O Largo dos Açorianos vai na contramão do histórico de outros espaços públicos de Porto Alegre. Não é comum encontrar lixo espalhado pelo chão — diversas lixeiras estão à disposição dos frequentadores no seu entorno —, a grama está aparada e os espelhos d’água têm sido poupados de atos de vandalismo.
Localizado no limite entre o Centro Histórico e a Cidade Baixa, o espaço de 19,2 mil metros quadrados — composto pela histórica Ponte de Pedra, dois espelhos d’água em níveis distintos, queda d’água, arquibancadas, iluminação cênica, bancos de concreto, passeio público, entre outros elementos — tornou-se uma opção de lazer e descanso desde sua entrega, em 22 de agosto de 2019, após quase três anos fechado para revitalização.
Antes da reforma, era mais um local com potencial que estava se deteriorando na Capital. Agora, bem-conservado, o largo se tornou um dos principais pontos de encontro da população. A atendente de caixa Fernanda Borges, 27 anos, passeava no sábado (13) com o cão Todd ao redor do largo. Ela costuma levar diariamente o pet para andar por ali.
— A graça daqui é que tem gente que senta de tanga para tomar sol e faz churrasco aos domingos — diverte-se.
A tecnóloga em segurança do trabalho Rejane Oliveira, 62, caminhava lentamente pelo Largo dos Açorianos na companhia do marido, Conceição Rodrigues da Rosa, 76, e do filho João Gabriel Oliveira da Rosa, 20.
— Moramos há 20 anos nas imediações. Para nós, faz parte caminhar por aqui — relata.
O aposentado Darcy Coelho Vieira, 91, passeava com o auxílio de uma bengala pelas trilhas do largo.
— Está tudo maravilhoso nesse espaço. Poderiam colocar banheiros químicos porque enche de gente, principalmente no verão — sugere.
Já Bruna Costa, 27, que atua como consultora em um escritório jurídico, estava tomando chimarrão na companhia dos cães Maia e Marley.
— Moro perto e gosto muito daqui. Trago os cachorros para passear. Parece o quintal da gente — enaltece, sentada no entorno do lago.
O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no RS (IAB-RS), Rafael Passos, elogia o resultado do projeto de revitalização.
— Nossa preocupação, na época, era em relação ao restauro da ponte. O espelho d’água tinha outro nível em um projeto equivocado dos anos 1970 — lembra.
Segundo o arquiteto, que destaca a iluminação, agora a situação é outra:
— Essa redução do nível do espelho d’água foi superimportante porque recuperou a imagem antiga da base da fundação de pedra e protegeu a ponte — elogia.
Cenário é convidativo, mas há sugestões de melhorias
Após sete adiamentos de entrega da revitalização, o valor previsto inicialmente para a reforma saltou de R$ 4,7 milhões para R$ 5,4 milhões. Quando foi devolvido à população, o Largo dos Açorianos ressurgiu com degraus de arquibancadas, chafarizes e com o lago um pouco rebaixado. Tudo para possibilitar que quem estiver por ali possa contemplar em detalhes a Ponte de Pedra.
De início, porém, houve desafios. Em janeiro de 2020, foram retirados mais de 250 quilos de resíduos do espelho d’água em uma ação realizada pela empresa Athena, contratada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que adotou o local em conjunto com a Caixa de Assistência dos Advogados. E pichações na parede do viaduto ocorreram em mais de uma oportunidade. O cenário, atualmente, é outro. A manutenção em dia é perceptível. Mas há sugestões de melhoria.
O auxiliar administrativo Sady Conceição, 37, aproveitava o sábado passado no local, acompanhado pela enteada Laura Gawlinski, 10.
— Viemos pouco aqui, mas costumamos visitar. Poderia ficar melhor se tivesse mais iluminação durante a noite — afirma ele.
Conceição, que começou a frequentar o espaço depois da revitalização feita pela prefeitura, sugere ainda que o Largo dos Açorianos tenha alguns elementos semelhantes aos encontrados na orla do Guaíba.
