A enchente que assolou o Rio Grande do Sul escancarou a necessidade de atualizações no sistema contra cheias da Região Metropolitana. Desenvolvida a partir de um projeto da década de 1960, a defesa não deu conta da inundação sem precedentes que atingiu dois terços de Canoas e afetou 83% da população de São Leopoldo. São mudanças que devem passar, sobretudo, por aumento na altura de diques e pela modernização de casas de bombas.
Assim como em Porto Alegre, o sistema anticheias dos municípios vizinhos foi construído com base em um estudo do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), de 1968. Ele considerou como parâmetros a histórica enchente de 1941, superada agora, e sem prever cenários de urbanização desenfreada.
São Leopoldo conta com 20,9 quilômetros de diques (sendo 2,4 quilômetros de muros). Na área central, eles foram construídos prevendo cotas de transbordamento mais altas, entre 8m50m e 9m. Foi o que preservou a área. Segundo medição da prefeitura de São Leopoldo, o rio chegou a 8m20cm na manhã do dia 4 de maio. Porém, em locais onde na década de 1960 bairros ainda tinham pouca ocupação ou mesmo inexistiam, os diques foram projetados com cotas mais baixas. Foi o caso da região da Avenida João Correa, que separa os bairros Vicentina e São Miguel, dois dos mais atingidos. A cota do dique é de 6m40cm.
— Quando estourou aqui, tinha mais de 50 pessoas e todo mundo saiu correndo. Foi muito rápida a correnteza — relata o funcionário público municipal Luiz Paim, que testemunhou na madrugada do dia 4 o rompimento de um trecho de 70 metros do dique junto à casa de bombas da Avenida João Correa.
Um trabalho da Metroplan, iniciado em 2015 e finalizado em 2018, indicou a necessidade de elevação de partes dos diques em São Leopoldo. Conforme o "Estudo de Alternativas e Projetos para Minimização do Efeito de Cheias e Estiagens na Bacia do Rio dos Sinos", a elevação proposta era de 50 centímetros em toda a extensão dos diques nas margens esquerda e direita do Sinos.
— O novo normal terá que ser de 80 centímetros a um metro de altura a mais nos bairros onde houve o ultrapassamento — diz Antonio Geske, geólogo e diretor de Controle de Cheias de São Leopoldo. Ele destaca que o estudo que irá apontar o dado preciso ainda terá que ser feito.
A sequência de eventos, após a água passar por cima do dique e rompê-lo, culminou com o desligamento da casa de bombas do bairro Vicentina, que possui sete motores. Dezoito mil litros por segundo deixaram de ser drenados de volta para o Rio dos Sinos. A mesma situação foi vivida nos bairros Santos Dumont e Rio dos Sinos, em razão do rompimento de um pedaço de 100 metros do dique e do colapso da casa de bombas instalada do lado de Novo Hamburgo, no bairro Santo Afonso.
— À medida que o rio foi entrando na casa de bombas, o operador desligou e foi embora. Desligou em segurança para não gerar curto-circuito e possibilidade de fuga de energia na água. Mas tudo isso poderia ser feito de uma central de comando. As casas mais modernas são assim, com um sistema via internet — destaca Antonio Geske. Hoje, as casas de bombas precisam da presença de um operador 24 horas por dia.
A elevação das máquinas para preservar paineis eletrônicos não é necessária, segundo o diretor de Controle de Cheias de São Leopoldo. Conforme Geske, as bombas de São Leopoldo estão colocadas em cotas adequadas para retirarem a água das bacias de contenção, que acumulam a água da chuva.
Diques ainda mais altos em Canoas
Em Canoas, a prefeitura avalia que será necessário atualizar o sistema de proteção com cotas ainda maiores. Dos 20,2 quilômetros de diques do município, houve rompimentos em trechos dos bairros Rio Branco e a Mathias Velho.
— Eu estimo que nós devemos trabalhar com, no mínimo, um metro e meio de elevação — diz o secretário de Obras de Canoas, Guido Bamberg.
A lista de bairros atingidos em Canoas poderia ter sido maior. Segundo o secretário, uma obra no segundo semestre de 2023 elevou o dique do bairro Niterói, que fica do lado leste da cidade.
— Salvamos o bairro Niterói. Se não tivéssemos feito essa elevação, ele teria sido inundado também — afirma o secretário.
O cinturão de diques de Canoas ainda aguarda a construção de uma estrutura de 7,2 quilômetros para proteger o bairro Mato Grande. Conforme a prefeitura, o projeto inclui a construção de uma casa de bombas e está em etapa de licenciamento na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). No entanto, a Fepam nega que haja qualquer processo com análise pendente (leia a nota abaixo na íntegra).
Recursos
Em meio à crise que atinge o Rio Grande do Sul, a promessa é que não faltarão recursos federais. São Leopoldo estima em cerca de R$ 150 milhões os valores para ampliação de diques e outros R$ 60 milhões para modernização das cinco casas de bombas. Canoas, que tem oito casas de bombas, não apresentou ainda estimativas de investimento.
— Nós queremos envolver as universidades gaúchas e o que tiver de melhor em termos de engenharia para pensar em três coisas: como reduzir a velocidade dessa água que vem dos rios das Antas e do Taquari; segundo, como ter um sistema moderno e seguro de diques e de casas de bombeamento que possam proteger a Região Metropolitana; e em terceiro lugar, quais as possibilidades de aumentar a vazão da Lagoa dos Patos em direção ao mar — afirma o ministro de Apoio à Reconstrução, Paulo Pimenta.
Eventuais responsabilizações também estão na mira do Ministério Público. Segundo a promotora Ximena Cardozo Ferreira, da Promotoria Regional Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, a ação humana não pode ser ignorada na atual crise.
— Se a gente chama isso de desastre natural, isso traz consequências. A primeira é que ninguém é responsabilizado pelo que acontece, e a segunda é que ninguém faz nada para evitar o próximo desastre — diz ela.
Doutora na área ambiental pela Universidade de Alicante (Espanha), a promotora de Justiça avalia que o cenário vivido pelo Rio Grande do Sul obriga a mudanças no chamado Tempo de Recorrência (TR) nos atuais projetos antienchentes da Região Metropolitana. O TR é o intervalo médio de tempo em que pode ocorrer ou ser superado um dado evento. No caso gaúcho, a atual enchente superou 1941 antes de completar cem anos.
— Na Espanha, se trata o tempo de recorrência de 500 anos. Aqui nós temos uma dificuldade incrível de implantar o TR porque os prefeitos não aceitam isso porque dizem "não, eu moro aqui há 30, 40, 50 anos e isso nunca aconteceu" — diz a promotora.
Pesquisadores também acreditam que o momento é propício para a revisão dos sistemas.
— O projeto de 1968 não adotou um TR específico, ele adotou a maior cheia observada, que foi a cheia de 1941. Acredito que a gente vai ter tempo para revisar esses estudos e fazer apontamentos de necessidade de alteamento dos diques. Um estudo hidrológico atualizado, colocando esse novo dado na série histórica, a cheia de 2024, vai mudar toda essa estatística e dar uma nova orientação — explica o professor Fernando Dornelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do RS (IPH/UFRGS).
O que diz a Fepam
A Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) ressalta que não procede a informação de que o projeto de construção de um dique e de uma casa de bombas em Canoas aguarda licenciamento do órgão ambiental. Na verdade, não há qualquer processo com análise pendente na Fepam referente a sistemas de controle de enchentes, nem para Canoas nem para outros município do estado. Todos os pedidos protocolados para essa atividade tiveram licença emitida pela Fundação.