Em uma cena clímax do filme História de um Casamento, estrelado por Adam Driver e Scarlett Johansson, a ressentida discussão entre o casal Nicole e Charlie, marcada por berros que pintam as faces de um vermelho-escarlate, sinaliza aos espectadores que uma fronteira foi cruzada – o casamento acabou. O mal-estar e o pranto após a briga retratam, ainda, uma questão atual em nossa sociedade: o grito como demonstração de poder não é mais aceito.
Especialistas consultados por GaúchaZH sublinham que a raiva não saiu de moda, mas a forma como ela se expressa mudou. Se antes o grito podia ser visto como sinal de poder e autoridade, hoje é encarado como amostra de ignorância, selvageria e frágil masculinidade. Para as camadas mais educadas da população e sobretudo entre os mais novos, é uma violenta agressão que irrompe de forma descontrolada em momentos de fúria – para, logo em seguida, impor uma pesada culpa.
A mudança corre ao lado de outro fenômeno: a violência cada vez mais aparece de forma silenciosa. Com o crescimento da cultura da internet, o bullying online maltrata sem ruídos. Enquanto isso, as barulhentas armas da guerra aos poucos dão lugar aos silenciosos e mortíferos drones.
Um dos fatores para a transformação cultural é a maior escolarização do brasileiro, reflete Maria Ângela Bulhões, psicóloga do ambulatório Melanie Klein, do Hospital Psiquiátrico São Pedro, e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Ela argumenta que, em uma sociedade mais educada, a palavra faz a mediação do conflito. O grito aparece, então, justamente quando a palavra não funciona:
— Uma sociedade mais educada dará menos soco e gritará menos. A violência ocorre quando não consegue ser canalizada de forma aceita pela cultura. Em um estádio de futebol, o grito não tem problema. É agressivo? É. Mas está sob controle, porque ninguém está ali para machucar o adversário. Há inclusive uma nova forma de educar a criança sem que seja pela força física, e sim pela conversa.
Sintoma dessa nova forma de educar é aprovação da Lei Menino Bernardo, sancionada em 2014. Ela proíbe castigos físicos a crianças.
“A violência ainda é estratégia de sobrevivência”, diz psiquiatra
Especialistas destacam que o grito esporádico não necessariamente é sinal de uma personalidade agressiva – atire a primeira pedra quem nunca perdeu o controle e gritou com os filhos ou com o parceiro amoroso. O importante é estar consciente dos malefícios: um relacionamento a dois com gritos no dia a dia demonstra sinais de violência (alguém tenta dominar o outro). Já filhos criados à base do grito podem se tornar adultos com baixa autoestima, sem a capacidade de lidar com os próprios sentimentos: afinal, o berro repreende e impede a compreensão sobre o que se está sentindo.
— Muitas vezes, a pessoa que grita está frustrada e tenta controlar a situação. Mas o grito é ineficaz: pode ter, como retorno, outro grito ainda mais alto ou um enfrentamento. Gritar é um comportamento que pode surgir, mas é muito importante estar atento a esse comportamento para conversar e availar os efeitos disso para o outro e para si mesmo. Quando a pessoa grita, ela pode inclusive se sentir fisicamente desconfortável — destaca Luísa Habigzang, professora de Psicologia na PUCRS e especialista em violência.
De fato, quem escuta o grito tem uma reação física. Pesquisa feita na Universidade de Nova York e publicada em 2015 mostrou que o escutar ativa a amígdala, área do cérebro relacionada ao medo. Enquanto isso, músicas ou conversas despertam na mente o interesse de saber de onde vem esse som. Ou seja, o grito não é interpretado como mero som, mas como sinal de perigo à vida. E essa ameaça diária, aos poucos, passou a ser menos tolerada pela sociedade brasileira.
— Surgiram legislações e pesquisas acadêmicas sobre relacionamentos entre empregador e funcionário, pais com filhos e homens com mulheres indicando que o grito é uma forma abusiva de submeter o outro. Evoluímos para as pessoas tentarem se ouvir e se entender com empatia — afirma Luísa.
No entanto, por mais que haja todos os esforços do mundo para alcançarmos um verniz de civilidade, a agressividade e a violência seguem firmes e fortes em nosso comportamento, pontua o médico Cláudio Meneghello Martins, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP):
— A violência faz parte do funcionamento humano e nunca será totalmente inibida. Todos nós temos. E, para uma grande parcela da população em situação vulnerável, a violência entra como estratégia de sobrevivência.
O reflexo nas empresas
A cultura de gritar com empregados está em xeque desde a década de 1990. Nessa época, a própria ideia de “chefe”, que assumia ao ganhar autoridade no trabalho, passou a dar lugar ao “líder”, cujo poder depende do reconhecimento dos outros, explica Fernando Poziomczyk, diretor da consultoria de recrutamento e seleção Michael Page.
É nesse contexto que o “xixi” em público deu lugar ao feedback individualizado, ao passo que as salas dos chefões foram demolidas. Os líderes, então, começaram a trabalhar ao lado da equipe, de forma horizontal.
