Durante a tarde desta quinta-feira (5), quem passou em frente ao ginásio do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), no bairro Santana, percebeu um movimento diferente. A inquietação dos moradores das ilhas de Porto Alegre abrigados no local se explicava pelo tempo firme: a vistoria das residências atingidas pela inundação, enfim, iria ocorrer.
Etapa considerada fundamental para que os desabrigados possam retornar para suas casas em segurança, as visitas técnicas vinham sendo adiadas por causa de novos alertas de tempestade. No entanto, as chuvas mais recentes não impactaram o Rio Jacuí de forma significativa, possibilitando o trabalho.
Carregada nos braços por um vizinho, Aline Araújo de Oliveira foi uma das primeiras a reencontrar sua moradia. Servidores da Defesa Civil e da Fundação de Assistência Social e Cidadania também acompanharam a cadeirante. Ao final da vistoria, ela tinha os olhos marejados.
— Foi horrível, eu perdi tudo. Tudo que eu demorei para conquistar. Daí tu vê que não tem mais cama, coberta, nada, nada. Não tenho palavras — declara Aline.
Há um mês
Era tarde de quarta-feira, 6 de setembro, quando o primeiro alerta para o risco de inundações foi emitido pela Defesa Civil de Porto Alegre. O comunicado chamava a atenção para a possibilidade de um grande volume de água chegar à Capital. A enchente histórica registrada a mais de 150 quilômetros sinalizava que o Rio Jacuí, alimentado pelo Taquari, também transbordaria.
Não demorou muito para a região das ilhas — onde existem 14 áreas de risco mapeadas e vivem cerca de 18 mil pessoas — começar a ser atingida, obrigando muitas famílias a deixarem suas casas.
— Eu achava que não ia acontecer aqui — relata Alessandra Melo Cordeiro, moradora da Ilha das Flores.
Natural de Porto Alegre, a recicladora cresceu na Vila Nazaré, na Zona Norte, se mudou para Portão, no Vale do Sinos, mas, pouco depois, voltou à Capital, se instalando na ilha. Em 45 anos de vida, foi a primeira vez que viveu algo tão devastador.
— Eu moro na ilha há dois anos, nunca passei por uma enchente e a minha casa é alugada. O cara (locador) não falou que enchia d’água — afirma Alessandra.
Acompanhada da mãe, de 66 anos, e da filha, de 15, Alessandra foi acolhida inicialmente na Escola Estadual de Ensino Fundamental Alvarenga Peixoto, localizada na Ilha Grande dos Marinheiros. Como a água subiu bastante na região, colocando até mesmo o espaço em risco, as famílias abrigadas lá precisaram ser transferidas para o ginásio do Demhab.
Ela define como “uma tortura” passar tanto tempo fora de casa, apesar do tratamento digno recebido no abrigo.
— Fizemos um monte de amizade, mas não é como na casa da gente. Em casa estamos comendo toda hora. Pobre come toda hora. Aqui tem café, almoço, janta, tudo certinho, mas não é a liberdade de tu abrir a geladeira e pegar o que quiser — argumenta.
Ainda assim, o retorno não ocorrerá no melhor dos cenários, pois a família da Alessandra perdeu tudo o que tinha dentro da residência.
Risco permanente
Ao contrário de dezenas de famílias que se viram obrigadas a buscar abrigos públicos ou a ajuda de conhecidos, dona Tânia, de 72 anos, conseguiu se manter por perto. Enquanto a casa estava tomada pela água, ela acompanhava a evolução da enchente de dentro do barco do ex-marido, ancorado nos fundos do terreno.
Agora, tenta medir os estragos e organizar o que deu para salvar.
— Tem um monte de coisa pra lavar e secar porque pegou essa água fedorenta — reclama Tânia Maria da Silva.
O nível do rio está bem abaixo do registrado há algumas semanas, mas ainda toma conta dos fundos do pátio da idosa. O risco é permanente, o que não é uma novidade para a dona Tânia, mas, depois de tanto tempo, ela vê esse tipo de problema com outros olhos:
— A gente tá chegando numa certa idade em que passar por isso não é bom, né? Quando é novo, tudo passa, mas agora… tem que ir levando, não adianta.
A próxima inundação
Isaura Cristina Machado, 42 anos, também não é iniciante quando o assunto é superar enchentes. Perder o que tem dentro de casa dói, mas já faz parte da rotina.
— A tendência é piorar cada vez mais — acredita a dona de casa e recicladora.
Ela se mudou de Cachoeira do Sul para debaixo de uma ponte, junto às ilhas de Porto Alegre, com 12 anos de idade. Cresceu, casou e formou família. Criou laços, memórias e, por mais que viva em uma área de risco, não tem nos planos deixar o Arquipélago.
— Eu tenho um sonho de arrumar a minha casa, deixar ela mais alta, ajeitar o terreno aqui nas ilhas. Porque daqui eu não quero sair — destaca.
Assim como outros tantos moradores da região, Isaura tem bem claro que, mais à frente, durante uma nova enchente, será necessário deixar tudo para trás outra vez. Para essas pessoas, pensar assim não é ser pessimista, é encarar a realidade.