— Poderiam colocar quiosques como aqueles da Orla para as pessoas poderem pegar refrigerante — diz.
Fernanda Borges sugere a instalação de um lugar para as pessoas comprarem água e outro para os pets poderem se hidratar. Já Rejane Oliveira, 62, que caminhava lentamente pelo Largo dos Açorianos na companhia do marido Conceição Rodrigues da Rosa, 76, e do filho João Gabriel Oliveira da Rosa, 20, diz ser contrária à incorporação de outros elementos ao espaço.
— Se colocar infraestrutura perde o significado. Aqui é área para as pessoas sentarem e escutarem música — opina.
Passos, do IAB-RS, também tem receio em relação à instalação de estruturas como as da Orla:
— Espero que a gente não veja daqui a pouco mais uma tenda de comércio por ali.
Bruna Costa reconhece que há iluminação, mas pede mais segurança.
— Depois da meia-noite, tinha que ter mais segurança no largo. Podiam ser aqueles guardas municipais — conclui.
Autor de projeto comemora que local se tornou referência
Diretor de áreas verdes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), Alex Souza foi o autor do projeto de revitalização do Largo dos Açorianos. O arquiteto não esconde a satisfação por saber que o espaço se tornou referência urbana de sucesso, e avalia o que contribui para essa realidade:
Acredito que, além da concepção do projeto levar em consideração as características do local, a apropriação das pessoas é o grande ponto
ALEX SOUZA
Arquiteto autor do projeto de revitalização
— Acredito que, além da concepção do projeto levar em consideração as características do local, a apropriação pelas pessoas é o grande ponto.
O diretor menciona a participação da OAB, que adotou a área e fica responsável por sua manutenção:
— A OAB representa essa parceria no cuidado, na manutenção e no zelo com a prefeitura.
Souza salienta que não há peixes ou tartarugas nos espelhos d’água porque os tanques possuem 50 centímetros de altura, e as lâminas, apenas 40 centímetros.
— Houve ocasiões em que largamos carpas no lago para combater a proliferação de larvas, insetos e mosquitos — recorda, pontuando que foram ações temporárias.
OAB encara adoção como missão
O vice-presidente da OAB-RS, Jorge Luiz Dias Fara, expressa o sentimento da entidade por cuidar de um espaço tão representativo:
— Nosso sentimento é de pertencimento. Estamos fazendo a nossa parte na conservação do espaço público de Porto Alegre. Afinal, Porto Alegre tem 250 anos. Estamos aqui para o cumprimento dessa missão: cuidar do patrimônio histórico da cidade — reflete, sem revelar cifras, mas dizendo que o valor investido é significativo.
Nosso sentimento é de pertencimento. Estamos fazendo a nossa parte na conservação do espaço público de Porto Alegre
JORGE LUIZ DIAS FARA
Vice-presidente da OAB-RS
A conselheira da OAB Marília Longo conta que desde 2009, quando a entidade se transferiu para o prédio defronte ao largo, houve o compromisso e o desejo de adotar a área.
— Procuramos a prefeitura e dissemos que queríamos contribuir com a manutenção desde que arrumassem o largo. Estamos no segundo ano de adoção — orgulha-se.
Segundo Marília, duas pessoas da empresa contratada pela entidade passam diariamente pelo local, inclusive aos domingos, para fazer a limpeza. E, duas vezes por semana, os dejetos que ficam na superfície dos espelhos d’água são recolhidos. Além disso, semestralmente ocorre a retirada do lixo que fica depositado no fundo do lago.
A conselheira diz ainda que é feita regularmente a roçada da grama, a retirada de pichações, além da manutenção dos motores de bombeamento dos espelhos d’água.
Conheça a história do Largo dos Açorianos
O local onde se situa o Largo dos Açorianos tem importância histórica para a Capital, especialmente pela presença da Ponte de Pedra. O historiador Sérgio da Costa Franco se refere à ponte em seu livro Porto Alegre - Guia Histórico como “um expressivo testemunho da cidade antiga.”
