Rosely Sayão, referência nacional quando as discussões envolvem temas relacionados a crianças, adolescentes, família e educação, passou por Porto Alegre no início de dezembro para falar da importância dos valores em uma palestra do ciclo Escola de Pais 018, no Instituto Ling.
Para a paulistana, autora de Educação Sem Blá-blá-blá: Como Preparar seus Filhos e Alunos para o Convívio Familiar, a Escola e a Vida, entre outros livros, os adultos estão se esquecendo do que é mais importante. As crianças vêm introjetando mais facilmente o conceito do consumismo do que o da honestidade, avalia Rosely. Ela frisa também a necessidade da construção da autonomia.
– A felicidade ninguém dá para ninguém, cada um de nós vai tentar conquistar. Algumas vezes, vai conseguir, outras vezes, não vai, e assim será pelo resto da vida. Não sei por que achamos que temos que fazer nossos filhos felizes, nossos alunos felizes. Não. Eles é que tem têm que procurar saber como fazer isso, como serem felizes. Desde pequenos – diz a psicóloga nesta entrevista.
Está mais difícil transmitir bons valores?
Não sei se mais difícil, mas mais confuso, sim. A sociedade transmite uma série de valores que são bem fortes, fortalecidos pelo grupo todo. A criança aprende desde cedo o valor do consumo, por exemplo. Uma criança muito pequena pede para comprar isso ou aquilo. Na verdade, ela nem sabe se quer mesmo, mas sabe que o consumo é importante. Como esses valores são transmitidos, os pais não se lembram de que há outros valores que podem ser ensinados. É por isso que é confuso, mas não é difícil, não. Na educação, a gente consegue transmitir valores familiares, sociais ou até opostos aos valores que a sociedade prega.
Que valores a senhora acha que estão sendo esquecidos hoje em dia?
O valor da honestidade. Com tantas notícias a respeito de corrupção, as crianças e os jovens ficam bem confusos. Mesmo com as notícias denunciando a corrupção, eles percebem que não há grandes consequências. Outros valores importantes são cooperação, colaboração, solidariedade. Vivemos em uma sociedade muito competitiva. Os pais acham que precisam que o filho seja competitivo para sobreviver em um mundo competitivo. Mas todos os caminhos apontam que, tanto nas corporações quanto nas escolas, o trabalho colaborativo é mais eficiente.
Pais enchem a agenda dos filhos com aulas, no contraturno da escola, já pensando nessa competitividade.
Exato. E estão também baseados em uma suposição de que o futuro será igual ao presente. Os pais acham que precisam preparar os filhos para o mercado de trabalho do futuro, mas nós não temos a menor ideia de como será esse mercado.
Somos a prova, agora, de que não sabíamos que o mundo ficaria assim, né?
Sim. Então, muito melhor é investir mesmo na capacidade da criança de se conhecer, conhecer o outro, aprender a conviver. Isso será muito mais útil em qualquer tipo de mercado de trabalho.
Quais são as características mais marcantes das famílias contemporâneas?
A primeira coisa que me salta aos olhos é a proteção excessiva dos filhos. Quando digo excessiva é porque os pais acabam protegendo os filhos daquilo que não devem ser protegidos. Eles colocam os filhos para estudar e só exigem que se saiam bem na escola. Aliás, exigem isso em demasia, até. E aí o valor de colaborar com as tarefas domésticas, que não se trata apenas de realizar um trabalho, mas de participar do grupo familiar, que é uma pequena comunidade, isso fica esquecido. Os filhos são superprotegidos, os pais fazem para eles coisas que eles já poderiam fazer por conta própria. É uma característica que percebo em todas as classes sociais.
Os filhos são superprotegidos, os pais fazem para eles coisas que eles já poderiam fazer por conta própria. depois não vai mais dar tempo de ensinar porque eles não aprenderam em tempo hábil. É uma característica que percebo em todas as classes sociais.
ROSELY SAYÃO
Psicóloga
O que as crianças já poderiam fazer e não fazem?
