Se a força pudesse ser uma grandeza física materializada, é provável que não teríamos a capacidade suficiente de produzi-la na quantidade necessária hoje no Rio Grande do Sul. Ou até seria inviável conseguir entregar nas mãos de cada um que precisa em tempo hábil. Este fantasioso exercício de imaginação surge depois de se contemplar o cenário deixado pelo desastre climático de maio em locais da Grande Porto Alegre.
É que só com muita força — da mente e do corpo — será possível dar traços comunitários ao que hoje são amontoados machucados pela destruição. Também é preciso de união e esperança de quem sobreviveu. E mais ainda, de celeridade nas ações de quem deve cuidar destes que ficaram.
Para retratar esta situação, a reportagem do Diário Gaúcho rodou por alguns dos pontos mais atingidos pela cheia na Capital e na Região Metropolitana. Passamos pelo bairro Humaitá, em Porto Alegre, a comunidade do Mathias Velho, em Canoas, e a pequena cidade de Eldorado do Sul, na Região Carbonífera.
Apesar de água ter baixado mais cedo em outras localidades, nestes pontos, muitos habitantes só tinham reencontrado os lares no último dia de maio ou no começo de junho — depois de quase um mês longe do seu chão.
Hora de expulsar a lama no Humaitá
Na zona norte de Porto Alegre, a grandeza de um estádio como a Arena do Grêmio contrasta com as vielas do Humaitá, que resistem bravamente. A água e a lama, entretanto, não diferenciaram imponências. Em algumas ruas, trafegar é um desafio, muitos móveis e eletrodomésticos totalmente danificados aguardam recolhimento da prefeitura.
Praças são ocupadas por carros, uns intactos, outros marcados por barro até o teto. Colchões, sofás, bancos de automóveis e outros tecidos recém-lavados aproveitavam o sol para tentar retomar a sua melhor forma. Na Rua Doraci Theobaldi, o técnico em mecânica aposentado Marco Antônio da Silva Santos, 54 anos, buscava dar novamente traços de lar à sua casa. A água bateu no teto do primeiro piso e quase atingiu o segundo. Com um lava-jato, ele limpava ferramentas e peças que usa para prestar pequenos serviços que complementam sua renda.
— Já lavei bem a geladeira e o fogão, agora estou esperando secar. Torcendo que funcione — projeta Marco Antônio.
Um dos primeiros móveis que deve entrar na casa é um sofá preto de couro. O tecido impermeável protegeu o item de maiores estragos. Encontrado por Marco Antônio em uma montanha de descartes na Avenida Sertório, o móvel agora terá nova utilidade. Quem não teve a mesma sorte foi o Chevrolet Chevette 1978 do técnico mecânico. Pouco a pouco, ele está tentando lavar o carro, mas ainda não havia testado a partida. Os vizinhos têm perguntado e procurado com frequências pelos serviços mecânicos do homem.
— Se der tudo certo, já vou retomar os serviços logo — comemora.
Na mesma rua, a garçonete Loreni Miranda da Rosa, 52 anos, usava o rodo para expulsar a lama da entrada de casa. O sofá tinha acabado de ser higienizado por uma empresa contratada por ela. A expectativa é reutilizar o móvel. Ela vive na residência de dois pavimentos com o filho, de 16 anos. Os quartos, na parte superior, foram poupados pela água.
— Agora pretendo buscar os auxílios do poder público para reconquistar o que perdi — diz Loreni.
A angústia no comércio próximo da Arena
De frente para a Arena, Osvaldino Lopes de Oliveira, 64 anos, colocava os refrigeradores do Churrasco do Dino para secarem ao sol. O comércio, que ele abria em dias de jogos do Grêmio, divide espaço com sua casa. Aos fundos do primeiro piso, estão a cozinha e a sala. Pouco se salvou.
No segundo andar, a esposa de Osvaldino, Silvana da Costa, 49 anos, também aproveitava o céu mais limpo para secar roupas que foram inundadas. Os quartos, que ficam no mesmo piso, não foram atingidos. O maior desejo do casal é a retomada da atividade local gerada pelo futebol. Sem previsão de o time voltar a jogar no bairro, os comerciantes desejam que, ao menos, haja público nos bares para assistir às partidas.
— Espero que melhore antes da volta dos jogos aqui na Arena, porque sabemos que essa parte ainda vai demorar — pontua Osvaldino.
