Uma nova manifestação de coronavírus, o Sars-CoV-2, pegou o mundo de surpresa. Em 31 de dezembro de 2019, a China informou à Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre 41 pacientes com “uma forma misteriosa de pneumonia”.
Em 7 de janeiro deste ano, sabia-se que um novo tipo de coronavírus havia sido transferido de animais para humanos. Três meses depois, os projetos de vacina ainda estão em fase inicial. Segundo a OMS, até o final de março havia 41 candidatos à vacina no mundo – mas o número pode ser muito maior, considerando as iniciativas ainda não divulgadas.
Algumas já iniciaram testes em animais e outras avançaram para os testes em humanos, como a da farmacêutica Moderna, baseada em Boston (EUA). Essa vantagem “na largada” foi possível porque empresas que realizam pesquisas adaptaram à covid-19 trabalhos anteriores, como o de vacinas para outros tipos de coronavírus que haviam sido engavetadas. A Moderna, por exemplo, está reaproveitando trabalho realizado numa vacina contra a mers, ou Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que causou um surto na Arábia Saudita em 2012. E a Novavax, companhia de Maryland, também nos EUA, que em breve iniciará testes em humanos, usou pesquisa feita para uma vacina contra a sars, a Síndrome Respiratória Aguda Grave, ou Sars-CoV-1 – vírus que causou uma epidemia na China entre 2002 e 2004 e que compartilha entre 80% e 90% do seu material genético com o Sars-CoV-2 (por isso o nome parecido).
As duas propostas são produzidas a partir de material genético (RNA ou DNA), uma nova tecnologia mais simples e rápida. Com as vacinas genéticas, ao invés de produzir partes do vírus ou o vírus em forma atenuada ou inativa, como acontece nas vacinas tradicionais, os cientistas criam, por exemplo, moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA).
– Quando entregamos esse DNA ou RNA para as células do organismo, as células da própria pessoa produzem uma proteína daquele vírus. O coronavírus tem várias proteínas, o cientista vai produzir só uma delas, então você não vai ter vírus, mas o seu organismo vai entender que você está infectado porque a proteína está circulando. Quem trabalha com vacina de DNA tem um pedaço de DNA no qual será trocada a informação genética e já sabe se ele é tóxico ou não, qual dose tem de ser usada, então é muito mais fácil. Você pula etapas – diz o virologista Renato Astray, diretor do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, em São Paulo .
O problema é que até hoje nenhuma vacina genética foi aprovada para uso humano.
Há entraves que a ciência ainda precisa resolver, observa Astray:
– Com a vacina de DNA, até hoje há discussão sobre a potencial ativação de oncogenes (genes relacionados a tumores). Ela também exige a inoculação de um grande material, o que acaba sendo tóxico.
A multinacional americana Johnson & Johnson optou por um caminho diferente: uma vacina baseada em outras vacinas da companhia, usando um vírus modificado para o qual todos têm imunidade. Os primeiros testes em animais deram resultados positivos. A ideia é que os testes em humanos comecem em setembro e seu uso emergencial seja autorizado em tempo recorde: no início de 2021. Enquanto isso, a empresa já está correndo para construir uma fábrica nos EUA e prospectando instalações em outras partes do mundo para alcançar a capacidade de produção de 1 bilhão de doses. O esforço vem amparado por investimentos de US$ 1 bilhão, parcialmente bancados pelo governo norte-americano.
A retomada brasileira
No Brasil, ainda não são muitos os cientistas a estarem trabalhando em uma vacina para o coronavírus. O consenso é que a pesquisa em vacinas nunca foi prioridade de investimento no país: faltam profissionais, estrutura e financiamento para que mais laboratórios embarquem nesse tipo de missão.
A pandemia atual pegou a ciência brasileira em um momento de muito baixo financiamento. Não há condições materiais para enfrentar os desafios importantes necessários para o desenvolvimento de uma vacina.
