Pandemia, distanciamento social e redução das atividades econômicas. Uma trinca que tirou pessoas das ruas para evitar um cenário ainda pior em relação ao coronavírus, mas expôs a crise de setores que agonizavam há tempos. É o caso do transporte público.
Se a discussão sobre a viabilidade do sistema vinha sendo acentuada com a redução dos passageiros ano a ano, a pandemia fez o número usuários despencar vertiginosamente e trazer tom de urgência para a conversa. Com isso, um ponto que era discutido há tanto tempo quanto a crise do sistema acabou entrando em prática, mesmo sem um consenso sobre seu uso. São os subsídios públicos. Para manter ônibus municipais operando, prefeituras obrigaram-se a repassar aos sistemas algum tipo de compensação que equilibrasse a operação.
Desde o início da pandemia, em valores diretos ou compra de passagens para programas sociais, oito prefeituras da Região Metropolitana repassaram aos seus respectivos sistemas municipais mais de R$ 75 milhões — sem contar outras medidas como isenções ou redução de impostos, aumento de vida útil dos ônibus, revisão de gratuidades, entre outros.
A maior fatia do valor é de Porto Alegre. Por aqui, em razão de acordos judiciais entre prefeitura e empresários, o município já repassou R$ 57,6 milhões aos operadores do sistema. O valor poderia ser bem maior, mas a utilização da Carris para assumir linhas privadas diminuiu a conta — além de outras medidas, como a compra de passagens antecipadas distribuídas para pessoas de baixa renda por meio de programas sociais. Com a privatização da Carris engatilhada pela prefeitura, esse tipo de manobra não será mais possível no futuro. O subsídio público para o transporte, entretanto, ainda deve permanecer por algum tempo na pauta. Assim como diversos outros setores da vida, a demanda por transporte público não voltará aos patamares anteriores ao da pandemia, como avaliam especialistas e gestores públicos.
Demanda em queda
Conforme dados de 11 cidades da Região Metropolitana, o transporte municipal tem levado uma média de 15,7 milhões de usuários por mês — são giros de roleta, não usuários únicos. O número pode parecer alto, mas é metade do que se transportava antes da pandemia. Em Porto Alegre, por exemplo, a média de passageiros transportados por dia útil em agosto foi de 493.908 — antes da pandemia, eram 836.441, redução de 40,9%.
E dentro dessa fatia, ainda existem as gratuidades — usuários que não pagam a passagem, como os idosos. A grande desvantagem do transporte público com outros modelos de transporte é essa, enquanto aplicativos de transporte e táxis, por exemplo, tem 100% dos usuários pagantes, os ônibus ficam com as gratuidades — que é válido ressaltar, têm sua importância social.
— O poder público precisa encontrar um caminho para que os outros meios de transporte de uma cidade também sejam onerados pelas gratuidades. Hoje, só ônibus transporta isentos — pontua Cristian Isse, diretor-executivo da Expresso Assur, empresa que opera o transporte municipal de Guaíba.
Entre as prefeituras que fizeram repasses as empresas, Guaíba foi a que concedeu o menor subsídio, cerca de R$ 400 mil, conforme Cristian. E o sistema de transporte de Guaíba não é o menor da Região Metropolitana. São 24 linhas que transportam 119 mil usuários por mês. No período mais complicado da pandemia, a Expresso Assur enfrentou sérias dificuldades, com redução do quadro de trabalhadores, além de revisão intensa nos custos da operação. Cristian pontua que o cenário ainda está distante da tranquilidade, mas houve leve melhora no número de usuários durante os últimos meses. Ainda assim, ele acredita que a necessidade de subsídio público é um problema federal:
— As prefeituras têm feito as vezes de governo federal. É um problema do país, por isso é necessário que os subsídios venham de cima. Agora, com o fim dos programas de redução de jornada de trabalho e auxílios emergenciais, o cenário ficou ainda mais difícil.
