O sistema de contenção de cheias do Guaíba em Porto Alegre está prestes a completar 50 anos e enfrenta, desde a segunda-feira (20), o segundo teste de sua existência. Ele foi construído no começo da década de 1970, entre a BR-290, na Zona Norte, e a Fundação Iberê Camargo, na Zona Sul, e é composto por 14 comportas de metal, que complementam uma barreira de 24 quilômetros de diques externos e internos, amparados por 23 casas de bombas elétricas que devolvem a água ao estuário.
Na avaliação de especialistas do Instituto de Pesquisas Hidrológicas da UFRGS, a estrutura funciona, mas pode e deve receber melhorias assim que a água baixar, pois novas enchentes podem ser maiores e mais agressivas. A falha mais significativa detectada entre segunda e terça-feira (22) foi a inoperância de uma das casas de bombas e de uma comporta no cruzamento da Rua Voluntários da Pátria com a Avenida Sertório, no 4º Distrito. O problema foi contornado por um dique construído emergencialmente.
— Passando a enchente, precisamos rever todo o sistema e analisar o que funcionou ou não. Os vazamentos das comportas, a necessidade e o método de colocação de sacos de areia. Além disso, uma revisão e atualização mecânica das comportas seria a primeira ideia, revisando a capacidade de mobilidade, vedação e operação delas — resume o engenheiro hidrólogo André Silveira, professor do IPH.
A enchente que motivou a construção do Muro da Mauá e dos demais dispositivos entre 1971 e 1974 aconteceu em 1967 e levou o nível da água a 3m13cm — marca superada nesta terça-feira (21), quando chegou a históricos 3m46cm. O muro e os diques foram projetados para aguentar uma elevação do nível da água de até 6m. O recorde histórico, antes da construção, foi alcançado na grande enchente de 1941: 4m75cm.
Tanto em altura (três metros) quanto em extensão (750 metros) e localização (ao longo da Avenida Mauá), a proteção do muro de concreto garantiu que o centro econômico da Capital se mantivesse livre de inundações significativas, ressalta Silveira. A quantidade de água que foge da vedação por baixo das comportas entre os sacos de areia não preocupa o engenheiro do IPH:
— A questão do muro transcende a engenharia. Há soluções para substituir o muro fixo por um muro móvel, mas os custos disso são elevadíssimos. Os materiais seriam importados, demandaria treinamento de pessoas e um investimento muito grande. Uma alternativa para manter o muro pode ser aumentar o número de comportas. É viável, mas também teria limites.
A remoção do Muro da Mauá, como propõem projetos arquitetônicos que pretendem explorar comercialmente a área do Cais, poderia ser feita mediante substituição por outra estrutura semelhante, na visão de Silveira. Já Fernando Mainardi, também engenheiro do IPH, atenta para a versatilidade das vias elevadas, como a Avenida Edvaldo Pereira Paiva e a freeway, na função de diques.
Ambos sinalizam que todos os investimentos feitos nos trechos 1, 2 e 3 da orla do Guaíba e no Cais Mauá precisam levar em conta a chance de alagamento frequente, pois são áreas que originalmente foram aterradas para afastar o leito da malha urbana.
— Em 1941 e 1967, o Guaíba subiu em direção à cidade. Construíram o muro e os diques para nos afastarmos dele. Agora, nos últimos anos, o Guaíba tem crescido na nossa direção com mais frequência do que antes — comenta Mainardi.
Alternativas possíveis onde o sistema não chega
Os novos parâmetros de chuvas extremas são um desafio para o futuro, especialmente nas áreas onde o sistema de proteção não chega, observam os engenheiros do IPH.
— O sistema está adequado às necessidades atuais. Mesmo que os eventos extremos fiquem mais frequentes, a região protegida pelos diques da Capital seguirão protegidas. A Região das Ilhas e a zona sul da Capital, sim, precisam receber investimento — alerta Silveira.
Na Zona Sul e nas ilhas, não há estruturas de proteção contra cheias do Guaíba. Mainardi e Silveira sugerem que, em ambos espaços, haja um sistema de monitoramento das chuvas e do fluxo dos rios vizinhos em tempo real. Além disso, Mainardi lembra que outras regiões acostumadas a engrentar cheias de rios anuais constróem em acima de estruturas elevadas do chão. Bairros próximos ao Rio Caí, em São Sebastião do Caí, são um exemplo desta solução de engenharia.
— Do princípio científico, podemos, sim, habitar as ilhas e locais que inundam com alguma frequência se tivermos medidas de adaptação não-estruturais, como um sistema de alertas com 24horas ou 48 horas de previsão, ou como a construção de casas mais altas do que os níveis conhecidos de inundação, o que poderia reduzir os danos — exemplifica Mainardi.
Silveira, por outro lado, alerta para a lógica natural.
— Toda ilha é uma deposição de sedimentos que o rio traz. Uma ilha é alvo certo de inundação. Ela não é originalmente propícia a urbanização, então quem está lá precisa conviver — analisa, ressaltando a necessidade de remoções periódicas das pessoas que moram em todas regiões que sofrem com alagamentos.
DMAE acumula funções
Além de captar e tratar a água que está no Guaíba e precisa chegar até as torneiras da cidade, desde 2019 o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) cuida da retirada das águas que estão dentro da Capital e devem voltar para o estuário. Assim, manutenção e operação das comportas e das casas de bombas elétricas é responsabilidade do departamento independente.
Entre segunda e terça-feira, frente à falha na vedação da comporta de número 13, que fica no cruzamento da Avenida Sertório com a Rua Voluntários da Pátria, foi preciso construir um dique emergencial para auxiliar as portas de ferro danificadas.
A reportagem fez questionamentos ao Dmae sobre a manutenção das estruturas que apresentaram falhas, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.