"É as guria!". Esse é o lema que norteia o dia a dia na SDV Reciclando, cooperativa de reciclagem situada no pátio de uma residência da Vila dos Herdeiros, em Porto Alegre, formada, majoritariamente, por mulheres chefes de família. Estampada nos uniformes das catadoras do bairro Agronomia, a frase não é o único traço do coletivo que remete à força feminina – pois a história da criação da cooperativa mistura-se intimamente com o processo de empoderamento das mulheres que a compõem.
Fundada em 2018, a origem da iniciativa está no momento em que suas idealizadoras, as irmãs Stefani Guedes, 27 anos, e Paula Guedes, 31 anos, romperam com os ciclos de violência doméstica nos quais estavam inseridas. Longe dos ex-agressores, fizeram de um tudo para garantir o sustento dos quatro pequenos que as acompanhavam – um, filho de Stefani, e três, de Paula. Passando pela venda de lanches até a abertura de um salão de beleza, foi no trabalho como catadoras que a dupla se encontrou – e descobriu a possibilidade de, a partir de suas experiências pessoais, ajudar mulheres que enfrentavam situações semelhantes a desvencilharem-se deste contexto violento, por meio do trabalho com a reciclagem.
– Muitas gurias que iam no salão passavam por violência, e começaram a nos ver meio que como referência. Perguntavam: 'Bah, gurias, como vocês conseguiram?', e isso mexia com a gente. Um dia, fizemos uma reunião e falamos que queríamos abrir mão do salão para começar uma economia solidária, um negócio onde todas seriam iguais, andariam de mãos dadas, e se alguém tivesse que passar fome, a gente passaria junto. Na hora as gurias já abriram um sorrisão, tinha que ver. Foi aí que nasceu a reciclagem – relembra Stefani, pontuando que, muitas vezes, o medo de não conseguirem sustentar os filhos sozinhas é o que mantém as mulheres em relações violentas.
Suporte e acolhimento
Além da subsistência, garantida pelo trabalho com a coleta dos recicláveis, as integrantes da cooperativa encontram, ali, um espaço de suporte e acolhimento – possibilitado pela convivência com mulheres cujas trajetórias de vida são semelhantes.
– Levamos todas as gurias pelo caminho de procurar advogado gratuito e buscar seus direitos. Quando é dia de audiência de alguma, paramos o trabalho e vamos todas acompanhar. A gente faz uma rebelião. Na real, somos muito mais que um grupo, somos uma família – afirma Stefani.
Para Paula, ver a vida das companheiras mudando é sinônimo de gratidão. Segundo a catadora, a sensação é de que todas as experiências que marcam sua trajetória, ainda que muitas delas ruins, serviram para um propósito maior:
– Para mostrar que é possível chutar o balde, meter o louco e decidir que tu não quer mais aquilo ali. Que lutando, caindo e se levantando, tu consegue.
Atualmente, 10 mulheres "chutam o balde" por meio do trabalho na cooperativa – apesar de, destas, cinco estarem afastadas por configurarem grupo de risco para a covid-19. A equipe conta, ainda, com um integrante homem: Andriel Ferreira, 21 anos, a "cota" de membros do gênero masculino no coletivo.
– Ele estava precisando, e a gente não conseguiu dizer não – relata Stefani, garantindo que, apesar de o terem abraçado, a prioridade "é as guria".
Gurias voltaram a estudar
Além da garantia da renda e o apoio mútuo, outro ponto é característico da cooperativa: a preocupação com a qualificação das catadoras. Após o ingresso no coletivo, a maioria das participantes acaba por retomar os estudos, devido ao incentivo que encontram ali – onde é feita, também, uma "caixinha" entre o grupo para que, todo ano, ao menos uma das catadoras tire a Carteira Nacional de Habilitação.
– Consegui comprar uma casa e voltei a estudar. Me formei no Fundamental, e, agora, estou terminando o Ensino Médio. Ano que vem, já quero tirar a carteira – comemora a catadora Anne Karolina Ilha, 20 anos, que, há dois, integra a cooperativa.
A retomada dos estudos foi praticada também pelas idealizadoras, as irmãs Stefani e Paula. Alunas do EJA no Colégio de Aplicação da UFRGS, as duas sonham cursar o Ensino Superior – mas garantem que, mesmo com um diploma nas mãos, não deixarão de atuar na causa da cooperativa.
– Quero me formar para bater o martelo e ajudar nas lutas que também passei. Tenho três filhos, mas nenhum dos pais paga pensão para eles – sonha Paula, que deseja formar-se advogada. Stefani, que agora sonha em cursar Contabilidade, brinca, aos risos, com a escolha da irmã:
– Quer ser advogada para botar todos os homens na cadeia.
Ajuda para integrar mais mulheres
Sem um espaço adequado, todo o trabalho de separação e armazenamento dos materiais coletados é feito no pátio das irmãs Stefani e Paula. A estrutura improvisada, apesar de garantir que a cooperativa exista, impõe limitações aos resultados desejados: por falta de espaço, a equipe só consegue armazenar um número específico de materiais, de modo que a renda gerada, para cada membro, não costuma passar de R$ 400 mensais; por conta disso, ainda, fica impossibilitada a integração de mais catadoras ao projeto.
A solução encontrada está na compra de um terreno para a cooperativa, onde seria construído um galpão – ampliando a capacidade de trabalho e permitindo o crescimento da equipe. O impasse, porém, é o recurso financeiro.
– Nessa pandemia, nem sei quantas mulheres vieram pedir para se juntar a nós, mas não tem como. Então, nossa maior luta no momento é essa: comprar um terreno, montar um galpão e empregar, pelo menos, mais 30 gurias. Lá dentro, fazer uma biblioteca para os filhos, uma horta comunitária – projeta Stefani.
A fim de que o projeto saia do plano das ideias, o grupo criou uma vaquinha virtual, com o objetivo de arrecadar R$ 200 mil. Mas, até o momento, a quantia levantada gira em torno dos R$ 7 mil – muito abaixo do necessário. Para continuar sonhando, as "gurias da reciclagem", como são conhecidas na Vila dos Herdeiros, contam com a solidariedade de quem reconhece a importância da iniciativa – por meio de doações, que podem ser feitas em vaka.me/1140803.
Produção: Camila Bengo