Logo que acessa o pátio, a ambulância é estacionada em um box de lava-rápido, dando início a um ritual para os socorristas: o avental é descartado e o macacão recebe jatos de desinfetantes. Luvas também encontram o lixo como destino. Maçanetas e áreas de contato no veículo do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) são igualmente higienizadas.
Assim que o processo é finalizado — cerca de 20 minutos de trabalho constante das profissionais de limpeza —, a ambulância parte para um novo socorro. Desviando cuidadosamente das demais viaturas, que ocupam toda a área de circulação, o motorista e seus colegas ouvem um grito:
— Boa sorte! que seja um parto ou algum caso não covid.
O pedido encontra explicação no desgaste vivido pelos trabalhadores do Samu: atendimentos em sequência, pouco tempo para descanso e turnos com demanda recorde.
Profissionais da regulação — área responsável, entre outras funções, por encontrar um leito nos hospitais —, gritariam o mesmo, se não estivessem em um setor isolado do entra e sai dos trabalhadores de campo. Superlotadas, as instituições de saúde têm dificuldade em abrir vagas, e o paciente permanece horas sob resguardo da equipe médica do Samu. Uma angústia compartilhada por socorristas e familiares.
— Já ficamos duas, três horas com o paciente a espera de leito. Até mesmo com a pessoa entubada dentro da ambulância — relembra o condutor Leonardo Rosa, 40 anos, escorado no veículo de socorro.
O drama atinge diretamente a equipe: enquanto presta atendimento, um novo chamado entra na lista de espera, e só será aceito após a liberação do caso em andamento.
— Nunca tinha visto isso — conclui o motorista.
Já ficamos duas, três horas com o paciente a espera de leito. Até mesmo com a pessoa entubada dentro da ambulância.
Na última sexta-feira (19), GZH acompanhou uma manhã de trabalho na sede do Samu de Porto Alegre, na Avenida Ipiranga, zona leste da Capital. Na tela que acompanha a situação em tempo real, 10 dos 17 chamados apontavam características de covid-19: o termo dispneia (dificuldade em respirar, sensação de aperto torácico, sufocamento entre outros sintomas) se repetia como uma amarga lista de sinônimos.
O 18º caso pisca no monitor. É um homem de 35 anos. O sintoma não é diferente dos demais. O nome dos pacientes, no momento de exposição dos dados, foi preservado pela coordenação do Samu.
No pátio, a chegada de outra ambulância agita mais uma vez as funcionárias da limpeza. Ao lado de outras três profissionais paramentadas, Patrícia Escouto, 40 anos, fica a postos com um pulverizador em punho.
— No começo da pandemia, a gente limpava umas 20 vezes as ambulâncias. Agora, é quase o dobro. A gente nota o emocional deles (socorristas), afetados, bastante abalados — descreve Patrícia, líder do setor de higienização.
Após a descontaminação, Nelson Oscar Foernges, 41 anos, tem um raro momento de descanso. O técnico em enfermagem atendeu a um paciente com piora no quadro, transferido da Unidade Básica de Saúde (UBS) Mário Quintana para o Hospital Conceição. Mesmo vacinado com as duas doses da CoronaVac — assim como todos os trabalhadores do Samu —, ele se diz apreensivo, principalmente com a exposição de seus familiares.
— Estou imune, mas minha esposa e dois filhos, como ficam? Posso transmitir. Por isso, é tênis na rua, macacão lavado separado do resto das roupas, tudo com muito cuidado — explica.
Recorde
O aumento nos casos de insuficiência respiratória, observado na lista de solicitações do sistema, é confirmado pelos números: antes da pandemia, a média diária de casos que geram deslocamento de ambulâncias até o local do chamado era de 130. Atualmente, o índice chegou a ultrapassar 190 assistências em um único turno de 24 horas, um recorde no ano.
A alta demanda, que provoca demora entre o embarque e o acolhimento pelo hospital, acarretou na perda do leito reservado à Lorena Silveira Barcellos, 74 anos. No dia 15 de março, ela foi removida do Pronto Atendimento (PA) Cruzeiro do Sul, no bairro Santa Tereza. Tinha como destino o Hospital Beneficência Portuguesa, no Centro Histórico. Ao chegar à instituição, contudo, a vaga já havia sido preenchida. No outro dia, a idosa foi finalmente hospitalizada.
— Se eu pudesse escolher, pediria mais leitos nos hospitais do que ambulâncias na minha equipe — afirma de bate-pronto o coordenador do Samu na Capital, Marcos Mottin.
O mais difícil é a espera, a demora. A gente queria diminuir esse tempo de resposta, mas não consegue.
Apesar do acréscimo no tempo de atendimento, não foram registradas mortes dentro das ambulâncias à espera de um leito, segundo o coordenador.
A enfermeira Dinorá Cenci, 49 anos, diz nunca ter vivido pior momento nas duas décadas em que atua no serviço. Mesmo sem ser haver culpados na demora atual, pede desculpas a quem precisa de ajuda.
— O mais difícil é a espera, a demora. A gente queria diminuir esse tempo de resposta, mas não consegue — admite.
Isolamento e desgaste
Na sede da corporação, há uma área isolada. O quinto andar resguarda o serviço de regulação, setor “blindado” na tentativa de diminuir o stress gerado pela urgência de quem opera o telefone 192, justifica o coordenador. O acesso ao local é restrito e limitado aos servidores.
— Em segundos, a telefonista já remete ao médico regulador e ele classifica o paciente. Aí começa a luta para achar um leito. Antes da pandemia, se fazia muita coisa só por telefone, agora a maioria precisa de ambulância — complementa Mottin.
Rastreadas por GPS, as ambulâncias são guiadas pelos rádio operadores. Como um quebra-cabeça, os profissionais cruzam a localização do veículo e a origem do chamado, acionando as equipes mais próximas. Além da sede na Avenida Ipiranga, há bases com viaturas nas zonas norte e sul de Porto Alegre.
Mottin detalha a média histórica do serviço de regulação até 2020: entre 30% e 40% das ligações geravam o envio da ambulância ao local. Após a chegada do coronavírus, o índice é de 60%. O desgaste se espalha para quem vai à rua. E histórias se repetem.
— A gente atua dentro das casas das pessoas. E é muito difícil confortar as famílias. Teve um caso em que a esposa morreu, e o marido, que estava há 60 anos com ela, pediu para ir junto. Eu chorei com ele, não tem como banalizar a morte — relembra a médica Fabiane Tiskievicz, 48 anos.
Fabiane deixa de lado o mito do distanciamento entre médico e paciente. Compara o que viu com o que tem em casa: seus pais festejaram, isolados, 50 anos de casamento. Ela acompanhou a celebração por fotos.
— Quando vamos lá na casa deles, eu fico na rua, em uma cadeira de praia, olhando para os dois na janela — lamenta, com um olhar esgotado.
A gente atua dentro das casas das pessoas. E é muito difícil confortar as famílias.
Reforço
O número de equipes, na pandemia, passou em Porto Alegre, de 16 para 17 veículos. Em abril, há expectativa de contratação de mais uma equipe na cidade. Entre servidores e terceirizados, 350 pessoas mantêm o Samu de Porto Alegre — em torno de 85% circulam nas ambulâncias.
Homenagem
No domingo (21), os profissionais se reuniram em frente à sede, uma homenagem a Gilson Silva Rocha, 50 anos. De mãos dadas, permaneceram lado a lado, enquanto acontecia um sirenaço. O condutor morreu vítima da covid-19.