A empreendedora Bia Kern, 61 anos, superou as dúvidas para tirar do papel uma ideia de negócio. A empresária Soraia Schutel, 39, inspirou-se no próprio estudo desenvolvido durante o doutorado e investiu numa proposta diferenciada. Já a advogada Mariana Ferreira dos Santos, 32, uniu-se a pessoas com o propósito de compartilhar conhecimento. Em comum, o trio têm o objetivo de desenvolver atividades voltadas ao empoderamento feminino no Rio Grande do Sul.
Na linha de frente de ações sociais e de empresas dedicadas a produzir mulheres líderes em diferentes áreas, Bia, Soraia e Mariana nem precisariam justificar engajamento na causa. Os números comprovam: no mesmo Estado onde mulheres representam 51,3% da população, elas ainda têm rendimento salarial 26% menor do que os homens e são em menor número nas posições de chefia, segundo estudo divulgado pelo Departamento de Economia e Estatística, da Secretaria Estadual de Planejamento.
No que diz respeito à divisão sexual do trabalho, os dados mostram que, em 2019, as gaúchas eram maioria entre os desocupados (56,5%). Em relação ao rendimento total no trabalho principal, tiveram rendimento médio de R$ 2.166, e os gaúchos, de R$ 2.940. Em 2017, o rendimento das mulheres alcançava 76% do rendimento dos homens, caindo um ponto percentual a cada ano nos dois anos seguintes. Quando se trata do rendimento por hora, os homens do Estado ganharam, em 2019, em média, R$ 16,50, e a as mulheres, R$ 13,90.
— Ainda temos pontos a serem trabalhados, como as diferenças salariais entre homens e mulheres, que se aprofundaram nos últimos anos no Rio Grande do Sul. Em conversa com alguns colegas sobre o aumento da diferença salarial entre homens e mulheres em 2019 no Estado, chegamos a duas hipóteses: uma seria o crescimento do setor automotivo, que emprega majoritariamente homens. A segunda diz respeito à informalidade, que cresceu bastante no último ano e que pode ter impactado nessa diferença — avalia Daiane Menezes, analista do Departamento de Economia e Estatística, que coordenou o estudo Igualdade de gênero e empoderamento das mulheres e meninas no Rio Grande do Sul.
Idealizadora de uma ONG que ajuda a qualificar mulheres profissionalmente e que completa 14 anos neste 8 de março, Bia resume a importância de unir esforços para equilibrar a gangorra entre os sexos no mercado de trabalho:
— Percebo o mercado de trabalho para as mulheres evoluindo, mas ainda há muito a ser feito, porque são anos de falta de oportunidade. O empreendedorismo está sendo um importante espaço para disseminar na sociedade a vontade, a capacidade e a força que tem a mulher.
Bia Kern: "Empoderá-las é o nosso dever"
Foi em um 8 de março que, com um projeto embaixo do braço, Maria Beatriz Kern entrou em uma loja, em Canoas, disposta a tirar do papel a ideia de qualificar mulheres para a construção civil. De conhecimento sobre o tema, tinha as práticas repassadas pela mãe, Diva, aprendidas nas reformas da casa da família. Aliás, a matriarca, falecida há um mês, havia sido responsável por ensinar aos sete filhos que não deveria existir distinções de função entre homens e mulheres:
— Sempre ouvi da minha mãe que a mulher precisa ser batalhadora e independente, sem deixar de ser parceira do homem.
Com a lábia de quem era experiente em organizar eventos, Bia, como é mais conhecida, convenceu uma fabricante de tintas a bancar as aulas e, como consequência, promover os próprios produtos. O curso da experiência-piloto, ofertado por um engenheiro químico da fábrica a 25 mulheres, foi o de pintura predial. Nascia ali, em 2006, a Ong Mulher em Construção.
Apesar do sucesso momentâneo, Bia levou mais dois anos para montar uma segunda turma. Faltavam parcerias. Sem apoio, tomou uma decisão que seria a virada na vida: vendeu a própria casa para investir na iniciativa. E deu certo.
Ministrado por engenheiros da Ulbra, o curso de pedreira azulejista formou 219 das 300 mulheres que iniciaram as aulas. A maior parte das 81 desistências foi de alunas que conseguiram emprego na área durante o curso. Bia nunca mais parou.