— A mudança no mundo empresarial ocorre por dois motivos. Primeiro, é uma questão geracional: hoje, não existe mais tolerância para a falta de respeito e para tudo que faça uma pessoa se sentir desrespeitada diante de outros. O segundo ponto, o mais importante na minha visão, é que agora sabemos que o grito não traz melhor resultado. Subir a voz não gera aprendizado ou resposta — afirma Poziomczyk.
Essa visão é corroborada por Margarida Barreto, professora do curso de especialização em Medicina do Trabalho na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e autora do livro Violência, Saúde e Trabalho – Uma Jornada de Humilhações. Ela diz que, em qualquer que seja o contexto, o grito é um alerta desastroso, causa irritabilidade e desconforto, não ajuda a educar e sequer contribui para que sejamos mais produtivos.
— Aquele que grita naturaliza em si e para si a agressão, transcendendo os limites da razão, e banaliza a ação. Gritar nos faz sofrer, nos maltrata. Um chefe descontrolado, que xinga, grita e humilha, se não reflete os seus atos, vai repeti-los de novo, achando que está ensinando ao outro. Ensinando o quê? — pergunta Margarida. — Que o empregado deve ficar acuado? Que deve desculpá-lo e compreendê-lo? Que deve se calar e aceitar ou que deve também gritar com os seus, para ser admirado? E aquele que assiste, deve ser conivente ou se solidarizar e conversar? Quem grita não rende resultados positivos para nenhum dos lados. Quem lida com o outro aos gritos mostra sua incapacidade para lidar com situações novas ou mesmo para exigir maior produtividade.
Segundo Margarida, anteriormente chefes gritões eram tolerados porque estudiosos “compreendiam as emoções como resultante da inter-relação do biológico com o ambiente”, como se existisse naturalmente uma cadeia intrincada de reprodução da violência.
— Mas poder e violência não podem ser interpretados em termos biológicos, pois há o social que nos constitui. Os gritos, as humilhações e todas as manifestações de violência, quando não compreendidos e refletidos, podem nos levar a aceitar, desculpar e até aprovar a existência de autoritarismos — pontua a professora.
As gerações mais jovens já não aceitam mais isso. E preferem embarcar em uma empresa com valores parecidos aos seus.
— O grito e o preconceito estão sendo abolidos. Qualquer coisa que possa discriminar ou intimidar alguém no ambiente de trabalho diminui os resultados. Cada vez mais, há uma percepção de que ambientes diversos, com bom clima, geram melhores resultados do que em locais com pessoas rudes e sem controle — acrescenta Poziomczyk.
De fato, um chefe que grita constantemente com funcionários pode ser processado, explica Luiz Afrânio Araujo, sócio da área trabalhista do escritório Veirano Advogados, de Porto Alegre. Ele diz que, a partir dos anos 2000, houve um aumento de ações trabalhistas por “uma maior consciência do direito a um ambiente saudável de trabalho”:
— Um supervisor que tenha atitude de desrespeito ou que trate de forma agressiva, por grito, pode resultar em ação (trabalhista) do empregado ofendido. É uma reparação por dano moral causado por aquele comportamento. Se for repetitivo, o empregado pode desenvolver depressão ou outros problemas de saúde, o que também poderia causar ação contra a empresa, e não só a pessoa agressora.
O fator feminino
A ação das mulheres também é uma das causas para a intolerância ao grito. Se vociferar é um tentativa de subjugar o outro, as mulheres não aceitam mais essa imposição.
— Cresceu a ideia de que as mulheres não podem mais ser submetidas. Nesse sentido, o grito já não é mais tolerado quanto antes — acrescenta a psicóloga Maria Ângela Bulhões.
Isso se reflete no trabalho também, comenta Margarida Barreto:
— Há uma ideia estereotipada sobre as mulheres que ainda perpassa o imaginário de muitos, a de que são fofoqueiras e invejosas. Na prática, é comum elas ensinarem uma as outras no ambiente de trabalho, mantendo o espírito de amizade e solidariedade. E seu jeito de exigir é mais delicado, humanizado, raramente temos uma que se descompensa ou grita.
Houve avanços concretos, diz Margarida:
— Se analisarmos o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2019) “Mulheres na gestão empresarial: argumentos para uma mudança”, resultado de uma ampla pesquisa com 70 países e 13 mil empresas, observaremos que 75% das empresas entrevistadas adotaram uma política da diversidade de gênero, o que é fantástico. Eles reconhecem que a presença das mulheres aumentou significativamente os ganhos de seus negócios.
Antes de gritar, reflita
- O grito atrai um grito mais alto. Em geral, não dá resultado.
- O grito surge quando faltam as palavras. O que você quer que entendam?
- O grito é um esforço inconsciente de dominar ou convencer. Tente explicar em palavras o que você sente ou quer dizer.
- O grito é compreendido pelo organismo como violência ou ameaça. São realmente essas as sensações que você quer passar?
- O grito está ligado à violência (ninguém grita um elogio). Você quer ser violento com quem ama ou com quem convive?
- O grito não aproxima, mas afasta e intimida. Você quer ser admirado ou temido pelo seu filho?
- O abuso não existe só na violência física, mas também na violência psicológica. O grito é uma expressão disso.