Filha de um neurologista e de uma psiquiatra, a inglesa Jessica Wade, 30 anos, cresceu em uma família que sempre incentivou a curiosidade e valorizou as inovações tecnológicas. Uma resposta nunca está completa, aprendeu ela, e sempre há algo a mais que você pode estudar e descobrir.
Pós-graduada em Física, a jovem cientista do Blackett Laboratory do Imperial College de Londres esteve em Porto Alegre, no final de setembro, para falar sobre uma de suas principais bandeiras: a necessidade urgente de diversidade na ciência, com mais espaço e destaque para mulheres e negros.
Na véspera de sua conferência no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ela concedeu a entrevista a seguir.
Muitas mulheres ainda não têm acesso à educação. Oportunidades para homens e mulheres são diferentes. Qual a sua opinião a respeito disso?
Em algumas partes do mundo, vemos mulheres lutando para conseguir pelo menos o acesso à educação. Espero que, com movimentos progressistas liderados por meninas como Malala (ativista paquistanesa que milita pela educação, vencedora do Nobel da Paz) e Greta Thunberg (ativista sueca que defende o ambiente), as pessoas comecem a ver o impacto que as mulheres podem causar. Vemos mudanças no Oriente Médio, mulheres tendo acesso à educação e oportunidades como a de praticar esportes. Estereótipos impactam a maneira como as meninas se veem e as oportunidades que podem ter. A sociedade diz que as meninas podem conquistar outras coisas que não aquelas que os meninos conquistam, dita sobre o que elas devem se interessar. Professores e pais ainda aconselham as crianças orientados por gênero. Essa é a parte mais difícil a superar. Ou seja, uma questão é a igualdade de acesso à educação, e a outra é, em sociedades em que meninos e meninas têm chances iguais de acesso, mudar esses estereótipos que persistem há décadas. Prefiro dizer décadas em vez de séculos porque não acredito que venha acontecendo há centenas de anos. Acho que isso faz parte desse comércio de massa em que estamos comprando lixo todo o tempo. Essa é parte da razão pela qual tudo ficou tão baseado em gênero recentemente.
O que deveria ser feito de maneira diferente em relação às crianças?
Os pais devem manter a cabeça aberta quanto às profissões. Eles têm um pouco de responsabilidade de descobrir o que os pesquisadores estão fazendo em ciência e tecnologia, qual é o grande desafio da ciência, da economia e da sociedade e pensar de que forma as crianças podem contribuir para isso, independentemente de serem meninos ou meninas. Se os pais fizessem uma imersão no que a ciência está produzindo, seria benéfico para todos. Eles podem encontrar livros que falam de ciência. Talvez não sejam pesquisas que estejam sendo conduzidas aqui em Porto Alegre e no Brasil, mas na Suécia ou na Austrália. Descubram essas histórias, contem-nas para os seus filhos. Livros são incríveis, e a internet também é ótima para isso.
E quanto aos brinquedos?
Devemos pensar sobre o que compramos e damos às crianças e ter certeza de que oferecemos oportunidades iguais a meninos e meninas. Há brinquedos geniais que incentivam a pensar de forma lógica. Cresci – e acredito que isso não foi algo proposital de parte dos meus pais, apenas penso que há 25 anos não tínhamos essa dualidade azul/rosa dos departamentos de brinquedos de hoje – brincando com dois jogos de computadores em minha escola. Tínhamos que pensar logicamente para permitir que os personagens sobrevivessem. E hoje temos esses brinquedos orientados por gênero. Os meninos ganham jogos ridículos em que dão tiros – e não sabemos qual o impacto psicológico que representa eles “manejarem” um rifle semiautomático e fazerem coisas horríveis – e as meninas ganham bonecas. O primeiro passo é que estamos sabendo e falando disso. O próximo é comprarmos brinquedos diferentes. Falo sobre isso o tempo todo com minha mãe. Livros são para todos. Livros sobre cientistas. E não apenas sobre homens fantásticos ou mulheres fantásticas – mas, sim, livros sobre pessoas fantásticas que estão mudando o mundo. Compre Lego. Quando você conversar com um engenheiro, ele vai dizer que estudou engenharia porque brincou com Lego na infância. Mas até o Lego está sendo submetido a essa separação de gênero! Há Lego para meninos e para meninas. As crianças devem ganhar presentes interessantes, excitantes, inspiradores. E nem todos os meninos e meninas são iguais. Alguns meninos, como foi o caso do meu irmão, gostam de brincar com bonecas. E algumas meninas gostam de brincar com carrinhos. Temos que reconhecer e respeitar isso.