A prefeitura de Guaíba não quis comentar ações relacionadas ao transporte público da cidade.
Soluções além do subsídio municipal
Se a discussão em torno do subsídio tende a se estender, algumas outras medidas vão sendo tomadas pelas cidades como forma de manter o sistema funcionando. Em Alvorada, por exemplo, não houve repasse direto de verbas, mas a prefeitura reduziu a alíquota do Imposto Sobre Serviço (ISS) de 5% para 2% — e, atualmente, o imposto não está sendo cobrado da empresa que opera na cidade. Isso manteve a tarifa congelada desde 2019. Em São Leopoldo, também não houve repasse direto, mas a prefeitura isentou o consórcio que opera na cidade do repasse feito à administração anualmente até 2022. Além disso, a vida útil dos ônibus foi de oito para 10 anos e algumas gratuidades foram revistas, limitando os benefícios a quem tem renda de 1,5 salário mínimo — exceto os idosos. Conforme a administração, isso evitou um aumento ainda maior no preço da passagem.
Necessidade de repasse federal
A prefeitura de São Leopoldo considerou, em nota, "que o subsídio não é a solução", por isso, trabalhou com "a aquisição antecipada de passagens para programas sociais da prefeitura e segue buscando junto ao governo federal apoio financeiro ao setor do transporte público para amenizar o impacto das isenções e gratuidades e demais desafios do setor". E não é só São Leopoldo que está neste caminho. Durante a última semana, o prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PSD), esteve em Brasília com a comitiva de prefeitos que se reuniu com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. O pleito dos gestores municipais? Pedir um repasse de R$ 5 bilhões do governo federal para socorrer empresas de transporte coletivo.
— O tema do transporte é urgente, diz respeito à sociedade como um todo e nosso esforço aqui em Brasília é sensibilizar o governo de que esta é a prioridade. Apesar da mobilização dos gestores, a crise não está dissipada. A redução de passageiros, o aumento no combustível, a energia, todos esses custos estão inviabilizando a operação — disse Jairo, durante a visita ao Distrito Federal.
O ministro Ciro Nogueira se comprometeu a levar a pauta para Paulo Guedes, ministro da Economia, e viabilizar a proposta apresentada pela Frente Nacional dos Prefeitos e reforçada pela comitiva. Mas o caminho é longo, e a busca por auxílio federal não é novidade. O lobby de empresários do ramo para tentar reduzir impostos sobre o sistema se estende há anos, sem avanços significativos.
Alívio no bolso dos passageiros
Uma bandeira defendida por quem é favorável ao subsídio público para o transporte é a redução da passagem. Hoje, só a tarifa cobre a operação do sistema — o que não é viável sem elevar cada vez mais o preço do serviço. Em duas cidades da Região Metropolitana, a injeção de subsídios baixou o valor da passagem e reduziu o gasto dos passageiros. Primeiro foi em Esteio, onde o programa de repasses da prefeitura deve injetar mais R$ 500 mil nas seis empresas que operam na cidade até o final deste mês. Desde o início de julho, a passagem na cidade foi de R$ 4,20 para R$ 3,95.
— Após um 2020 com o sistema apresentando prejuízo superior a R$ 3 milhões e com queda de 60% no número de usuários pagantes, seria impossível falar em diminuição de valor sem medidas fortes de gestão. Conseguiremos manter uma tarifa atrativa para os usuários sem precarizar o serviço — diz o prefeito de Esteio, Leonardo Pascoal.
Em Viamão, a prefeitura aprovou um repasse de R$ 5 milhões para as duas empresas que operam na cidade — divididas entre bacia urbana e rural. Com isso, o prefeito Valdir Bonatto publicou um decreto e desde 1º de setembro, as linhas urbanas, que têm uma tarifa de R$ 4,80, passaram a cobrar do usuário R$ 4,50. As linhas rurais também tiveram descontos, mas neste caso, os preços variam entre os itinerários.
