É difícil encontrar Marcos Vinícius Pias e Luciana Pias em casa. Especialmente os dois juntos. Ele trabalha como auxiliar de serviços gerais das 7h às 15h20min no Hospital Espírita, no bairro Teresópolis. Ela, das 13h40min às 22h na limpeza do Hospital Mãe de Deus, no bairro Menino Deus – seu primeiro emprego de carteira assinada. Para conversar com o casal sobre o primeiro mês amparados pelo Programa Moradia Primeiro, em que a prefeitura aluga imóveis de baixo custo e destina a pessoas em situação de rua, foi preciso visitá-los no feriado de 20 de Setembro.
Como eles não têm telefone celular, foram surpreendidos pela equipe de reportagem no lado de fora do prédio transformado em "pousada" na Rua Jerônimo Coelho, no Centro Histórico, por volta das 9h30min. Marcos recebe o repórter e o fotógrafo sonolento, mas cordial e um pouco surpreso. Pela visita e pela rápida passagem do tempo.
– Poxa, é mesmo, amanhã faz um mês! – diz Marcos, entre bocejos.
Tranquilidade
O casal vive uma fase de tranquilidade quase entediante para quem os ouve falar sobre a nova rotina: da casa para os empregos e vice-versa. Com ajuda do Sine, ambos regularizaram seus documentos e foram selecionados para vagas de emprego dias depois de se mudarem do viaduto perto do Colégio Rosário para o imóvel. Conforme a conversa flui, aparece a justificativa: o que parece banal a quem tem uma rotina de trabalho seguido de descanso e trabalho novamente, é exatamente o que ainda encanta o casal. Entre as falas de um e de outro, aparece o desconforto que sentiam antes, ao explicar o dinheiro que pediam na rua.
– Esse (o salário) é um dinheiro que não é fácil. É um dinheiro que vem do nosso suor – declara Luciana.
– Muitas vezes a gente pedia e eles mandavam a gente trabalhar – complementa Marcos, com um sorriso irônico de "poxa, bem que eu queria":
– Agora, é um negócio que vem da gente. Não é um dinheiro sujo.
Projetos para os primeiros salários
Os dois ainda não receberam os primeiros salários cheios, mas fazem projetos para os vencimentos somados. O plano é aproveitar o período que contam o benefício da prefeitura para poupar o restante do valor e, assim, ter o suficiente para dar entrada em um terreno. Os dois ganham um pouco mais do que o salário mínimo cada, mas, na visão de Marcos, "não é pouco dinheiro" se comparado à quantia entre R$ 30 e R$ 50 que fazia "puxando carrinho" coletando material para reciclagem.
– Não pra querer tudo de uma vez, né? Um passo de cada vez – diz Marcos.
Aos poucos, mais pessoas saindo das ruas
Um passo de cada vez também poderia ser o lema do Moradia Primeiro como um todo, conforme Silvia Mendonça, coordenadora do projeto na Secretaria Municipal de Saúde. Outro casal já faz companhia a Marcos e Luciana em outro quarto do mesmo prédio. Há mais inquilino em um imóvel Zona Norte e outro casal em vias de ser selecionado. O principal entrave ainda é a liberação dos imóveis, seja pela falta de comprovante de titularidade ou de interesse dos locatários em firmarem contrato com a prefeitura para esse perfil de inquilinos. Silvia destaca também que o Moradia Primeiro é parte de um programa mais amplo voltado à população de rua de Porto Alegre.
Entre os esforços, ela comemora o início de oficinas profissionalizantes no Centro Pop II, instalação da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) na Rua Voluntários da Pátria e as 34 passagens compradas a pessoas desamparadas na Capital que desejam voltar a suas cidades no Interior.
Passado na rua é difícil de recordar
Uma equipe da prefeitura – composta por assistentes sociais e profissionais de saúde – também faz visitas quinzenais aos contemplados pelo Moradia Primeiro. Para facilitar a abordagem, parte deles já acompanha Marcos e Luciana desde os tempos de rua, em estruturas de saúde como o Consultório na Rua. A relação o casal com o passado recente ainda é traumática. Ambos citam, por exemplo, como uma qualidade dos colegas de trabalho não comentarem a história deles. Enquanto Marcos veste um par de calçados para dar uma caminhada pelo Centro para fazer fotos, Luciana comenta de canto, incomodada:
– Já ouvi que eu estou "meio cheia". Que não trato mais as pessoas (que ainda vivem na rua) da mesma forma. Mas não é nada disso. Quantas vezes eu já estive igual àquela pessoa ali (aponta para uma mulher sob a marquise de um supermercado na Rua Riachuelo), pedindo esmola e comida na porta do supermercado. Mas tem pessoas que estão na rua por falta de opção e as que estão lá porque querem. Estas últimas têm uma energia ruim que eu preciso me afastar. Eu não quero mais isso pra mim.
Alegria por "dormir com os dois olhos fechados"
Sobre o viaduto Otávio Rocha, posando para fotos abraçados e caminhando, a conversa retoma a leveza. Luciana conta que conheceu uma profissional do Consultório da Rua que também atende o seu filho no abrigo Pão dos Pobres. A coincidência a deixou mais otimista de que, por intermédio dela, ela possa em breve obter permissão para visitar o filho de 14 anos, afastado dos pais quando eles se viram despejados. Como ele tem uma deficiência mental, a questão das visitas é especialmente complexa.
– Fiquei mais ansiosa ainda de reencontrar ele. Beijar, abraçar, chorar. Embora eu saiba que ele não vai me dar muita bola se eu estiver com o Marcos. Prefere ele do que eu – ela brinca apontando para o marido, padrasto do garoto desde os oito anos.
O repórter se despede do casal se desculpando mais uma vez por encurtar a manhã de descanso no feriado. Brinca com Marcos sobre a sua frase na primeira vez que foi entrevistado, sobre, longe do relento, poder "voltar a dormir com os dois olhos". Ele sorri, descontraído:
– Nem me fala. Agora a gente dorme com os dois olhos fechados e ainda sonha.
Programa Moradia Primeiro
/// Baseado em experiências em países como Austrália, Canadá, EUA, Finlândia e Portugal, o Programa Moradia Primeiro é uma iniciativa da prefeitura de Porto Alegre com recursos do governo federal para alugar imóveis ociosos e destiná-los a pessoas em situação de rua.
/// Os contratos são de no máximo R$ 500 mensais e valem por seis meses, renováveis por mais seis. Nesse meio tempo, os contemplados recebem acompanhamento da prefeitura, incluindo oficinas de emprego do Sine. A prefeitura pretende contemplar entre 50 e 70 pessoas até o final do ano.
/// Donos de imóveis interessados em participar podem se cadastrar por meio do site prefeitura.poa.br/moradiaprimeiro.