O inusitado caso do homem que usou o nome de uma criança morta para desviar dinheiro da Carris teve detalhes revelados a partir da confissão que Ivsem Gonçalves fez ao Ministério Público (MP). GaúchaZH teve acesso ao depoimento de Ivsem, que desviou R$ 1,7 milhão fraudando processos de pagamentos com o nome de Alexandre Marc Klejner, criança que morreu em 1961.
Em suas declarações, ele revelou ter se inspirado em um filme para escolher em um cemitério o nome que usaria. E desabafou:
— A minha vida e a do Alexandre se misturaram. Era como se fosse uma. Eu agia usando o nome dele como se fosse eu. A pessoa que comete uma besteira dessa se sente impune, e eu me sentia assim, como se tivesse feito o golpe perfeito. Houve mistura entre a minha vida e a existência dele.
Ivsem se apropriou da identidade de Klejner muito antes de chegar à Carris, ainda nos anos 90, quando passou a usar documentos em nome da criança morta para abrir conta e obter crédito em meio a uma alegada crise financeira.
Ao falar ao promotor Flávio Duarte, da Promotoria Especializada Criminal, o ex-funcionário da Carris contou ter se encorajado a praticar os desvios por conta da "fragilidade" que detectou nos processos de pagamentos da companhia. O motivo, segundo ele, foi a necessidade de quitar dívidas causadas por planos econômicos que atingiram uma metalúrgica que herdou do pai.
O depoimento ao MP durou cerca de uma hora e foi gravado em vídeo. Ivsem disse que traiu a confiança de seus gestores, mas que, apesar do "erro" que cometeu, conseguiu colocar a Carris nos "trilhos". Ele trabalhou na companhia entre novembro de 2014 e abril de 2017, como coordenador de almoxarifado e coordenador do setor financeiro.
— Percebi a fragilidade da documentação, a forma quase infantil como eram feitos os processos. Quando notei essa fragilidade, comecei a vacilar — admitiu.
Com o setor financeiro sob seu comando, Ivsem passou a fraudar processos de pagamentos de acidentes de trânsito em que a companhia estava envolvida. Ele direcionava as indenizações a pessoas que não sabiam que seus nomes eram usados e, endossando cheques em nome de Klejner, conseguia obter para si os valores, já que mantinha conta bancária e carteira de identidade em nome do morto. Foram 17 processos fraudados. Ivsem trabalhou na Carris por indicação do MDB, partido ao qual era filiado até vir à tona a investigação da fraude. Ivsem acabou expulso da sigla.
Ao explicar o caso ao MP, Ivsem enfatizou ter planejado e executado a fraude sozinho, sem participação de qualquer gestor ou de outro funcionário da Carris. Confessou ter falsificado assinaturas, entre elas, as do então procurador jurídico, Pedro Osório Rosa Lima.
— Ninguém está envolvido. Não tenho sócios. Eu planejei e executei — ressaltou.
Ivsem explicou que os documentos fraudados não passavam pelo setor jurídico:
Ninguém está envolvido. Não tenho sócios. Eu planejei e executei.
— Eu recebia (a documentação) do jurídico para programar os pagamentos. Quando notei a fragilidade, copiei o e-mail e guardei. Editava o e-mail impresso. Pegava o e-mail, fabricava sentença, tinha tudo guardado em arquivo. Eu só alterava e ia para a diretoria assinar. Só o que não podia adulterar eram as assinaturas dos diretores.
Ele também alegou que não pretendia fraudar para sempre a companhia. Disse que tinha como meta apenas o valor que precisava para quitar dívidas com bancos e agiotas. E tentou amenizar a quantidade desviada:
— Se fala como se fosse um milhão que botei na bolsa e saí. Foi em 20 meses, uma média de 80 mil por mês, que era o que comportava dentro do financeiro, do fluxo. Não é sair com um milhão. Não existia o intuito de lesar eternamente. Tinha um valor que foquei.
Quanto ao uso do nome da criança morta, o ex-funcionário da Carris disse que as pessoas acreditavam se tratar de um sócio dele, uma pessoa de quem ele tinha procuração. Sobre a escolha do nome da criança morta, feita no Cemitério São Miguel e Almas, ele explicou:
— Lembrei de um filme que vi em 83, 84, que tinha uma mulher que era espancada pelo marido, um filme americano. Havia uma entidade que ajudava essas pessoas (vítimas de violência) a fugir, e falsificavam documentação indo a cemitérios e pegando documentação de pessoas mortas.
Ivsem admitiu ter usado a identidade entre 1996 e 2000 para ter crédito e para pagar dívidas. Até começar a fraude na Carris, teria ficado sem usar a identidade, tendo apenas mantido conta em banco e cartão de crédito em nome de Klejner.
O MP concluiu a investigação da Operação Antares em julho e denunciou Ivsem Gonçalves e a filha dele, Hellen Gonçalves. A denúncia foi aceita pela Justiça e os dois se tornaram réus. Ivsem foi denunciado por peculato, falsidade de documento público, uso de documento falso e lavagem de dinheiro, crime pelo qual sua filha também foi enquadrada.
O MP não identificou a participação de outras pessoas na fraude, inclusive, os três gestores citados na investigação — Pedro Osório Rosa Lima, Vidal Pedro Dias Abreu e Sérgio Luiz Duarte Zimmermann — se tornaram testemunhas de acusação. Ivsem ainda pode responder a ação de improbidade administrativa, já que uma apuração cível tramita na Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.