Fui estacionar meu carro na Tobias da Silva, no Moinhos de Vento. Lá é difícil localizar uma vaga.
Costumo dar três voltas em imenso balão até a Associação Leopoldina Juvenil para encontrar uma redentora brecha. Ponho na conta trinta minutos circulando à toa.
Mas, naquele afortunado dia, um flanelinha, ostentando sua camiseta colorada como bandeira, acenou para mim:
— Vem!
E era bem na frente do restaurante em que eu queria almoçar.
Fiquei até sem jeito com a sorte, por acertar a loteria do cotidiano.
Tirei da carteira uma nota azul de dois reais e agradeci ao guardador o fato de ter me reservado aquela vaga.
O guardador pirou comigo. Flexionava os braços e as pernas em sinal de reverência. Só faltou estender um tapete vermelho com a sua camiseta. Ou me carregar no colo para atravessar a rua.
Ao receber a gorjeta, abriu um riso do tamanho da ponte móvel do Guaíba. Pulava eufórico, dizia “obrigado” sem parar, falava de modo desenfreado, afirmava que rezaria pela minha família:
— Que deus dê em dobro!
Não entendi bulhufas daquela cena. Achei a sua reação um tanto exagerada. Será que ele estava sob efeitos alucinógenos de manhã cedo?
Porém, houve uma mutação do comportamento, o rapaz parecia lúcido e controlado na abordagem inicial.
Deveria ser um homem grato, que se mantinha feliz com pouco.
De noite, compareci a uma festa de amigos num bar na Cidade Baixa. Na hora de encerrar a comanda, procurei a nota azul de cem reais na carteira. Vasculhei os bolsinhos e nada. Cadê? Só tinha uma nota celeste de dois reais.
Eu me confundira com o flanelinha. O que explicava o seu escândalo de bênção, o seu entusiasmo infinito.
Troquei a tartaruga-de-pente pelo peixe garoupa. Na correria da vida, meu raciocínio acabou lento como uma tartaruga. Não conferi direito os papéis.
A gafe se tornou lendária nas provocações dos almoços dominicais em casa.
Isso aconteceu há quinze anos.
Cem reais era muito dinheiro na época. Hoje corresponde a aproximadamente um terço do seu valor e do seu poder de compra. Cem reais é o equivalente a R$ 33, 59, corrigido pelo salário mínimo ou pelo IGP-M desde fevereiro de 2010.
Com cem reais, você sai apenas com duas sacolas do supermercado, não faz mais um rancho. Você compra apenas dois dos seus medicamentos na farmácia, não completa a receita.
Em 2010, levava dois quilos de picanha. Atualmente, mal dá para um quilo.
Em 2010, com a mesma quantia, era possível pagar uma diária no Hilton, melhor hotel de Porto Alegre. Atualmente, nem se consegue custear uma noite num motelzinho de estrada.
O irônico é que o Banco Central começou a estampar animais à beira da extinção nas notas, para valorizar a sobrevivência de nossa fauna, e as próprias notas estão quase extintas.
É comum desejar pagar em dinheiro e o balconista pedir Pix ou cartão, já que não tem troco.
Nem lembramos mais os bichinhos das cédulas. O beija-flor-de-peito-azul, a garça-branca-grande, a arara-vermelha, o mico-leão-dourado, a onça-pintada e o lobo-guará fugiram de nossos bolsos.