A partir dos sete, oito anos, elas já podem cuidar da própria roupa: colocar no lugar a roupa suja que será lavada, guardar as roupas que são lavadas e passadas, organizar o banheiro após o banho. A partir dos 13, 14 anos, quando os adolescentes frequentam uma escola próxima de casa, já podem aprender a ir sozinhos, a usar o transporte público. Os pais ficam assustados, mas é esse mundo que os filhos irão enfrentar quando saírem da adolescência, e depois não vai mais dar tempo de ensinar porque eles não aprenderam em tempo hábil.
Os filhos acabam sendo privados de um “treinamento”.
Eles são privados de autonomia.
Nem tudo de ruim em um adulto é culpa da educação que recebeu dos pais. A senhora concorda ou discorda?
Concordo. As crianças não são uma caixa vazia em que a gente coloca tudo o que quer. Aos poucos, a criança tem os seus próprios traços, elabora as coisas de uma maneira diferente do que a gente pretendia. E, logo mais, a partir da adolescência, elas têm a livre escolha. Então, muitas vezes, podem realizar coisas que não são compatíveis, adequadas para a sociedade em que vivem, só que isso não é responsabilidade dos pais, que ensinaram o que deveriam, mas o filho fez outra escolha. Por isso que não entendo essa história de culpa.
Mas a culpa vem, né? “Não foi isso que eu ensinei.”
Acontece, mas, como seres humanos, deveríamos sempre estar prevendo essas surpresas. Não podemos ter expectativa de que as coisas acontecerão do jeito que a gente encaminha.
As crianças não são uma caixa vazia em que a gente coloca tudo o que quer. Aos poucos, a criança tem os seus próprios traços, elabora as coisas de uma maneira diferente do que a gente pretendia. E, logo mais, a partir da adolescência, elas têm a livre escolha. Então, muitas vezes, podem realizar coisas que não são compatíveis, adequadas para a sociedade em que vivem, só que isso não é responsabilidade dos pais, que ensinaram o que deveriam, mas o filho fez outra escolha. Por isso que não entendo essa história de culpa.
ROSELY SAYÃO
Psicóloga
Os pais também são cobrados quando alguém comenta algo do tipo “esse daí não teve bons pais”.
É, mas quando a gente diz isso – e é comum ouvir – é sempre em relação ao outro. Esquecemos de olhar para dentro da própria família e de lembrar que os filhos fazem coisas que a gente não quer que eles façam, mas que eles fazem mesmo assim. Mesmo tendo uma boa mãe e um bom pai.
A luta dos pais contra o vício dos filhos nos celulares é uma guerra perdida ou ainda dá para ganhá-la?
Olha, os pais não lutam, eles inserem esse vício. São eles que plantam isso, eles que dão celular para os filhos, eles que permitem que o filho fique muito tempo no aparelho, e às vezes desde uma idade muito precoce. Depois que os pais plantaram isso, aí eles ficam um tanto quanto constrangidos ao verem que foi exagerado.
“Fulaninho não sai do telefone”, pais e mães reclamam.
É muito mais difícil desaprender do que aprender. O melhor seria ensinar a usar com parcimônia o celular e a internet. Como as crianças acessam precocemente, isso, para elas, é uma brincadeira. E elas só vão deixar a brincadeira quando entrarem na maturidade se a gente não fizer nada.
Retomando um aspecto sobre o mercado de trabalho: as pessoas vêm sendo demandadas fora do período em que estão na empresa. O turno de trabalho se tornou algo mais fluido, os funcionários são mais facilmente contatados. A criança que vê o pai ou a mãe sempre ao celular, mesmo que seja por motivo profissional, está sendo negativamente influenciada?
É uma forte influência. Foi feita uma pesquisa, anos atrás, com crianças de diversos países, do Brasil inclusive, sobre o que crianças de oito anos até adolescentes de 13 achavam do uso do celular pelos pais. O índice global foi que mais de 60% dessas crianças acham que os pais se importam mais com o próprio celular do que com elas, seus filhos. E, no Brasil, esse índice é assustador: mais de 80%. Ou seja, parece que escolhemos ficar grudados no celular. Não adianta fazermos de conta que queremos lutar contra isso em relação aos filhos. Eles aprenderam conosco e continuam aprendendo conosco.
Quando um dos valores que a gente ensina aos filhos é o respeito ao diferente, e o diferente é aquele que pensa de um jeito diferente de mim, que vive de um jeito diferente do que eu vivo e conheço, isso já começa a colaborar para a diminuição de preconceitos e estereótipos.
