com a realidade de cada local. Na avaliação dele, em Estados com o Rio Grande do Sul a verificação em larga escala é viável. Confira os principais trechos da entrevista.
Por que é tão difícil a testagem em massa no Brasil?
O Brasil teve muita dificuldade no início, em parte, pela falta de testes. Não foi um problema apenas brasileiro, mas, como não havia produção nacional, os entraves foram maiores do que em países como a Coreia do Sul e a China, por exemplo. Agora começamos a ter a possibilidade de fazer uma quantidade maior de testes, tanto com base na produção nacional pela Fiocruz quanto a partir de produtos importados, mas a questão não é só como fazer, é com que finalidade.
O desafio é desenvolver a estratégia de forma adequada?
Sim. A testagem em larga escala permite que se tenha um retrato do que está acontecendo e ajuda a dirigir as ações do poder público, mas não adianta fazer testes em massa se não existe um plano. No Brasil, infelizmente, a realidade é essa. Não há um plano. Aliás, o Brasil se tornou um péssimo exemplo para o mundo. E, no caso da testagem, não é só uma questão técnica. É importante que o governo sente com diferentes setores para definir o que fazer com os resultados.
Estamos falando de um volume grande de testes. O custo não inviabilizaria?
Para o governo, os custos dos testes são menores do que os praticados pelos laboratórios comerciais. Um laboratório cobra em torno de R$ 200, mas esse valor pode cair cinco, 10 vezes. E não se trata de testar toda a população de uma vez.
O senhor considera viável um Estado como o Rio Grande do Sul adotar a testagem em massa?
Sim, mas tem de saber para que vai usar. Cada Estado e região tem de fazer o seu desenho, dependendo de como está a situação em cada local. Quando tem menos casos, é mais fácil. No Rio Grande do Sul, onde ainda há um número relativamente pequeno, poderia ser usada a estratégia testagem, rastreamento e bloqueio (quando uma pessoa testa positivo e se busca seus contatos, que também são isolados e testados, mesmo sem sintomas, e assim por diante). Aí, em vez de pensar em testar milhões, testa-se milhares.