A imagem estereotipada da ciência, a maneira como pais e professores falam de ciência e os conselhos a respeito de carreira que damos aos jovens, tudo isso faz com que as meninas sintam que elas não pertencem a esse universo. Aos meninos, dizem que eles podem fazer praticamente tudo. Dizem que eles são melhores em ciências e matemática, ainda que não sejam. E não dizemos isso às meninas. É um desserviço. Qualquer pessoa deveria ter a oportunidade de estudar o que desejasse.
JESSICA WADE
Cientista inglesa
A ciência não é uma área onde existe muita diversidade, especialmente no seu ramo, o da física. Você diz que as jovens enfrentam preconceito, o que as desestimula de seguirem nessas carreiras.
As meninas, durante a infância, têm lido determinados livros, brincado com determinados brinquedos e têm ouvido que elas pensam diferentemente dos meninos – há um jeito de meninos pensarem e um jeito de meninas pensarem. E que meninos são mais propensos a assuntos mais técnicos, como matemática, ciência da computação e física, enquanto as meninas são encaminhadas para as áreas de cuidado, de contato com pessoas, de ensino – são áreas muito valorosas, mas não exatamente as que pagam melhor, e não quer dizer que o verdadeiro talento delas esteja ali. Em geral, as meninas superam o desempenho dos meninos em tudo até os 15 anos, há testes mostrando isso. Elas se sentem muito confiantes durante a puberdade e até depois, quando começam a se questionar a respeito do que podem e o que não podem fazer. Mas a imagem estereotipada da ciência, a maneira como os pais e os professores falam de ciência e os conselhos a respeito de carreira que damos aos jovens, tudo isso faz com que as meninas sintam que elas não pertencem a esse universo. Aos meninos, dizem que eles podem fazer praticamente tudo. Dizem muito que eles são melhores em ciências e matemática, ainda que, na prática, não sejam. E não dizemos isso às meninas. Quando elas têm de fazer suas escolhas, não há essa mesma rede de apoio dizendo que elas podem fazer qualquer coisa que queiram. É um grande desserviço. Qualquer pessoa deveria ter a oportunidade de estudar o que desejasse. A perpetuação da ideia de que físicos e matemáticos são gênios e que vivem isolados também faz com que as meninas sintam que não pertencem a esse mundo e que não podem obter sucesso nele.
Você experimentou esse tipo de preconceito? Sentiu-se estereotipada?
Frequentei uma escola apenas para meninas. Muitas das mulheres que são físicas frequentaram escolas só para meninas, onde essas práticas são muito menos frequentes. Também tive muita sorte no Ensino Médio. Tive uma ótima professora de Física, eu tinha muita admiração e respeito por ela, mas foi só no doutorado que me dei conta de que ela sabia bem mais do que o currículo da disciplina. Existiu essa pressão da sociedade dizendo que essa carreira não era para mim, mas minha família me apoiou muito. Você ouve que pode estudar o que quiser na universidade, mas por que escolheria um curso com 90% de meninos brancos de origem privilegiada? É muito difícil. Tive muita sorte e me motivei a fazer algo pelos outros. A física tem uma crise massiva de diversidade, entre homem e mulher, mas também, severamente, em relação a pessoas negras.
Devemos pensar sobre o que damos às crianças e ter certeza de que oferecemos oportunidades iguais a meninos e meninas. Há brinquedos geniais que incentivam a pensar de forma lógica. E hoje temos esses brinquedos orientados por gênero. Os meninos ganham jogos ridículos em que dão tiros e as meninas ganham bonecas. O primeiro passo é que estamos falando disso. O próximo é comprarmos brinquedos diferentes.