Em busca do Eldorado
Numa rápida pesquisa na internet, o termo eldorado se define como um "local pródigo em riquezas e oportunidades". Eldorado do Sul, na Região Metropolitana, carregava consigo um pouco deste significado. Em pleno crescimento, com importantes indústrias e empresas instaladas em seu território, o simpático município construía o caminho para deixar de ser passagem e se tornar destino. Mas foi o local mais castigado pela enchente no Estado — com 80% dos domicílios atingidos de alguma maneira.
Nos últimos dias de maio, as famílias começaram a retornar para casa. Entre os que voltaram, estavam a comerciante Vera Lucia Ramos, 64 anos, e sua mãe, Maria de Lourdes Ramos Alves, 84 anos, pensionista. As duas ficaram em um abrigo na cidade de Mariana Pimentel, a 60 quilômetros de Eldorado.
— A água tomou todo o primeiro andar da casa. Minha lanchonete, na esquina de casa, também foi alagada. Estamos tentando retomar, mas o lixo nas ruas ainda incomoda. Acho que a sensação de normalidade vai voltando quando isso for limpo — acredita Vera.
Dona Maria aproveitou o sol para lavar vestidos que tinham sido inundados. Alguns, segundo ela, nunca foram usados. Vera acredita que as peças não têm recuperação, mas a mãe, mais experiente, ainda tem fé.
Na casa ao lado, o montador de redes telefônicas Walmor Gomes da Silva, 52 anos, se divide no trabalho de recuperação com a esposa, a dona de casa Deizi Lenir Silveira, 61 anos. A força da água arrancou parte do telhado da residência. Walmor já fez alguns reparos, mas se emociona ao mostrar até onde a água chegou.
Com os olhos cheios de lágrimas, tem esperança de conseguir se recuperar. Mas no momento, espera ao menos que a doação de colchões prometidas pelo município contemple a família, para que ele e a esposa tenham onde dormir. Eldorado quer recuperar seu significado, mas a busca ainda exigirá um grande esforço.
Dura retomada na Mathias
O bairro Mathias Velho, em Canoas, tem tamanho e população de uma cidade. São mais de 43 mil habitantes, boa parte deles atingidos pela cheia. A imagem da água cobrindo o teto das casas vai seguir na memória dos canoenses por um bom período, mas o cenário atual também é marcante.
Ruas acumulam um sem fim de resíduos retorcidos pela força da água. Pilhas de móveis quebrados, roupas, galhos e lama se amontoam na frente das casas. É como se cada morador visse tudo que tinha em casa ser jogado num grande liquidificador. E o que restou agora está despejado do lado de fora.
Com ajuda da filha, o pintor industrial Telmo Escobar, 70 anos, busca juntar as peças que sobraram para remontar o lar. Durante a visita do DG ao Mathias Velho, a estudante de Direito Kênia Escobar, 46 anos, filha de Telmo, tirava a lama encrustada nos refrigeradores da casa. Moradora de Porto Alegre, ela tem rumado a Canoas diariamente para ajudar ao pai.
— Está bem difícil, precisamos de ajuda, principalmente, do recolhimento desse lixo que está pelas ruas — aponta Kênia.
Perto dali, a família Foppa busca força num item resgatado no meio de enchente. Enquanto a água subia, o caldeireiro Francisco Foppa, 52 anos, salvou o lava-jato que estava em casa e trabalhou na restauração do equipamento. Agora, depois de retornar para casa, a secretaria Sarita Foppa, 44 anos, conta que o aparelho tem tido importante papel na limpeza do lar.
— O lava-jato, graças a Deus, conseguimos recuperar. Está nos ajudando muito agora — compartilha Sarita.
No local onde vive o ferramenteiro aposentado Paulo Borges, 57 anos, é possível entender um pouco da dimensão da tragédia. Uma bicicleta está ilhada no telhado da casa.
— E nem era nossa. Não sei de onde veio e ainda não conseguimos tirar — conta ele, escorado no seu carro.
O veículo de Paulo, um modelo da Peugeot, foi completamente engolido pelo extravasamento do Rio dos Sinos, que corre no fundo da Mathias, cerca de 6 quilômetros distante de onde a água chegou. Alternando entre momentos de mais esperança e outros de reflexão, Paulo se preocupa com a saúde mental de quem foi atingido.
— A gente limpa um pouco, desanima, acha que não vai dar, depois volta e vai de novo. Sei que a gente vai conseguir superar isso, mas é grande o trabalho — torce o morador de Canoas.
Limpeza das cidades
- As prefeituras de Canoas, Eldorado do Sul e Porto Alegre buscam não traçar previsões exatas para terminar a limpeza das cidades.
- Os municípios informaram que divulgam diariamente em seus canais oficiais os locais que devem ser atendidos.