ROSELY SAYÃO
Psicóloga
A culpa é dos pais.
Não é culpa, é responsabilidade, talvez uma falta de reflexão. Acho que tem muito mais a ver com isso.
O que a imersão no universo virtual, que começa tão precocemente, está provocando na formação das crianças e dos adolescentes? Me parece que algo muito profundo está ocorrendo quanto a comportamento e pensamento.
Não tive essa percepção ainda. Mesmo os jovens, que já nasceram nesse mundo da tecnologia, eles nasceram nesse universo vendo o uso da tecnologia por adultos que não haviam nascido nesse mundo. Então eles não trazem ainda essa herança. Talvez as crianças de hoje possam ser absolutamente diferentes por conta disso. Daí os adultos já terão evoluído, já haverá uma geração na frente deles usando a tecnologia de uma maneira diferente... São as crianças de hoje que poderão nos mostrar as consequências, que podem ser boas ou podem ser ruins, mas não necessariamente negativas.
Temos falado muito de racismo, empoderamento feminino, direitos LGBT+. Vejo que os pais se preocupam com esses temas, em Como educar crianças para serem pessoas respeitosas e não preconceituosas. Como ir além do exemplo que os próprios pais dão em situações do dia a dia?
Falamos muito mais disso, mas tenho a impressão de que não praticamos tanto quanto falamos. E é compreensível. Para uma mudança interna, que resulte em uma ação diferente, leva um tempo para mudança de pensamento, de conceito. Uma única geração não consegue fazer grandes mudanças. É preciso de mais gerações para uma diferença significativa. Mas, quando um dos valores que a gente ensina aos filhos é o respeito ao diferente, e o diferente é aquele que pensa de um jeito diferente de mim, que vive de um jeito diferente do que eu vivo e conheço, isso já começa a colaborar para a diminuição de preconceitos e estereótipos. Talvez o que mais adiante sejam conversas, a partir de, por exemplo, uma notícia que sai a respeito disso ou um conceito que é difundido por grupos da sociedade. É importante conversar a esse respeito para que o filho vá adquirindo, pelo menos em casa, valores como esses. A partir do pensamento crítico, analisando a realidade como ela se apresenta.
No conceito do filho idealizado tem muito de mim ou daquilo que eu não consegui ser e quero que ele seja. Vale eu mesmo. Ouço muito os pais dizerem: “Quero dar para os meus filhos aquilo que eu não tive”. Se a gente pensar bem, isso é impossível. A herança que deixamos para os filhos é aquilo que tivemos. Devemos dar aos filhos o que tivemos para que eles melhorem e assumam suas próprias vidas.
ROSELY SAYÃO
Psicóloga
Chegará o dia em que a orientação sexual dos filhos deixará de ser um drama para os pais?
Não vai deixar de ser um drama porque é um preconceito social muito arraigado. Com essa discussão de gênero e essa expressão que inventaram, “ideologia de gênero”, há muita confusão. Parece que está todo mundo com medo de que alguém consiga convencer crianças e adolescentes a serem diferentes daquilo que é o destino deles. Acho que hoje a dificuldade é maior porque parece que os preconceitos estão bem aflorados, mas não é só essa parte da sexualidade que é um drama para os pais. A escolha da profissão, do parceiro de vida, tudo é um drama porque os filhos são diferentes do que os pais gostariam que fossem porque eles são eles.
Sempre são diferentes?
Sempre. Só se os filhos fossem a nossa cópia para serem como queríamos. Os pais querem que o filho seja aquilo que eles esperam que o filho seja.
O filho idealizado.
Isso. Mas no conceito do filho idealizado tem muito de mim ou daquilo que eu não consegui ser e quero que ele seja. De novo: vale eu mesmo. Ouço muito os pais dizerem: “Quero dar para os meus filhos aquilo que eu não tive”. Se a gente pensar bem, isso é impossível. A herança que deixamos para os filhos é aquilo que tivemos. Devemos dar aos filhos o que tivemos para que eles melhorem e assumam suas próprias vidas.
Essa época de intolerância que vivemos terá impacto no futuro das crianças?
