Catadora de papel e metais para reciclagem, Cláudia Rodrigues da Silva, 60 anos, mora há 24 dias numa barraca armada no acostamento da BR-290, embaixo da ponte nova do Guaíba. Ela e mais 30 moradores da Vila Areia, uma das mais próximas ao bairro Humaitá (zona norte de Porto Alegre) saíram com a roupa do corpo e os animais de estimação quando as águas do estuário, misturada com a dos bueiros, inundaram suas casas e toda a região.
Dentre os náufragos da enchente na Capital, eles são os que sofrem há mais tempo, porque o bairro historicamente está entre os primeiros a alagar. E não enxergam perspectiva de voltar para o que restou dos seus lares. Por isso, clamam por ajuda.
Cláudia costuma ganhar R$ 100 ou pouco mais que isso, por semana (sim, é isso mesmo, leitor) coletando latinhas para vender a depósitos de sucata. Em alguns meses, consegue um pouco mais, mas nunca chega a um salário mínimo de faturamento.
Quando as águas avançaram, ela saiu de casa com algumas roupas e o cachorro Revoada, um dócil pitbull com dois anos de idade. Agora, permanecem juntos numa barraca cedida por vizinhos, com cobertores doados por pessoas que se condoeram com a penúria. Dormem junto a sacos de lixo seco coletado e que servem de proteção contra as ratazanas.
— Minha casa era de madeira, desmoronou. Vamos ter de arranjar tábuas para fazer uma nova, quando a água baixar — antevê a recicladora.
Cláudia decidiu acompanhar uma turma de vizinhos que se mudaram para a beira da rodovia porque temem que ladrões invadam suas residências, hoje submersas. E seus veículos, carros velhos que estão só com a capota de fora das águas.
Um dos líderes da turma é o reciclador Carlos Kappes, que conseguiu cortar um latão e improvisar um fogareiro, vital para aquecimento nesses dias de frio. Tentam ali secar lenha e aquecer água para cozinhar. Para higiene, contam com um banheiro químico cedido pela prefeitura e que é cuidadosamente limpo, já que dependem dele cerca de 30 pessoas.
Mesmo na desgraça há espaço para brincadeiras. Os colorados não resistem e sugerem aos tricolores que visitem a Arena do Grêmio, também inundada e situada a poucas centenas de metros do acampamento transformado em lar pelos catadores.
O Humaitá e arredores são bairros de contrastes, com casas de madeira convivendo ao lado de confortáveis sobrados de dois pisos e até alguns condomínios de classe média alta. Agora a maioria dos moradores está irmanada pela desgraça.
A técnica em Enfermagem Norma Oliveira, 47 anos, vive numa residência de dois andares que jamais tinha alagado, na Rua Alexandre Wagner, na Vila Farrapos (junto ao Humaitá). Quando a chuvarada começou, ela achou que passaria logo. Só saiu do lar quando as águas bateram na porta, por insistência da mãe idosa, Ivânia. As duas, o pai dela, uma irmã e uma filha abandonaram tudo, incluindo três carros (um Citroen, um Renault e um Fiat) e duas motos. Até agora os veículos estão debaixo de água. Norma e a família estão abrigadas temporariamente no apartamento de uma amiga na Zona Norte, que topou acolher seis pessoas.
— A gente ia morrer, não fosse a mãe insistir para sairmos. Acho que vão encontrar gente morta nas casas, porque quando deixamos a nossa, ainda tinha vizinhos trancados, que teimavam em ficar. A verdade é que a gente se apega muito a patrimônio, mas existem dois tipos de pessoa: a que reclama e senta e aquela que vai à luta. Decidi ser desse último tipo. Como são minhas colegas que moram em Eldorado do Sul e sofreram três inundações em sete meses — desabafa Norma, em meio a uma crise de choro.
Mesmo quem perdeu tudo encontra ânimo para ajudar os menos favorecidos. É o caso de Rodrigo Ferreira, instalador de películas para automóveis, que viu a casa de dois andares onde ele reside, na Rua Sérgio Porto (Farrapos) ser engolida pelas águas. Seu veículo Astra, os eletrodomésticos e móveis estão submersos. Conseguiu salvar quatro gatos e seis cachorros, dele e do tio que mora no andar superior. Levou todos os animais para um apartamento na Avenida Assis Brasil, que está em reforma e foi cedido por um amigo.
Na manhã de sábado (25), Ferreira estava com água pela cintura, percorrendo as vias internas do Humaitá e Vila Farrapos. Ele e centenas de moradores que se conectam num grupo de WhatsApp acertaram escalas para levar comida a animais que estão nos andares superiores de residências ou ilhados. E também para vigiar as casas contra os saques.
— Só tenho um pedido, que as autoridades instalem logo bombas de sucção para drenar logo esses alagamentos. A impressão que temos é que esqueceram de nós nessa cidade.
Dono de uma lancheria e vizinho de Ferreira, Marcelo da Rosa também faz rondas no bairro. Ele diz que tem pelo menos 50 familiares que residem na Vila Farrapos e todos tiveram as casas inundadas.
Alexandre Pezzi, dono de uma pet shop na avenida A.J. Renner, viu sua empresa ser inundada por uma camada de 1,5 metro de água. Isso ocorreu por volta de 2 de maio e até agora o alagamento permanece quase inalterado. Ele conseguiu resgatar seis gatos e dois cachorros que mantinha no local.
— Resido há 23 anos aqui, muito antes da construção da Arena do Grêmio, que fica pertinho daqui. É a primeira vez que entra água na loja e não consigo sequer verificar os prejuízos. Mas sei que tem gente em situação muito pior que a minha, física e financeiramente — comenta Pezzi, que tem usado o tempo para ajudar em abrigos na Zona Norte.
Dmae anuncia bombeamento das águas
A situação é tão dramática no Humaitá e também no vizinho bairro de Navegantes que, em alguns pontos, só blindados anfíbios do Exército conseguem navegar - literalmente - pelas ruas que viraram lagos. Foi o que aconteceu na manhã deste sábado (25), quando veículos de transporte de pessoal anfíbios Guarani, com tração em seis rodas, percorreram as avenidas A.J.Renner e Ernesto Neugebauer (as principais do Humaitá) levando víveres para moradores ilhados e retirando os que quiseram sair.
— É um dos piores dramas comunitários que vi até hoje no Brasil. E olha que vi muitos — descreve o general Richard Murray, comandante da 8ª Brigada de Infantaria Motorizada, que colocou os Guarani em ação no bairro Humaitá.
Segundo a direção do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), neste domingo (26) deve começar a instalação da bomba flutuante emprestada pela Sabesp (companhia de saneamento paulista) na região da Estação de Bombeamento de Águas Pluviais 5 (Ebap 5), no Humaitá, que já foi religada. Com isso, as águas devem começar a baixar, informa o diretor-geral do Dmae, Maurício Loss. Há perspectiva de que isso propicie chegar até os motores da Ebap 8, da Vila Farrapos, que estão submersos.
Chegou a ser cogitado o uso de dutos e canos que passem sobre a freeway para realizar o escoamento de água na região, mas o Dmae desistiu disso, porque seria necessário fechar as pistas da rodovia. E isso impediria a passagem de veículos de emergências, como ambulâncias.