MANOEL BARRAL-NETTO
Pesquisador da Fiocruz, professor da UFBA
– A pandemia atual pegou a ciência brasileira em um momento de muito baixo financiamento. O governo Temer apoiou pouco a ciência, e isso foi muito agravado no governo Bolsonaro. Não há condições materiais para enfrentar os desafios importantes necessários para o desenvolvimento de uma vacina – assinala o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador da Fiocruz Manoel Barral-Netto .
A imunologista, coordenadora do Laboratório de Imunoterapia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e colunista de GaúchaZH Cristina Bonorino ecoa as preocupações do pesquisador.
– Nunca ficou tão claro quanto agora como a ciência é importante para a economia. Não existe economia saudável que resista aos abalos na saúde pública que estamos vivenciando – diz a pesquisadora.
Em vez de desenvolver uma vacina contra o coronavírus, o Instituto Butantan, principal produtor de imunobiológicos do Brasil, optou por acompanhar as propostas que estão sendo elaboradas fora do Brasil para depois buscar firmar parcerias no processo de produção. Astray justifica a decisão:
A ciência tem de ser sempre mantida para, quando houver uma situação de guerra como a atual, as questões sejam respondidas prontamente.
RICARDO GAZZINELLI
Coordenador de pesquisa que envolve INCT-V, Fiocruz e UFMG
– Todas as vacinas exigem um conhecimento prévio do vírus em questão. No caso do zika, o Butantan tinha como iniciar o desenvolvimento porque a gente já fazia a da dengue, que é um vírus parecido com o do zika. No caso do coronavírus, fizemos uma avaliação, se valia a pena começar do zero, entender o que era esse vírus e como as pessoas ficariam imunizadas. Nossa estratégia foi fazer prospecção e entender quem seriam nossos potenciais parceiros. Não adiantaria ser parceiro da Moderna, por exemplo, porque as vacinas genéticas não estão dentro do portfólio de produtos com os quais o Butantan trabalha.
Ricardo Gazzinelli, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas (INCT-V) e lidera uma das principais pesquisas brasileiras para desenvolver a vacina, trabalho que envolve ainda a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra outra face da piora do financiamento à ciência nos últimos anos: o corte de bolsas de mestrado e doutorado, que resultou em falta de mão de obra nos laboratórios.
Mas o pesquisador afirma que agora, com a pandemia, passou a haver atenção e vontade política no país. No último dia 27, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Telecomunicações liberou R$ 100 milhões para o combate ao coronavírus. O dinheiro será investido em pesquisas nas áreas de diagnósticos, vacinas, testes clínicos com pacientes, patogênese do vírus e outros temas relacionados ao combate à covid-19.
– Acordaram. É suficiente? Talvez ainda não, porque uma coisa é colocar um carro em movimento quando ele está parado, outra é acelerar quando já está andando. A ciência tem de ser sempre mantida para, quando houver uma situação de guerra como a atual, as questões sejam respondidas prontamente – defende Gazzinelli.
Antes do avanço do coronavírus, o Brasil havia optado por importar tecnologia e insumos de outros países. O problema, segundo o especialista, é que, em uma situação de pandemia, a demanda global aumenta consideravelmente.
– Se uma vacina é produzida nos EUA ou na Coreia do Sul, quem vão ser os primeiros clientes? Obviamente eles mesmos, ou países no seu entorno, para que se protejam. Numa situação dessas, não se pode ficar sentado, achando que vamos comprar tudo e vai se resolver. Sempre há prioridades. Cada país tem de andar com as próprias pernas – complementa.
Tateando no escuro
O médico gaúcho radicado em São Paulo Jorge Kalil chefia um dos primeiros estudos no país. Ex-diretor do Instituto Butantan e um dos idealizadores da vacina contra a dengue, Kalil adiou as pesquisas que estava desenvolvendo e passou a se dedicar ao coronavírus em fevereiro. Ele comanda um grupo de sete cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto do Coração (Incor) nessa missão. Segundo o médico, foi preciso muito debate na equipe até a definição de uma estratégia.