Já tem impacto no presente. Já percebemos maior dificuldade de convivência. Os eventos que eles veem eles aplicam às vidas deles. A intolerância ao diferente, para eles, é a intolerância ao colega de quem eles não gostam e acham que não serve para eles. Isso leva ao desrespeito. Qual será o impacto no futuro? Pode ser que eles nos surpreendam e usem isso como contraexemplo. Sempre é possível de acontecer. Por isso que os pais não são responsáveis por tudo o que os filhos fazem porque os filhos podem olhar para os pais e dizer: “Não quero ser como eles”. E pode ser também que eles embarquem nessas intolerâncias que temos vivido diariamente.
Muito já se falou sobre a transferência de responsabilidade dos pais para a escola, e vice-versa, no que se refere a educar uma criança.
Outro dia li que o ministro da Educação (Abraham Weintraub) falou que a escola não educa, ela ensina. Há uma grande confusão com esses dois conceitos porque quem educa ensina e quem ensina educa. Esses termos não são separáveis, essa oposição é uma oposição enganosa. Veja: ele supõe que ensinar é transmitir conteúdos escolares e que educar é fazer a formação moral. Vamos pensar nesse educar como formação ética, moral... Não é possível fazer isso, para a família, sem ensinar algumas coisas básicas para a criança, como conviver, se comunicar. Também não é possível para a escola fazer a transmissão de conteúdos sem junto ensinar a postura de respeito à vida, aos valores humanos. Por isso que essa oposição é equivocada. Família e escola educam e ensinam, cada uma com um papel diferente. Cabe à família educar a pessoa e cabe à escola educar o cidadão. E ainda há um pouco de confusão por parte de todos os segmentos da sociedade, porque nós estamos em um período de transição social, de mudança de mundo ainda em curso. Isso retirou de nós todos os papéis já conhecidos, e estamos construindo novos papéis. Nessa construção, fica a dúvida: isso cabe a mim ou à escola? A escola tem essas dúvidas, os pais têm essas dúvidas. Seriam necessários diálogos para se chegar a consensos, que não precisam ser nacionais, podem ser de cada escola e da comunidade que a frequenta. Mas o mais difícil, nesse momento, são esses diálogos acontecerem.
Em uma conversa que tivemos anos atrás, a senhora falou algo muito marcante: “Educar pressupõe sempre desagradar à criança”. A entrevista foi superacessada, viralizou nas redes. “Aí, a gente acha que a criança está infeliz, não desagrada e não educa”, a senhora acrescentou. É difícil colocar isso na prática, não é? Os pais parecem continuar nesse mesmo caminho?
Não sei de onde tiramos a ideia de que nossos filhos precisam ser felizes. A felicidade ninguém dá para ninguém. A felicidade cada um de nós vai tentar conquistar. Algumas vezes, vai conseguir, outras vezes, não vai, e assim será pelo resto da vida. Não sei por que achamos que temos que fazer nossos filhos felizes, nossos alunos felizes. Não, eles é que tem têm que procurar saber como fazer isso, como serem felizes. Desde pequenos. Eles vão aprendendo aos poucos. É um processo que vai durar até o último dia de vida. Podemos chegar à velhice e falar: “Nossa, eu estava procurando errado. É muito mais simples do que eu estava achando”. É um aprendizado enquanto a vida durar. Mas imaginar que dá para educar sem desagradar é deixar a criança abandonada. Como a criança não vai ficar descontente quando falamos “para de jogar videogame e vai tomar banho”? É claro que ela vai ficar descontente, e com razão. Jogar videogame, para ela, é muito mais interessante do que tomar banho, mas é porque ela não sabe da importância da higiene diária para a manutenção da saúde, coisa que nós sabemos. Então não dá, não dá mesmo, para educar sem passar por esses percalços. Tenho um colega que diz uma coisa que sempre me marcou: o melhor período da vida para sofrer é na infância e na adolescência, porque temos o apoio e o acolhimento da família, da escola. Na vida adulta, não temos o acolhimento de ninguém, a não ser que tenhamos alguns bons amigos.
Aí tende a ser um desafio mais solitário.
Exatamente. E aí eu não aprendi a ter recursos pessoais para me defender disso, para superar isso, para não me estatelar com esse sofrimento e apenas sofrer o inevitável e seguir em frente.