Faz 30 anos que José Renato Haggstrum dirige o lotação do Menino Deus. Sai do Morro Santa Teresa, percorre a Getúlio Vargas, vai até a Rua Riachuelo e faz o caminho inverso, 11 vezes por dia. Mas esse tem sido um percurso cada vez mais solitário. Se o motorista de 57 anos já levou 450 pessoas por dia dentro do micro-ônibus vermelho, azul e branco, agora, não passa muito de cem. No final de tarde de janeiro, após conversar com a repórter, entregou só um passageiro no Centro em uma das viagens.
— Estou apavorado, sentindo que não vai muito longe — diz. — Isso aqui é só o que sei fazer.
Depois de assistirem ao sistema perder mais da metade dos usuários — em 2019 foram 11 milhões a menos do que em 2014 —, permissionários do sistema, especialistas e Associação de Transportadores de Passageiros por Lotação (ATL) partilham do receio de Haggstrum. A metáfora usada pelo gerente-executivo da entidade, Rogério Lago, é de que o sistema está na UTI:
— Estamos ligados pelos aparelho. É triste falar isso, o lotação sempre foi uma referência de transporte em Porto Alegre, e agora vemos o sistema nessa decadência.
A crise e o desemprego colaboram para a diminuição de passageiros. Mas todas as pessoas ouvidas para essa reportagem fazem uma relação direta com os aplicativos de transporte individual — desde 2015, quando a novidade chegou a Porto Alegre, os números de usuários do serviço despencam a cada ano. É que enquanto a passagem do lotação custa R$ 6,60, viagens do aplicativo 99, por exemplo, partem de R$ 4,50. Pode ser ainda mais barato a quem opta pelo Uber Juntos, que reúne no mesmo veículo mais passageiros.
E os aplicativos não devem dar colher de chá: essa mesma empresa lançou no Cairo, no Egito, uma modalidade de transporte que consiste na reserva de assentos em micro-ônibus que rodam pela cidade. Ao solicitar o UberBus, o passageiro é direcionado a embarcar no ponto mais próximo de sua atual localização, e deve pegar o veículo que chegará mais rápido ao local pretendido de desembarque. É como um lotação, mas com tecnologia e preços potencialmente mais baixos.
Luta para não aumentar o preço
Outra unanimidade entre autoridades e especialistas é a dificuldade de salvar o modelo a partir de uma passagem a R$ 6,60. E protagonizam uma batalha com cara de paradoxo. Enquanto a associação de ônibus chegou a pedir aumento de R$ 0,50 na passagem, os representantes dos lotações querem impedir o reajuste da sua passagem para ampliar sua competitividade. Já tentaram isso, sem sucesso, no ano passado.
— Os R$ 0,60 do aumento do ano passado, nos primeiros meses, o povo não deu bola. Mas bota na ponta do lápis no final do mês — provoca o motorista de lotação Eder da Silva Tavares, 40 anos.
O entrave é que a prefeitura não permite a redução em razão de uma lei municipal que vincula a passagem do lotação à tarifa dos ônibus. O índice precisa ser de 1,4 a 1,5 vezes maior que a passagem de ônibus.
A EPTC argumenta que o lotação é um modal acessório, e que a medida acirraria a concorrência dele com o ônibus, modal que tem função social e que dá isenções para grupos como estudantes e idosos. Outra reivindicação dos permissionários, não acatada pelo mesmo motivo, é a utilização do vale-transporte nos lotações.
No dia 18 de maio de 1977, Zero Hora noticiava o início do novo sistema de transporte de Porto Alegre, feito predominantemente por Kombis. "Táxi-Lotação começa com bom movimento", trazia o título da reportagem, que carregava um otimismo que não se encontra mais nos micro-ônibus.
O conforto sempre foi o chamariz do sistema. São permitidos apenas veículos com ar condicionado e poltronas reclináveis. A possibilidade de entrar ou sair ao longo trajeto, sem paradas preestabelecidas, é o motivo mais citado por usuários para escolher o sistema. A recepcionista Sandra Sdreck, 50 anos, desce na frente de casa e fica menos exposta a assaltos na rua.