— Buscamos o subsídio como forma de não onerar o usuário do transporte, tendo em vista que são aqueles que mais precisam, aqueles que não têm outros meios de transporte. A redução do valor da passagem, além de beneficiar o usuário direto, mexe com a economia local, injetando recursos e movimentando a cadeia produtiva — afirma Bonatto.
Os caminhos adotados na Capital
Em Porto Alegre, uma bandeira do prefeito Sebastião Melo é que nenhum centavo saia mais do caixa da prefeitura para as empresas do transporte municipal. Por isso, uma série de projetos encaminhados à Câmara Municipal deixou as últimas semanas agitadas. As medidas são nenhuma novidade — o ex-prefeito Nelson Marchezan também tentou colocar a mobilidade urbana em pauta, mas sua conhecida falta de diálogo com o Legislativo emperrou os projetos.
Agora, Melo conseguiu, aos trancos e barrancos, aprovar a extinção dos cobradores, que Marchezan também tentou, mas não conseguiu. A prefeitura projeta uma economia de R$ 0,74 sobre a passagem ao final dos quatro anos de implementação completa do programa de extinção dos cobradores. Na Região Metropolitana, cidades como Alvorada, Cachoeirinha, Esteio, Novo Hamburgo, Gravataí, e Sapucaia do Sul também não contam com esses profissionais nos coletivos urbanos.
O pacote do Executivo ainda prevê a privatização da Carris — empresa pública que integra o sistema da Capital —, redução de isenções e restrições na passagem escolar, concedendo a meia-passagem somente aos estudantes de baixa renda. Converter o vale-transporte em uma taxa paga pela empresas da cidade também está em discussão. Os trabalhadores teriam passe-livre nos coletivos.
Melo também integra o grupo de prefeitos que pede ajuda estadual para o transporte. A ideia é converter parte dos recursos do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para um fundo redirecionado ao sistema. Na quinta-feira passada, prefeitos que compõem o Consórcio dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) levaram o tema para discussão da Assembleia Legislativa.
— Tem dois caminhos, ou se retiram os impostos da cadeia dos insumos e o ICMS, ou você pode criar um fundo com recursos do IPVA ou taxas do Detran, por exemplo. Somente a tarifa não dá — disse Melo.
Uma medida do tipo precisa ser abraçada pelo governo estadual — cobrança recorrente do prefeito de Porto Alegre —, já que parlamentares não podem legislar sobre tributos.
Integração entre sistemas municipais e metropolitanos
O prefeito de Cachoeirinha, Miki Breier, também esteve na reunião e citou outro ponto da discussão: a integração entre os sistemas metropolitano e municipal. O tema, rechaçado por empresários por muito tempo, torna-se mais frequente nas conversas entre os gestores municipais. A sobreposição de linhas metropolitanas sobre as municipais de Porto Alegre poderia ser resolvida com estes ajustes no sistema.
— A circulação de pessoas na Região Metropolitana não observa limites entre as nossas cidades. Precisamos de recursos para subsidiar e viabilizar a manutenção do transporte público local e intermunicipal de nossa região — pediu Miki.
Entre as 12 cidades da Região Metropolitana consultadas pela reportagem, Eldorado do Sul é a única cidade que não tem transporte municipal. Por lá, todo o transporte é metropolitano. Os ônibus circulam na cidade, mas sempre com destino final em outro município — como Guaíba ou Porto Alegre. Tirando a Capital e Canoas, os sistemas municipais da Região Metropolitana têm feito menos de 500 mil giros de roleta por mês.
Em alguns casos, onde o transporte intermunicipal é muito mais usado que o municipal, transformar tudo em um só modelo pode ser um caminho no pós-pandemia. Certo é que a frase repetida por especialistas, políticos e empresários do setor desde o início da pandemia se torna cada vez mais verdade: o transporte público nunca voltará a ser o que era antes do coronavírus.