Um menino de olhos escuros e cabelo castanho, recém-nascido, foi levado até a entrada da Santa Casa em uma noite do verão de 1920. Enrolado em meio lençol velho, foi colocado na Roda dos Expostos, um mecanismo giratório de madeira, oco, encravado na parede do prédio. O sino foi tocado, despertando a responsável pela portaria. Do outro lado do muro, a porteira girou a roda, recolheu o bebê e também o recado deixado com ele: “Rogo pelo amor de Deus às boas Irmãs Caridosas nunca tirar essa correntinha do pescoço desta criancinha para ser conhecida um dia”. No topo do bilhete escrito à mão, vinha o nome do bebê: Raúl.
Raúl foi uma das quase 3 mil crianças deixadas na roda da Santa Casa de Porto Alegre entre 1838 e 1940. Pouco se sabe da maioria, além do nome, características físicas, sexo, idade aparente, roupa com que chegou e outros detalhes perceptíveis, anotados no livro de matrículas. Mas há “expostos” que viriam a se destacar e, mais de um século depois, tem gente que dedica seu tempo para investigar as histórias da roda.
Esse era um sistema trazido de Portugal para as Santa Casas de Misericórdia no Brasil, que eram incumbidas de criar e educar crianças rejeitadas. Garantia anonimato às mães que, por algum motivo, não tinham como criar um bebê. Até o começo do século 19, na Capital, era a Câmara Municipal que pagava famílias para criar crianças abandonadas, mas isso mudou durante a Revolução Farroupilha, como explica a historiadora da Santa Casa, Véra Barroso:
— Durante o período de guerra arrefece tudo, as receitas diminuem, é um período de grande instabilidade. Uma lei provincial cria, em 1837, a roda e dá à Santa Casa a atribuição.
Escritos à mão, bilhetes como o deixado com Raúl eram comuns. Muitas vezes, demonstravam o sentimento de dor que acompanhava a decisão, faziam promessas de voltar para buscar a criança – o que dificilmente acontecia – ou apenas clamavam pela caridade da instituição.
Com José, exposto em 1862, foram escritas as seguintes palavras: “Forçada pelas circunstâncias impossíveis de relatar, imploro a V. Sª desse pio estabelecimento a proteção para o infeliz que este acompanha”. Em artigo escrito para um livro da Santa Casa, a historiadora Hilda Agnes Hübner Flores destaca a valorização da liberdade em um recado de uma possível escrava alforriada: “Já está batizada, chama-se Leopoldina, nasceu livre”.
Alguns recados vinham escritos em versos, como este, de 1864:
Deus te salve, ó casa santa Deus te salve, ó caridade
Aqui me vieram botar
Por causa da necessidade
Mas talvez o mais emocionante tenha sido escrito por uma mãe de uma criança entregue em 1º de agosto de 1864. A moradora da Aldeia dos Anjos, hoje Gravataí, entregou com a criança uma poesia ritmada:
A uma mãe desolada atendei
Do leito de angústias, curtida de dores Imploro favores para um anjo querido
O pranto que corre, meus olhos escurecem
A mão estremece… Desvaira o sentido
É que faltam as forças à mãe infeliz
Não sabe o que diz, soluça e suspira
Quer escrever, pedir suplicando…
Mas para chorando, hesita, delira
Meu Deus, piedade! Guia minha mão…
Meu Deus, compaixão!
Preciso escrever…
Traçar essas linhas, pedindo um Asilo…
Não sei o estilo pra isso fazer!
Eu era uma virgem, mui frágil, bem sei
Protestos escutei… E amor me matou
Eu era inocente, qual pomba mimosa
E mão cavilosa o punhal me enterrou
E agora o que resta desse amor violento!
Resta o tormento, o opróbrio…
A vergonha!
E esta criança que a vós vos entrego
Tão fraca… Tão linda… Tão bela e risonha
Não está batizada, podeis tal fazer
E mesmo escolher um nome qualquer
Peço somente, padrinhos, enfim:
Domingos Martins e sua mulher
De novo implorando aqui finalizo
Se vos penaliza, atendei-me senhores:
Aceitai o infeliz – o pobre inocente
Deixai-me demente curtir minhas dores
O nome citado nos versos finais, segundo Véra, é um exemplo de algo recorrente nessa prática: a sugestão de uma família que pudesse ser a adotante da criança abandonada. Nesse caso e em muitos outros, no entanto, não se sabe se a sugestão foi de fato aceita. A historiadora cita ainda esse poema como demonstração de que a falta de condições financeiras não era o único motivo que levava ao abandono das crianças na roda:
— Esse poema alexandrino denota alto poder aquisitivo. Só quem estudou podia ter escrito algo assim. E, na construção poética, ela diz que foi ludibriada, que caiu nos braços de uma criatura, engravidou e, aos prantos, precisava entregar o bebê.