Como o lotação também não permite nenhum passageiro de pé, há mais sensação de segurança às mulheres, principal público do modal.
— No ônibus, por ser cheio, tem homens que se passam com mulheres. Aqui nunca fiquei desconfortável — diz a atendente de restaurante Samanta Viana Pereira, 21 anos.
A única queixa relatada a GaúchaZH entre os usuários do lotação é a frequência: eles já repararam que, em algumas linhas, leva mais tempo entre um veículo e outro. Diferentemente dos ônibus, não é a EPTC que estabelece os horários dos lotações, mas os permissionários.
O lotação de Porto Alegre foi considerado referência de transporte seletivo por décadas, para o Brasil e até outros países da América do Sul. Diretor-presidente da EPTC entre 2010 e 2016, com mais de 30 anos de currículo no departamento, Vanderlei Capellari conta que representantes de vários municípios vieram à cidade conhecer o transporte, e ele mesmo o apresentou em congressos da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em São Paulo e em Brasília.
Para Capellari, só é possível se tornar competitivo usando a mesma receita do Uber: tecnologia. Ressalta que as pessoas não aceitam mais ficar aguardando na via sem saber que horas vai passar o transporte:
— Tem de ter modelo onde usuário saiba quanto tempo vai levar para o veículo chegar, um modelo de inteligência que permita que se sinta atraído pra usar o transporte.
Já há um aplicativo para acompanhar parte dos lotações em tempo real, mas a reportagem não conseguiu usá-lo — aparecia uma mensagem de que não havia veículos em viagem. A ATL afirma que ainda está em testes, mas não dá prazo para o lançamento definitivo.
Rodrigo Tortoriello, secretário municipal de Mobilidade Urbana, afirma que, se os permissionários quiserem, o aplicativo que mostra em tempo real os ônibus de Porto Alegre pode incluir também os lotações. Mas há um impasse entre permissionários, porque eles não deixam de ser concorrentes — são 130, compartilhando, por vezes, a mesma linha. Existe um temor de que, se ligar o GPS para mostrar a localização aos usuários, o motorista do outro veículos vai correr na frente para buscar os passageiros dele.
Sem dar detalhes sobre os planos da prefeitura para os lotações, Tortoriello também avalia que a salvação passa pelo uso da tecnologia. Exemplifica que em Fortaleza, no final do ano passado, começou a operar um sistema em que o usuário solicita uma corrida no seu endereço, e o veículo (uma Sprinter) altera a rota para atender a demanda. O serviço não tem rota fixa, varia de acordo com o local onde as pessoas desejam embarcar e descer, mas o preço é informado de antemão ao usuário.
Se nada for feito, Andrei da Rocha Fraga, 42 anos, deve entregar até ano que vem a permissão que sua família tem desde o começo do sistema, em 1977. Em três anos, diz ter tido quase R$ 500 mil de prejuízo com os seus quatro veículos da linha Glória — atendeu 750.796 passageiros em 2014 e apenas 382.172 no ano passado.
— Neste mesmo ritmo de queda, em 2021 não vamos mais operar. Até então, a gente deixou de tomar atitude mais drástica por ser familiar, de ser um dos pioneiros, mas se fosse tratar de forma racional, tinha de ter entregue — diz Rocha.
Boa parte dos motoristas de lotações da cidade ganha seu salário por comissão (normalmente, em torno de 13% do valor da tarifa de cada passageiro). Péssimo negócio para eles.
José Renato Haggstrum, personagem do começo deste texto, criou o filho, de 25 anos, com o dinheiro da direção do lotação. Já ganhou pelo menos o dobro do que recebe hoje. Conta que teve de cortar praticamente todos os luxos — sair com a esposa para jantar, por exemplo, não acontece mais.
— Construí casa com esse salário. Hoje, se o carro quebrar não tem dinheiro para consertar — resume.