Desde então, o Mulher em Construção já formou quase 6 mil profissionais no Rio Grande do Sul. E teve ainda uma turma em São Paulo. A metodologia da ONG é única no Estado: firma parcerias com empresas e órgãos públicos, apostando na inserção feminina no setor da construção civil.
— A mulher é reconhecida pelos potenciais de organização e produção. Não formamos só por formar. Empoderá-las é o nosso dever. E como vou empoderar alguém sem dinheiro? Primeiro, com formação. Depois, ela começa fazendo em casa e ensinando uma amiga e os vizinhos. Por fim, chega ao mercado de trabalho — explica.
Hoje, aos 61 anos, Bia garante que faria tudo novamente, apesar de ressaltar as dificuldades de implantar ideias em terreno gaúcho, devido ao que considera um comportamento mais conservador e, por vezes, machista. Um dos problemas ainda enfrentado num canteiro de obras, por exemplo, é a resistência em construir um vestiário e um banheiro feminino no local, cita a empreendedora. Responsável por liderar uma equipe formada por cinco funcionários, 50 voluntários e 12 instrutoras (contratadas de acordo com as aulas), Bia garante ainda sentir dor quando surge a frase "por ser mulher, eu achei que vocês cobrassem menos".
— Ainda há muito para mudar. A mulher precisa se ver como ser que pode fazer tudo. Precisa estar mais comprometida com ela mesma e acreditar em si — afirma.
Além do ensinamento de uma prática específica da construção civil, os treinamentos do Mulher em Construção podem incluir leitura e interpretação de planta baixa, cooperativismo, empreendedorismo e desenvolvimento de pensamento crítico com relação à autoestima, empoderamento, sustentabilidade, relações interpessoais no local de trabalho e sexualidade. E o monitoramento das alunas é feito até dois anos depois da realização do curso.
Recém encerrando um curso de drywall — reparos em gesso cartonado —, Bia tem como meta para este ano formar as primeiras 20 multiplicadoras que repassarão a metodologia da ONG para outras mulheres. Também almeja desenvolver novos cursos em São Paulo, onde a procura das mulheres, destaca, é maior.
— O que me dá mais alegria é ver homens e mulheres trabalhando juntos. Mas, olhando para trás, vejo que a gente ainda tem um caminho muito grande pela frente. Precisamos estimular as mulheres a fazerem as suas próprias vidas, sem dependerem de ninguém — finaliza.
Conselhos da Bia
- Persistir naquilo que acredita, mesmo com o mundo dizendo "não".
- Respeitar a si própria, sempre.
- Entender e reconhecer que o mundo também é "nosso".
Soraia Schutel: "Mulheres podem decidir por suas vidas"
Foi durante as pesquisas de doutorado, ao estudar um novo modelo de educação para gestores no Brasil e no Canadá, que a empresária Soraia Schutel, 39 anos, natural de Florianópolis e moradora de Porto Alegre, identificou que o desenvolvimento sustentável da humanidade requer da liderança feminina. E foi esta constatação que a fez identificar-se ainda mais com a causa das mulheres.
Para não deixar a tese apenas nas prateleiras virtuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como costuma dizer, criou a Sonata Leadership Academy, uma escola para lideranças que promete ser uma alternativa ao sistema tradicional de educação.
Metade das pessoas que procuram a instituição são do sexo feminino: executivas, profissionais liberais, empresárias, pessoas em transição de carreira. Como Soraia destaca, mulheres com consciência do seu papel, em busca de uma rede de apoio real para fortalecer coragem, autoestima e novos negócios.
— As mulheres que nos procuram sentem uma inquietude. Mesmo que tenham atingido já um sucesso de carreira ou financeiro, sabem que podem fazer algo a mais. É quase um chamado metafísico, vinculado à busca de autorrealização, como identificado pelo psicólogo humanista Abraham Maslow — explica.
Por isso, a escola desenvolveu dois programas específicos para mulheres. Um deles tem três módulos imersivos em São Paulo, que aprofundam aspectos integrais da líder mulher do nosso tempo: equilíbrio entre vida pessoal e profissional, maternidade e carreira, autoestima, empreendedorismo e estilos de liderança mais femininos. Tudo é feito por meio do autoconhecimento, de visitas a empresas, cases com mulheres que atingiram sucesso integral em suas vidas, integrando experiências artísticas e culturais.