– Não existe um caminho. O que você vê na frente é escuridão, então, tem de se basear no que já se sabe. Olhar para para trás para criar o caminho para a frente – pondera Kalil, que teve de ficar isolado por duas semanas em março após o filho e a nora contraírem coronavírus.
O método escolhido pelo grupo envolve a criação, em laboratório, de partículas semelhantes a um vírus, mas ocas, sem o material genético que permite que ele se multiplique. Elas são chamadas de VLPs (sigla em inglês para “virus like particles”). Os cientistas introduzem nas VLPs pedaços do coronavírus que são importantes para a sua adesão nas células humanas: a proteína spike, ou espícula, haste que é usada pelo vírus para entrar na célula. Dentro do corpo humano, as VLPs são confundidas com vírus e estimulam a criação de anticorpos capazes de bloquear sua entrada na célula.
Não existe um caminho. O que você vê na frente é a escuridão, então tem de se basear no que já se sabe. olhar para trás para criar o caminho para a frente.
JORGE KALIL
Foi um dos idealizadores da vacina contra a dengue e hoje coordena grupo com cientistas da USP e do Incor
– Atualmente, estamos sintetizando os fragmentos de proteínas decorrentes da sequência da proteína spike. Vamos colocar isso no VLP para fazer a construção in vitru desse protótipo vacinal que ainda é teórico. Testaremos três ou quatro construções diferentes que podem dar resultado na experimentação biológica (em animais) – detalha o médico.
Em cerca de dois meses, Kalil pretende começar esses testes, primeiro em camundongos, depois em camundongos transgênicos (com genoma adaptado para receber o vírus da maneira que um humano receberia) e outras espécies.
– Vou pegar duas espécies de animais, pode ser um camundongo e um coelho, e ver se diferentes doses causam problemas ou se surgem problemas a longo prazo. Depois de um tempo, sacrifico o animal e vejo se o organismo está bem e se é seguro aumentar a dose.
A fase seguinte é convocar voluntários humanos sadios para receber diferentes doses. Com resultados positivos, passa-se à fase dois, que testa a eficácia da vacina em pessoas de diferentes idades e condições de saúde. Se tudo correr bem, Kalil acredita que esses ensaios clínicos (em humanos) comecem daqui a dois anos.
Trabalhando de forma paralela está a equipe de Gazzinelli, que une Fiocruz, UFMG e INCT-V. Diferentemente da equipe de Kalil, o professor parte de uma vacina para influenza já testada em camundongos.
– A gente tira um gene que o vírus não é capaz de replicar, então ele infecta a célula, mas não replica e, por isso, não causa doença. Estamos colocando o gene que codifica essa proteína no Sars-CoV-2 no vírus do influenza, a ideia é ter um vírus do influenza que vai expressar a proteína do coV-2. Essa vacina vai ser bivalente: protege contra a influenza e contra o coronavírus – afirma Gazzinelli, em entrevista concedida desde os EUA, onde é professor da Universidade de Massachusetts.
Kalil e Gazzinelli conduzem suas pesquisas paralelamente, mas acreditam que, ao final, poderão fazer as vacinas funcionarem de forma combinada. Seriam aplicadas duas doses: a primeira, de Gazzinelli, protegeria contra a gripe e seria a primeira dose da vacina anti-covid-19; a segunda, com a formulação de Kalil, reforçaria a imunização com VLPs.
Um dos maiores desafios no desenvolvimento de uma vacina é a produção em larga escala. A vantagem dessa abordagem, segundo Gazzinelli, seria poder aproveitar a tecnologia já existente para a produção da vacina contra a gripe:
– O Instituto Butantan já tem toda a linha de produção de vacina para influenza em grande quantidade, então acreditamos que já temos a competência não só de gerar a formulação vacinal, mas de levar ao mercado.
Com otimismo, o cientista afirma que essa vacina estaria pronta em dois anos.