Minutos depois da cerimônia no Paço Municipal, na terça-feira (21), uma van acompanhou Marcos Vinícius Pias, 36 anos, e Luciana Pias, 40 anos, até o viaduto ao lado do Colégio Rosário para se despedirem de amigos e recolherem os pertences que desejassem levar para o pequeno apartamento na Rua Jerônimo Coelho, no Centro Histórico. É o primeiro imóvel alugado para o Programa Moradia Primeiro, projeto da prefeitura de Porto Alegre que destina imóveis ociosos na cidade a pessoas em situação de rua. O casal decidiu não levar muita coisa.
— Como a gente está tendo essa mudança, queria deixar para trás mesmo todo um antro de desespero. Uma parte da nossa vida escrita com lápis, para passar uma borracha em cima — compara Marcos.
Nas breves horas que se ausentaram, um último dissabor: dois cobertores haviam sido furtados. Marcos lamenta especialmente por um azul, do Grêmio, que dera de presente para a esposa de aniversário. De volumoso, trouxeram a cama box e um pequeno armário de duas portas com roupas. E basta. Os dois móveis praticamente lotam o espaço sem janelas. Para ficar na nova casa, restam poucos centímetros fora da cama, onde Luciana deixa uma almofada de coração com bracinhos. Vendo os pertences montados em um cômodo, é difícil imaginar que o casal mantivesse a estrutura debaixo de um viaduto.
— Não é porque a gente estava em situação de rua que tínhamos que ser desorganizados e sujos. Acho que é por isso que fomos conquistando o pessoal ali do colégio. Porque mantínhamos o espaço limpo, respeitávamos as crianças e cumprimentávamos quem passava. Com o tempo, as pessoas começaram a parar ali para nos elogiar e oferecer doações — conta Luciana.
Não foi o primeiro lugar em que Marcos e Luciana moraram na rua. Prestes a ser despejado de um imóvel na Lomba do Pinheiro, o casal precisou deixar o filho de Luciana — de 14 anos, que tem uma deficiência mental — em um abrigo e se aventurar pela cidade. Desde outubro de 2017, passaram por uma pensão na Voluntários da Pátria, pelos viadutos da Conceição e da Silva Só e por uma marquise de uma loja de pneus na Avenida Ipiranga. Levantavam acampamento sempre que pressentiam problemas de segurança ou ameaça de perderem os pertences em ações de autoridades. Ao lado do Colégio Rosário, encontraram um pouco de sossego.
— Fizemos amizade com outros moradores de rua ali. Tem quem não queira sair dessa vida e tem quem queira. Acho que nos selecionaram porque sempre deixamos claro que queríamos mudar de vida e precisávamos de ajuda — declara Marcos.
Para essa ajuda, o casal é enfático em agradecer meia-dúzia de "anjos que desceram do céu para dar um empurrãozinho". Especificamente a agente comunitária Jocelaine Rodrigues e o enfermeiro Cleiton Salvador, da equipe do Centro de Saúde Santa Marta, que atende a moradores de rua "sem medo, vergonha ou nojo". O casal cita também Letícia Soares e Silvia Mendonça, da Secretaria da Saúde, e Leandro Balardin, diretor do Sine que conduziu Marcos Vinícius a entrevistas de emprego. Sua maior torcida é por uma vaga de auxiliar de manutenção em um hospital, para qual fez seleção e aguarda retorno.
Embora o cômodo reservado ao casal seja acanhado, o prédio de cinco andares conta com uma área de cozinha e banheiro compartilhados entre os inquilinos, além de um terraço amplo em que Marcos sonha assar um churrasco. Gás, luz e água estão inclusos no valor do aluguel pago pela prefeitura. Luciana, a cada três ou quatro frases, menciona o desejo de voltar a conviver com o filho conforme "a vida for tomando rumo". Desde o Dia das Mães, só vê o filho pelo porta-retratos, um dos únicos objetos de decoração trazido da rua.
Por ora, comemoram os primeiros símbolos de dignidade: ter um endereço para dizer nas consultas médicas, um banho de chuveiro que não custa um dia de trabalho vigiando carros ou reciclando lixo para pagar (hotéis do Centro oferecem o serviço a R$ 15) e o principal, segundo Marcos:
— Poder dormir com os dois olhos, sabe? Sem se preocupar em tomar uma facada ou te atearem fogo no meio da noite.
Programa Moradia Primeiro
Baseado em experiências em países como Austrália, Canadá, EUA, Finlândia e Portugal, o Programa Moradia Primeiro é uma iniciativa da prefeitura de Porto Alegre com recursos do governo federal para alugar imóveis ociosos e destiná-los a pessoas em situação de rua. Os contratos são de no máximo R$ 500 mensais e valem por seis meses, renováveis por mais seis. Nesse meio tempo, os contemplados recebem acompanhamento da prefeitura, incluindo oficinas de emprego do Sine. A prefeitura pretende contemplar entre 50 e 70 pessoas até o final do ano. Atualmente, há 30 imóveis em avaliação e outros sendo prospectados. Donos de imóveis interessados em participar podem se cadastrar por meio do site prefeitura.poa.br/moradiaprimeiro.