O outro programa é uma imersão exclusiva para mulheres na França, onde entendem por que os franceses tiveram tantas mentes extraordinárias ao longo dos séculos, como Joana D'Arc, Marie Curie, Piaf, Chanel, Veuve Cliquot.
— A ideia é educá-las para entenderem quem são e, então, poderem ser melhores gestoras. Digamos que é uma escola inspirada no modelo da Paideia grega, onde o objetivo é o "conhece-te a ti mesmo", para então sermos gestores melhores e desenvolver empresas mais humanizadas — ressalta.
Para Soraia, ainda há muito caminho a ser trilhado pela mulher quando falamos de independência. Mas ele é sem volta.
— Só precisamos do tempo para a transformação, assim como de qualquer mudança cultural. O advento das leis do século passado permitiu acesso e liberdade de escolha, como ter direito a herança, votar, trabalhar e estudar, trazendo uma mudança como nunca vista. Mulheres podem decidir por suas vidas. Não precisam mais ser produto de troca em negociações matrimoniais familiares. Podem escolher qual profissão ter. A mudança está sobretudo no papel da mulher, que deixa de ser objeto e passa a ser pessoa. Claro que isso desestabiliza as estruturas de poder milenares, mas é um caminho sem volta — completa.
Destemida, a empreendedora vê nas escolhas de carreira da avó materna, professora e única filha a estudar, e da mãe, médica, o início da própria trajetória profissional. Por vontade própria, aos 13 anos, a catarinense começou a estudar francês. Três anos depois, passou a morar na Bélgica para fazer um intercâmbio e acabou se tornando poliglota e cidadã do mundo. No retorno ao Brasil, ingressou na faculdade de Administração na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), dando início à carreira no mundo da gestão. Apaixonada por compreender o ser humano, ao mesmo tempo, passou a estudar as áreas da psicologia e da filosofia.
Depois de ser babá, professora de inglês e recepcionista de eventos, Soraia fundou a primeira empresa aos 22 anos. Vendia passagens aéreas e organizava viagens internacionais. Na sequência, trabalhou em consultoria, passou por organizações internacionais, ONGs e empresas dos setores de educação executiva. Aos 28 anos, tornou-se professora universitária, e foi onde se descobriu educadora. Ao longo dos anos, passou por experiências educacionais em diferentes partes do mundo (Estados Unidos, Canadá, França, Itália, Bélgica, Rússia e China).
— Na minha trajetória, sempre escolhi as oportunidades em que pudesse aprender mais e ter bons mentores. Nunca o critério de escolha de trabalho foi apenas o dinheiro, mas sim o conhecimento, pois esse é o princípio da sustentabilidade humana — finaliza.
Conselhos da Soraia
- Nunca traia a si mesma: ser honesta consigo mesma é um desafio diário. Seguir os próprios sonhos e ambições existenciais, ouvir a própria intuição. Nunca permitir que alguém te desvalorize.
- Tenha autonomia psicológica e financeira: liberdade é a maior riqueza de um ser humano.
- Cuide dos relacionamentos: o sucesso de uma pessoa tem suas raízes na vida privada. A qualidade das relações impacta diretamente os resultados que irei colher.
Mariana Ferreira dos Santos: "Vivemos um cenário de evolução"
É no propósito da própria vida que a advogada Mariana Ferreira dos Santos, 32 anos, de Porto Alegre, se inspira para ser uma das lideranças há um ano do Núcleo Porto Alegre do Grupo Mulheres do Brasil. Empenha-se em buscar soluções que auxiliem na transformação social em prol da redução das desigualdades, atuando junto a entidades e empresas focadas em inclusão de gênero e raça, desenvolvimento econômico e sustentabilidade.
Criado há dois anos na Capital, o grupo promove encontros mensais com contribuição espontânea, onde já foram discutidos temas como fundamentos da liderança feminina, e três diferentes mentorias, cujo valor dependerá do tipo de suporte desejado. Na mentoria empreendedora, são oito encontros com uma especialista. Na afromentoring, são quatro encontros sobre desenvolvimento pessoal e outros quatro para desenvolvimento focal. E há, ainda, o startup mentoring, onde as mulheres participam de encontros coletivos com as mentoras.
