Pressionada pela urgência da pandemia do novo coronavírus, a comunidade científica respondeu trabalhando em rede mundial. Muitos pesquisadores tem deixado a concorrência de lado e unido esforços para encontrar respostas rapidamente. Já os periódicos científicos têm antecipado a publicação de artigos com novos resultados sobre a doença e liberando o seu acesso gratuitamente.
Em condições normais, um artigo demora meses ou até anos para ser desenvolvido e publicado – o que mudou na atual situação.
– Em geral, o pesquisador conduz um estudo que leva uns meses e submete à revista que leva meses ou anos para analisar. Agora, em vez de esperar uma revisão feita por pares, alguns autores estão publicando o manuscrito inicial na internet – observa a biomédica Ana Paula Herrmann, doutora em Bioquímica e professora do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para a especialista, a pandemia já está deixando lições sobre a importância do compartilhamento de dados rápido e generoso entre os pesquisadores:
– Em geral, são compartilhados os dados analisados, mas o ideal é compartilhar os brutos. É muito mais colaborativo. Não tem como ter competição neste momento, os grupos têm de publicar juntos.
Até o final de março, segundo um levantamento feito pela Folha de S. Paulo a partir de palavras-chave na base de periódicos internacional Web of Science, pesquisadores do mundo todo tinham publicado 642 estudos científicos sobre o Sars-CoV-2, como o novo coronavírus foi batizado. Em média, um novo estudo é publicado a cada três horas, sendo que mais da metade vêm de China, EUA, Reino Unido e Alemanha. São trabalhos dedicados a entender a origem e a transmissão do novo vírus, o genoma, formas de diagnóstico clínico, prevenção, tratamentos etc. A diversidade das pesquisas demonstra o engajamento de cientistas de todas as áreas do conhecimento.
A parte pré-clínica (da pesquisa por medicamentos) se dá dentro de universidades, e depois quem financia os estudos clínicos são indústrias farmacêuticas, que visam ao lucro. E, como a janela é estreita, as empresas não têm interesse. O lucro pode ser muito baixo depois, caso surja uma vacina antes.
ANA PAULA HERRMANN
Professora da UFRGS
Há também estudos sobre o impacto do isolamento social na saúde mental das pessoas, os efeitos do vírus na economia mundial, a criação de modelos de volta parcial ao trabalho e a transformação de equipamentos em respiradores.
colaboração internacionais, em uma rede científica ampla e, na medida do possível, promissoraE há a busca por medicamentos. Em todo o mundo, remédios estão sendo testados na esperança de tratar a covid-19. Segundo Ana Paula, as energias estão focadas no redirecionamento de fármacos que já existem, porque desenvolver um novo medicamento pode levar em torno de 15 anos. É um processo semelhante ao da vacina, ou seja, respeita etapas e protocolos buscando segurança tanto na redução dos sintomas quanto nos possíveis efeitos colaterais:
– Começa com muitos candidatos, fazem-se testes in vitro, depois em animais, depois em humanos (fases 1, 2 e 3) e então é submetido a órgãos como Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no caso do Brasil, ou o FDA (Food and Drug Administration), seu equivalente nos EUA. Isso pode ser acelerado, mas não tem como burlar essas fases.
No caso da pesquisa com medicamentos, os ensaios clínicos dependem da existência de pacientes infectados e são bastante caros. Portanto, o declínio da pandemia é, ironicamente, ruim para a pesquisa.
– Muitos ensaios clínicos que começaram na China não foram terminados porque, quando o contágio foi controlado, faltou paciente – descreve a professora da UFRGS.
– A parte pré-clínica se dá dentro de universidades, e depois quem financia os estudos clínicos são indústrias farmacêuticas, que visam ao lucro. E, como a janela é estreita, as empresas não têm interesse. O lucro pode ser muito baixo depois, caso surja uma vacina antes – completa.