JESSICA WADE
Cientista inglesa
Quando e como você decidiu começar a promover o aumento da diversidade na ciência?
Quando entrei na universidade e me dei conta do quão não diversificada ela era. Havia uma sub-representação de mulheres e uma super-representação de brancos. No doutorado, fui a escolas para falar com jovens sobre a importância de eles pensarem em estudar física, de se pensar na carreira, das pessoas incríveis por trás da figura do cientista. Fiquei frustrada porque não é muita coisa que conseguimos mudar com rapidez. Você pode ir até uma escola e falar com uma classe de 50 alunos, mas você não saberá quem vai estudar física, quantos vão estudar engenharia. Então comecei a trabalhar em algo mais envolvente, que é como ajudar os professores a melhorar o ensino da disciplina. Também me dei conta de que não estávamos festejando o suficiente as cientistas mulheres e os cientistas negros que já trabalham na atualidade. Há muita gente ao redor do mundo que não é reconhecida. Precisamos não apenas mudar a maneira como pensamos a educação; precisamos mudar a maneira como promovemos as carreiras científicas. E realmente precisamos nos aprimorar como comunidade científica, nos protegendo e nos celebrando.
Adorei saber que você é uma escritora serial de perfis de mulheres cientistas na Wikipédia. Foram 270 em apenas um ano, é isso?
Continuo escrevendo. Já são 750! Gosto do desafio. Comecei, casualmente, em janeiro de 2018, depois me coloquei o objetivo de escrever um por semana, mas daí pensei no impacto que teria... São 1,5 milhão de páginas na Wikipédia em inglês. Demoraria muito para que eu conseguisse ajudar as cientistas mulheres a serem notadas (risos). Passei a escrever um por dia. Às vezes, redijo mais de um. A Wikipédia é uma ferramenta fenomenal de acesso à informação. É um dos sites mais populares do mundo. Você pode compartilhar informação com todas as pessoas do planeta sobre o mundo que o rodeia. Acho importante que brasileiros que conheçam temas importantes para o Brasil, especialmente agora, neste momento de grande inquietação política, comuniquem melhor as informações, de graça, em uma plataforma na qual as pessoas confiam.
Li que o livro Inferior, de Angela Saini, mudou sua vida, quando você se deu conta de que a maior parte da história foi escrita por homens, sobre homens, para homens.
Angela observa o tipo de dados e experimentos científicos que, historicamente, vêm sendo realizados para tentar provar que homens e mulheres são diferentes. Mulheres teriam diferentes interesses, hobbies, capacidades. Ela analisa os cientistas que fizeram isso, como fizeram esses experimentos, e identificou quando havia preconceito. Na verdade, homens e mulheres são incrivelmente parecidos. A variação entre os cérebros dos homens ou entre os hobbies e interesses dos homens é muito maior do que a variação verificada entre homem e mulher. E estamos em um mundo que tenta separar homem e mulher em duas coisas muito, muito diferentes. O livro me ensinou isso e muito mais, como sobre as mulheres que, ao longo da história, disseram que isso não estava certo. Como poderíamos ser consideradas intelectualmente inferiores se não tínhamos acesso a nada a que os homens tinham, como educação, propriedades? Nós, mulheres, temos poder hoje. Podemos nos levantar e mudar as coisas. As pessoas têm uma voz que nunca tiveram antes, provavelmente por causa das redes sociais e pelo quão conectados estamos. Sim, esse livro mudou tudo.
É mais difícil para uma pesquisadora conseguir financiamento para uma pesquisa pelo simples fato de ser mulher?