Pelo menos 1,5 mil mulheres foram impactadas pelas ações desenvolvidas pelo Núcleo Porto Alegre. A renda é revertida para o desenvolvimento das atividades do próprio Núcleo. Em novembro do ano passado, por exemplo, Mariana e a equipe conseguiram reunir 650 mulheres no Theatro São Pedro para o evento "Empreendedorismo Inspiração", onde as participantes compartilharam aprendizados e ouviram as vivências de empresárias à frente de grandes negócios no Brasil.
— Por gerações, nós mulheres, batalhamos para ocuparmos espaços no mercado de trabalho. Segundo o Pnud2019/ONU (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, órgão da Organização das Nações Unidas), as mulheres possuem mais anos de escolaridade do que os homens, entretanto, ainda possuem uma renda menor. Acredito que vivemos um cenário de evolução, temos consumidores mais conscientes que exigem mais equidade dentro das empresas públicas e privadas — ressalta.
Criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, o Mulheres do Brasil, presidido pela empresária Luiza Helena Trajano, tem mais 30,5 mil participantes e é organizado em comitês e núcleos espalhados pelo Brasil (17 Estados) e pelo mundo (12 países). Um dos valores basilares da ONG é promover a inclusão da mulher e buscar a diversidade.
— Conseguimos alcançar diferentes perfis etários, raciais, sociais, de orientação de sexual, de pessoas atípicas dentre outras tantas especificidades e recortes das mulheres do Brasil — relata Mariana.
Antes de engajar-se à ONG, a qual foi apresentada por uma amiga empreendedora, Mariana já participava de projetos sociais vinculados às causas feminista e racial. Filha de pais militantes, a mãe, Maria Cristina dos Santos, 62 anos, atua nos movimentos negro e feminista, o pai, Evandoir dos Santos, 62 , faz parte do movimento negro, a advogada também está envolvida em outras frentes que tentam reduzir as desigualdades no Brasil.
Mariana também é diretora da Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro), participou de projeto da ONG Maria Mulher e colaborou com a construção do projeto OAB Vai à Comunidade, criado pela Comissão Mulher Advogada (CMA).
— Há o despertar de uma consciência global das mulheres que vem combatendo as desigualdades no ambiente corporativo e promovendo políticas públicas e privadas de inclusão e manutenção de mulheres no mercado de trabalho — comemora.
Apesar das múltiplas tarefas que desenvolve ao longo da semana, a advogada garante encontrar agenda para todas elas. E o motivo ela tem na ponta da língua:
— Sempre encontro força e tempo para me doar porque penso no futuro e quero deixar um legado para as próximas gerações.
Conselhos da Mariana:
- Acredite em você, invista na sua capacitação.
- Planeje e organize sua vida financeira e o tempo que você deverá dedicar a sua empresa.
- Inove e não tenha medo de errar. O erro faz parte do desenvolvimento. Teste ideias novas, ouça os feedbacks dos seus clientes e qualifique a sua entrega.
As mulheres no RS
- São 51,3% da população.
- Representam 46,2% da força de trabalho.
- São 56,5% dos desempregado, percentual mais elevado quando comparado à média nacional, que fechou 2019 em 53,1%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
- Em 2019, as gaúchas ganharam 74% do rendimento (médio real efetivo no trabalho principal) dos homens.
- A média semanal das mulheres de horas dedicadas às atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos foi de 20,4 horas. Enquanto que a dos homens foi de 11,6 horas.
- No RS, há seis secretárias de Estado e 19 secretários de Estado, isto é, apenas 24% das secretarias são lideradas por mulheres.
- A evolução da participação da mulher em posição de gerente ou diretora registrou queda entre 2015 e 2018. No primeiro ano da avaliação, o percentual era de 34,8%, chegou ao patamar máximo da série histórica em 2017 (39%) e voltou a cair em 2018, quando chegou a 33,8% das posições.
Fonte: Igualdade de gênero e empoderamento das mulheres e meninas no Rio Grande do Sul, compilado de dados feito pelo Departamento de Economia e Estatística, da Secretaria Estadual de Planejamento, Orçamento e Gestão