Coalizão e solidariedade
Com diversas opções de medicamentos já existentes a serem testados, despontam iniciativas com o objetivo de articular a testagem em larga escala e obter dados robustos rapidamente. A maior é o Projeto Solidariedade, da Organização Mundial da Saúde (OMS), um mutirão internacional para testar quatro medicações ou combinações de drogas consideradas promissoras. A mobilização envolve médicos e hospitais de todo o planeta, que incluirão dados de pacientes no site da organização. De forma randômica, o site determinará o tratamento a ser usado, e os médicos informarão a evolução diária do paciente. Assim, a OMS espera descobrir o mais eficaz entre quatro tratamentos: remdesivir (desenvolvido para combater o ebola), cloroquina e a hidroxicloroquina (usadas no tratamento da malária), ritonavir e lopinavir (para o HIV) e interferon-beta (para a esclerose múltipla).
A lista de candidatos vai bastante além dessas drogas. Inclui ainda anti-inflamatórios esteroidais, conhecidos como corticoides.
Um tratamento visto com bons olhos é o plasma convalescente, que envolve a transfusão do plasma sanguíneo de pacientes curados do coronavírus para indivíduos doentes. Depois de estudos com poucas pessoas darem resultados positivos na China, a agência federal FDA, nos EUA, aprovou o tratamento e laboratórios começaram a produzir plasma convalescente. Entretanto, é um processo caro e, conforme depoimentos de pesquisadores, ainda está sendo estudado para garantir que não provoque efeitos adversos.
Embora tenham recebido muita atenção da mídia, a cloroquina e a hidroxicloroquina são vistas com desconfiança pelos especialistas ouvidos para esta reportagem. Para Ana Paula, os estudos feitos até agora, na China e na França, apresentam problemas metodológicos. A esperança depositada neles, em princípio, tem mais a ver com a vontade de quem a propagou – os presidentes Trump e Bolsonaro – do que com os resultados práticos obtidos pelos cientistas.
Em busca de dados mais confiáveis, hospitais do Brasil e de outros países estão recrutando pacientes para estudos com essas drogas. O Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre, é um deles. Junto a outras instituições, como Sírio-Libanês, Albert Einstein, HCor e Beneficência Portuguesa, de São Paulo, e mais a Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet), entre outras instituições, o Moinhos formou a Coalização Covid Brasil, aliança que conta com o apoio do Ministério da Saúde e da farmacêutica EMS. O plano é avaliar a eficácia e a segurança de três tratamentos: hidroxicloroquina; hidroxicloroquina + azitromicina; e o anti-inflamatório dexametasona.
Não há comprovação científica de que esses medicamentos (hidroxicloroquina; hidroxicloroquina + azitromicina; e o anti-inflamatório dexametasona) trazem beneficio para pacientes com coronavírus. Apesar disso, parecem ser as melhores apostas
RÉGIS GOULART ROSA
Pesquisador do Hospital Moinhos de Vento
– É importante ressaltar que não há comprovação científica de que esses medicamentos trazem beneficio para pacientes com coronavírus. O que se sabe é que são relativamente seguros em outras condições – alerta o médico intensivista e pesquisador do Hospital Moinhos de Vento Régis Goulart Rosa. – Apesar disso, parecem ser as melhores apostas. Pelo que temos de evidências, trazem mais benefícios do que riscos, e também são mais baratos.
O projeto pretende acompanhar mais de 2 mil pessoas, com e sem necessidade de internação, por um ano após a alta hospitalar. Cerca de 60 hospitais participam do projeto e alguns deles já começaram a recrutar os primeiros pacientes, pois várias etapas, como o desenvolvimento dos protocolos de pesquisa e as autorizações de órgãos regulatórios, foram aceleradas.
– Estamos tendo apoio e compreensão de todos os envolvidos. Os protocolos de estudo foram confeccionados em uma semana. Trata-se de algo que demoraria seis meses! O Conep (Conselho Nacional de Saúde), que regula a pesquisa clínica no Brasil, se compadeceu e avaliou os aspectos éticos do projeto em tempo recorde – relata o doutor Rosa.
Os primeiros resultados devem estar disponíveis entre 60 e 90 dias. Tradicionalmente, um estudo dessa magnitude levaria mais de três anos para oferecer uma resposta contundente.