Por volta das 18h do dia 3 de maio de 2024, uma sexta-feira, a comerciante Denise Antunes percebeu que era a hora de fugir do bairro Sarandi. Naquele momento, ela observava a inundação — que historicamente não era um problema grave da região — chegar a ruas mais distantes e numa velocidade nunca testemunhada. Pelas redes sociais, corriam informações alarmantes de outras partes da comunidade. Algo inédito, de fato, era vivido pelo Sarandi. Na casa onde ela reside, a água atingiu 1m10cm acima do telhado.
— Só pensei que tínhamos que colocar os documentos, algumas roupas e os três gatos no carro e sair. Eu vi a água vindo e subiu rápido. Disse para o meu marido que se o carro não conseguisse sair com os gatos, eu também não sairia — relata a moradora da Rua Aderbal Rocha de Fraga, vizinha ao dique e uma das últimas ruas do bairro a registrar o recuo da água, mais de 30 dias depois do início da enchente.
O Sarandi é oficialmente o bairro de Porto Alegre mais atingido pela calamidade de 2024. Conforme o "painel interativo sobre o impacto da cheia do Guaíba", da prefeitura, foram 26.042 pessoas afetadas.
A comunidade nasceu às margens do Rio Gravataí e do Arroio Feijó. A ameaça de inundações fez com que, ao longo dos anos, ela recebesse cerca de 11 quilômetros de diques e quatro casas de bombas, o maior número da cidade, espalhadas pelas comunidades de Vila Brasília, Vila Minuano e Asa Branca. Porém, mesmo com esse sistema, não foi possível salvar o bairro.
— Eu senti que a argila do dique começou a se mover, eu vi que ia ceder — narra o eletricista Paulo Fernandes, outro morador da Rua Aderbal Rocha de Fraga, cuja casa fica junto à estrutura de proteção, e que também perdeu tudo no imóvel.
Naquela noite de sexta-feira, moradores compartilhavam em redes sociais informações sobre a gravidade do problema. Inicialmente, o relato sobre rompimento de diques foi rebatido pelo prefeito Sebastião Melo, que afirmou que "estava tudo sob controle".
— As notícias da prefeitura davam conta de que não havia um rompimento, mas um pequeno extravasamento. Se tivessem dado um alerta maior, eu teria contratado um caminhãozinho de frete pra levar as nossas coisas — lamenta Denise Antunes, que mantinha no imóvel uma mercearia com o marido e perdeu tudo em casa.
O alerta mudou de tom na manhã de sábado (4 de maio), quando houve orientação para que as pessoas deixassem o Sarandi. Melo seguiu negando que tenha havido rompimento do dique. O professor Fernando Dornelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), visitou o local dias depois e é contundente:
— Foi rompimento. Se o dique perdeu sua conformação original, ele sofreu o rompimento. Isso pode ser tanto por não resistir aos esforços da pressão da água quanto por erosão.
Reassentamentos necessários
A enchente de 2024 escancarou um problema histórico do Sarandi. Ao longo dos anos, moradores construíram as casas em cima dos diques ou apoiando-as nas estruturas. O que deveria ser um sistema intocável, foi se tornando frágil. Em 2013, o bairro já havia sofrido com inundação em razão de rompimento de um dique. Na oportunidade, 700 casas foram atingidas. Após a enchente histórica de 2024, o poder público admite falhas.
— Até pela dificuldade de conseguir acessá-los, com certeza não se chegou lá (nos diques) para fazer a devida manutenção. Não há nem espaço para entrar uma máquina. Há muitos anos e muitas gestões isso não é feito porque aquelas casas estão consolidadas — afirma o diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), Maurício Loss.
O futuro e a segurança do Sarandi dependerão da retirada de imóveis e manutenção dos diques. Estimativa da Secretaria Municipal de Habitação e Regularização Fundiária aponta que cerca de 500 imóveis têm potencial de serem demolidos na região. Porém, a prefeitura é cautelosa e afirma que o número final depende de um plano de vistorias. Considerando-se o valor de R$ 127 mil do bônus-moradia pagos atualmente pelo poder público, o investimento nestes reassentamentos somaria R$ 63,5 milhões.
O Executivo municipal também pretende realizar estudos para adequar os diques aos novos parâmetros da inundação de 2024. Todo o sistema anticheias da Região Metropolitana tem por base estudo considerando os valores da enchente de 1941, que foi menor.
— Estamos finalizando os termos de referência para que a gente consiga contratar esses estudos e também as soluções. Até para entender que tipo de reparo que eles (os diques) precisam — garante Loss.
Aumento no déficit habitacional
Levantamento preliminar da prefeitura indica que a atual enchente danificou 35 mil imóveis em toda a cidade, sendo que 12 mil ficaram completamente destruídos. É um cenário que impactará no déficit habitacional da Capital. Levantamento do final do ano passado revelava um déficit de 30 mil residências.
— A situação da calamidade muda completamente a questão do déficit habitacional. Talvez haja famílias atingidas agora que já estivessem naquela contagem (do final do ano passado). Mas deve aumentar. Ainda vamos fazer esse cruzamento de dados — diz a titular da Secretaria Municipal de Habitação e Regularização Fundiária, Simone Somensi.
Até o momento, 37 famílias do bairro Sarandi tiveram as casas demolidas para permitir o acesso das máquinas da prefeitura para o conserto emergencial do dique na Vila Brasília. Em troca, cada família irá receber um bônus-moradia no valor de R$ 127 mil para a compra de uma nova residência. Desde 2021, a prefeitura já pagou 305 bônus-moradias a famílias em processos de reassentamento.
Nova área de risco
Desde março deste ano — portanto antes da enchente — está em elaboração o "Plano Municipal de Redução de Riscos de Porto Alegre". O financiamento é do Ministério das Cidades, com participação da prefeitura. Os estudos são realizados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo o coordenador do plano, Guilherme Garcia de Oliveira, o Sarandi deverá se tornar uma área de risco.
— A região da Vila Brasília, por exemplo, não está dentro do mapa de áreas de risco atual. Ela deve entrar no novo mapeamento, uma vez que não há garantia de que o sistema vai dar conta das cheias futuras. Especialmente esse sistema da forma como ele está, que flagrantemente parece ter problemas — afirma Guilherme Garcia de Oliveira, coordenador dos estudos e professor do Centro Estadual de Pesquisas em Sensoriamento Remoto e Meteorologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por onde passam os diques
O sistema anticheias do Sarandi tem a freeway como uma espécie de muro ao norte. À leste, possui uma estrutura que parte da freeway e contorna a sede da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs). Neste ponto, houve um dos rompimentos. Outros dois danos foram registrados no dique a oeste do bairro (veja mapa abaixo).
Contribuiu ainda para o alagamento da região a própria Avenida Assis Brasil, construída sob a freeway. Uma falha de projeto, na avaliação do professor Fernando Dornelles, do IPH/UFRGS.