Sim, muito mais difícil. O grande preconceito que existe nessa área já foi mostrado em estudos. Há sistemas que avaliam propostas baseadas no currículo e há sistemas que avaliam a proposta científica. Em sistemas que avaliam unicamente a proposta científica, mulheres e homens têm uma performance semelhante – na verdade, as mulheres, em geral, saem-se melhor do que eles. Quando a análise é baseada no currículo, as mulheres não vão tão bem. Pode ser preconceito por causa do nome feminino, pode ser porque o currículo é de inferior qualidade, já que elas precisam de tempo para a família e os filhos. Isso impacta muito na probabilidade de uma mulher obter sucesso com sua inscrição. Então há o preconceito das pessoas que estão tomando a decisão sobre o financiamento, há o preconceito durante todo o processo, que julga os candidatos com base no número de artigos publicados, com base no feedback que eles recebem dos alunos. E sabemos que a revisão feita pelos pares é preconceituosa também se você não é um homem branco – é preconceituosa contra a população negra e contra a população do Hemisfério Sul. O feedback dos alunos, se você é professor, envolve muito preconceito dependendo da sua nacionalidade ou se você é homem ou mulher. E tudo isso influencia quando você vai receber uma promoção ou uma oportunidade. Além de não beneficiar as mulheres, isso é um grande desserviço à ciência, impactando quem recebe fundos e qualquer pesquisa que se faça. As pesquisas conduzidas por mulheres deixam de receber investimento.
Você acredita que temos a chance, todos os dias, de desafiar os estereótipos. De que maneira?
Contamos histórias quando estamos ministrando uma aula ou escrevendo um livro. As vozes que você escolhe para isso são superimportantes. Ao falar de pessoas que contribuíram para uma descoberta, pesquise sobre as mulheres e os negros que batalharam para isso. Em aula, se falar de história, fale de mulheres que se destacaram, mesmo em áreas superinacessíveis, como a astrofísica. As mulheres não podiam nem se graduar em muitas universidades até o século passado, mas, mesmo assim, sempre houve mulheres construindo telescópios que permitiram observações incríveis. Tente integrar esses personagens a sua narrativa. E todos podem começar com a Wikipédia, o que me deixaria muito feliz. Escreva sobre ícones. Há tantas maneiras! Algumas pessoas usam o Instagram, outras, o Twitter, algumas são jornalistas, outras usam o rádio. Todos têm oportunidade de dar voz às pessoas, e não acho que utilizemos essas plataformas o suficiente. Outra ação importante é indicar as pessoas para prêmios, seja na comunidade, seja na universidade, seja no jornalismo. Se houver alguém, especialmente uma mulher ou um negro, que realizou algo importante e não está recebendo reconhecimento por isso, coloque-o em evidência.
Quanto tempo você acha que vai levar até que alcancemos um ambiente com real diversidade e igualdade na ciência e na sociedade em geral?
Tem um estudo muito interessante, realizado por Luke Holman, sobre presença de gênero em diferentes disciplinas científicas. Ele diz estamos no caminho certo nas ciências biológicas e que estaríamos a 16 anos de atingir a igualdade. Mas, na física, vai levar 260 anos se mantivermos o ritmo atual. É muito tempo para esperar. Acredito que esteja havendo um pouco mais de investimento em empresas fundadas por mulheres, mas precisamos é de uma reforma estrutural na educação. Precisamos pensar na maneira como ensinamos as crianças na escola. No momento, nada disso está mudando e não vem mudando há décadas e décadas. Também precisamos que o universo acadêmico seja mais receptivo, independentemente de origem social ou etnia. Assim, a academia se tornará um lugar mais sustentável e diversificado.
Vamos fazer de conta que estamos 50 anos à frente. O que você gostaria que estivesse escrito em seu perfil na Wikipédia?
Em 50 anos, gostaria de ser professora e de continuar trabalhando com os materiais com que trabalho hoje. E gostaria que todo o esforço em prol de mulheres e da população negra na ciência resultasse em oportunidades. As pessoas continuariam lendo sobre isso e a ciência seria, de fato, mais diversificada. Faremos uma ciência melhor quando tivermos que falar menos sobre a necessidade de diversidade e quanto mais praticarmos isso. Isso é o que realmente importa. Então, gostaria que o meu perfil na Wikipédia dissesse: “Ela fez tudo isso, tudo ficou ótimo e ela não precisou fazer mais nada. Todos ficaram felizes e foram para o laboratório”. Espero que seja algo assim.