Além disso, muitos bebês eram fruto de gravidez fora do casamento, por isso, eram entregues em anonimato. E também havia filhos de escravas, que não queriam que o rebento passasse pelas dificuldades que elas viviam.
No museu do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, é possível encontrar uma réplica da Roda dos Expostos (a original já não existe mais) e objetos, como uma lanterna usada na Casa da Roda. A roda em si ficava na fachada ao lado da capela do hospital – hoje existe um vitral intitulado Ascensão de Jesus Cristo no lugar, junto a uma porta de acesso à Rua Professor Annes Dias –, mas a Casa da Roda era um prédio na região conhecida como Várzea, na esquina das atuais vias Sarmento Leite e Osvaldo Aranha, onde hoje há um estacionamento do hospital. Ali ficavam damas de leite para amamentar os bebês até que aparecesse alguém disposto a criá-los.
As famílias recebiam pagamento para cuidar deles até os sete ou oito anos. Então, se não fossem adotados, os meninos eram encaminhados ao Arsenal de Guerra para aprender uma profissão e as meninas iam para orfanatos. Aos 18 anos, elas recebiam um dote doado por benfeitores da Santa Casa, para arranjar-lhes casamento. A Roda dos Expostos foi desativada em 1940, após mobilização de médicos como Mário Totta, que acreditavam que não era mais admissível o abandono de crianças no anonimato.
O futuro, apesar de tudo
A menina que apareceu na roda da Santa Casa na noite de 11 de julho de 1847 acabaria escrevendo seu nome na luta pelos direitos das mulheres. Tida como a mais notória exposta da Capital, Luciana de Abreu atuou como escritora, educadora e pioneira na militância feminista em uma época que Porto Alegre tinha algo como 20 mil habitantes.
Pouco depois de ser deixada na Casa da Roda, ela foi adotada por um guarda-livros – como eram chamados os contadores à época. Logo se revelaria um prodígio. Aos 13 anos, quando completou os estudos na Escola Régia, recebeu o diploma das mãos do médico, jornalista e escritor porto-alegrense José Antônio do Vale Caldre e Fião, autor de A Divina Pastora, um dos primeiros romances brasileiros e um dos fundadores do Parthenon Litterario.
Ela foi uma das mulheres a integrar a histórica sociedade formada por jovens intelectuais de Porto Alegre. Além de divulgar suas obras culturais, o Parthenon Litterario é lembrado por lutar pela alforria dos escravos, pela implantação da República e pela publicação de uma revista que virou referência literária.
— No seu conjunto, contava com homens e mulheres combativos, cada um com sua posição, mas movidos, sobretudo, no plano político, pela libertação dos escravos e pela defesa da República, e, no plano literário, pelo movimento romântico. Tais posições, envolvendo temas de ordem política, literária e cultural, eram discutidas e difundidas em eventos diversos, entre estes os saraus literários, promovidos pelos associados da sociedade — destaca a professora de Letras da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) Regina Kohlrausch.
A professora aponta Luciana como uma das integrantes mais representativas do grupo. Ela destaca seus pronunciamentos em defesa da participação das mulheres para além do espaço a elas destinado no universo familiar:
— Em outras palavras, o direito de atuar e ter voz nas diversas esferas da vida pública e privada.
Entre os discursos contundentes, em 1873, defendeu a igualdade de direitos entre os sexos com a seguinte fala:
"Nós (mulheres) não somos menos ao homem: a nossa alma tem a mesma passividade e atividade que a dele, e tanto a sensibilidade como a inteligência e liberdade participam do mesmo grau de capacidade e podem ter o mesmo grau de desenvolvimento num ou noutro sexo."
Luciana também pregou a favor do voto feminino e da admissão de mulheres nas escolas de Ensino Superior. Em entrevista a ZH em 2007, seu biógrafo, Benedito Saldanha (falecido em 2020), afirmou:
— Eram posições muito progressistas, apoiadas pelo ambiente favorável que se formou em torno dela pela sua ligação com o Parthenon Litterario.