Tudo teria começado, conforme narra o historiador, quando o então governador da Capitania Conde da Figueira mandou abrir o Caminho de Belas (atualmente Avenida Praia de Belas), entre 1818 e 1820, para ligar a cidade com a margem esquerda do Riachinho (atual Arroio Dilúvio). Uma ponte de madeira foi erguida em 1825, na gestão do Visconde de São Leopoldo. Devido a vários danos, precisou ser reformada em algumas ocasiões, como depois da enchente de 1833.
Quem decidiu substituir a travessia de madeira por uma de pedra, em 1846, foi o Conde de Caxias, que era o presidente de São Pedro do Rio Grande do Sul e ficaria conhecido como Duque de Caxias. Em um relatório de sua autoria, daquela época, ele afirma que achou mais “vantajoso” trocar a de madeira por uma de pedra após sucessivos consertos. Dois anos mais tarde, a Ponte de Pedra começou a ser utilizada pela população.
A Ponte de Pedra é uma das mais antigas construções de Porto Alegre. Como curiosidade, ela não é feita de pedra, e sim de alvenaria
JOSÉ FRANCISCO ALVES
Historiador da arte
O atual Arroio Dilúvio passava por aquela área antes de ser canalizado, o que começou a ser feito na gestão de Loureiro da Silva, entre 1939 e 1943. O primeiro trecho canalizado foi implementado desde a foz até as proximidades da Avenida João Pessoa. As obras se estenderam até o fim dos anos 1960.
Segundo o historiador Charles Monteiro, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e autor do livro Breve História de Porto Alegre, entre outras publicações sobre a Capital, barqueiros navegavam no canal oferecendo lenha e produtos agrícolas. Em relação ao Monumento aos Açorianos, que fica do outro lado da Avenida Loureiro da Silva, o docente cita o período da ditadura militar (1964-1985) no país:
— A ditadura militar recupera essa coisa portuguesa, branca, europeia e de casais. O monumento foi feito depois de aprovação do projeto do escultor Carlos Gustavo Tenius — contextualiza, detalhando que a escultura possui formas antropomórficas, formando uma grande caravela que parece navegar e conduzir os açorianos.
— É uma espécie de heroicização dos colonizadores — resume.
Por sua vez, o historiador da arte José Francisco Alves ressalta que o projeto de revitalização do espaço foi muito bem elaborado.
— O projeto de revitalização arquitetônica da própria prefeitura foi muito feliz — elogia o autor de A Escultura Pública de Porto Alegre, obra comemorativa lançada este ano e dedicada ao aniversário de 250 anos da cidade.
— Diminuir o tamanho do espelho d’água aumentou o espaço de convívio das pessoas na área de lazer — destaca.
Alves comenta uma curiosidade:
— A Ponte de Pedra é uma das mais antigas construções de Porto Alegre. Como curiosidade, ela não é feita de pedra, e sim de alvenaria — esclarece, dizendo que a estrutura é composta por tijolos. — É uma joia rara dos meados do século 19 do Rio Grande do Sul. Ela é fantástica — avalia.
O historiador, porém, lamenta outro problema que ocorre com alguma frequência no local:
— Infelizmente, é o paraíso dos pichadores. O lugar é muito visado por causa daquela estrutura branca. Inclusive os novos bancos foram pichados, mas logo a prefeitura removeu a pichação — recorda.
Além da Ponte de Pedra, que foi tombada pelo município em 1979, o especialista elogia a obra do outro lado da via:
— O Monumento aos Açorianos é um dos mais importantes da história da cidade e do Brasil.
A obra é uma homenagem à chegada, em 1752, dos 60 casais açorianos à Capital, antigo Porto dos Casais. Possui 17 metros de altura por 24 metros de comprimento e está situada na Praça dos Açorianos. Feita em aço, foi inaugurada em 26 março de 1974. Completa, assim, um conjunto que agora se destaca como ponto de convívio bastante procurado na cidade.