A intelectual morreu de tuberculose em 1880, com apenas 33 anos. Seu nome foi dado a uma charmosa rua do bairro Moinhos de Vento.
Memórias de Veridiana
Cento e cinquenta anos após sua bisavó ser deixada na Santa Casa, um empresário decidiu pesquisar a história da família. Por meio de um caderno de memórias escrito à mão pela familiar que não chegou a conhecer, arquivos do Centro Histórico da Santa Casa e relatos de parentes, o bisneto, Rogério Pons da Silva, 67 anos, conseguiu fazer uma das mais ricas reconstituições da história de alguém exposto na roda.
Veridiana Monteiro foi colocada na Roda dos Expostos em de 3 de junho de 1864. Ninguém sabe o nome de sua mãe, mas acredita-se que era companheira de um professor do Liceu D. Affonso. Esse homem teria sido chamado à Inglaterra para resolver questões de herança familiar e pediu a um amigo que desse suporte ao seu lar. Só que o que era para ser uma viagem rápida acabou se alongando, durou anos. E, quando o inglês informou por carta que estava retornando, sua companheira já tinha dois filhos do amigo dele, gestando um terceiro na barriga.
Segundo o caderno da própria Veridiana, o professor mandou que a companheira se livrasse dos dois filhos já nascidos. O menino mais velho foi adotado por uma família, e a menina, Veridiana, entregue com nove meses na roda da Santa Casa. No livro de matrículas de expostos da Santa Casa de Misericórdia, o nome dela, uma menina branca, colocada na roda às 19h30min, consta no registro nº 1.192, p. 92-93. Ela trazia uma figa de ouro de uma polegada de comprimento e dois emblemas do Divino Espírito Santo, um de ouro, outro de prata. Está também transcrito o bilhete preso às suas vestes:
"Ilmo Senhor Manoel José de Campos. A pessoa ao cuidado de quem estava esta menina não pode criar por isto recorre à caridade; Pede a V.S. para ser o padrinho e N. Senhora da Conceição e dar-lhe o nome de Veridiana, e que não lhe dê outro nome, e se for possível, não a dar a criar fora do estabelecimento da Santa Casa. A pessoa que tem direito a esta menina, se a sorte a não abandonar, procurará por ela. Espera de V.S. mais este ato de caridade e de religião".
A menina foi batizada em 5 de junho na Capela Senhor dos Passos, tendo como padrinho, como solicitado, Manoel José de Campos, provedor da Santa Casa na época. Também como pedido, Veridiana não foi entregue para família de criadores e foi educada na Casa da Roda, onde foi interna até os 15 anos.
A menina acabou se apegando a uma funcionária da Santa Casa, Fausta dos Santos Soares, uma senhora solteira de 60 e poucos anos, que nunca escondeu a realidade de exposta da menina. Escreveu em seu caderno de memórias que a mãe biológica tentou se aproximar dela cinco anos após o abandono, em uma festa para crianças internas da Santa Casa. Muito amedrontada, corria em direção a Fausta. Trêmula e pálida, a mulher teria dito ao ver a menina: “Minha Filha”. Veridiana, conforme suas anotações, respondeu: “Minha mãe se chama Dona Fausta. Durmo ao lado dela. Quer vê-la? Lá está. Tão boa!”.
Com 14 pra 15 anos, Veridiana se apaixonou por um boticário da Santa Casa, Ernesto, com quem viria a casar e ter filhos. Enviuvou, casou de novo, formou-se professora e se aposentou como diretora de escola. Aos 68 anos, fez seu título em Porto Alegre na primeira eleição com voto feminino no país. Escreveu suas memórias em 1930 e faleceu aos 71 anos em 1935, provavelmente por complicações da diabetes.
Rogério relata que a investigação sobre a vida da bisavó surgiu da vontade de saber mais sobre suas raízes.
— Eu carrego um sobrenome que é muito comum, tem em tudo o que é canto e, com 60 e poucos anos, resolvi saber que Silva que eu sou. Comecei a falar com duas tias, irmãs do pai, e uma delas me passou esse diário, que falava que tinha sido criada na Santa Casa. Liguei pra lá e a (historiadora) Véra começou a me tratar como se eu fosse uma peça de museu — ri ele.
O empresário escreveu a história de Veridiana para a série de livros Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre – Histórias Reveladas (todos à venda em loja.santacasa. org.br), e sonha um dia fazer um documentário sobre a trajetória da bisavó.