Cerveja tem gosto de liberdade para a empresária Rosária Penz Pacheco, 44 anos. Contrariando o senso comum, não é de libertação do trabalho, do tipo happy hour: desde que abriu o Penz Bier, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, ela dedica quase todo o tempo para gerenciar o negócio. Para a mulher que, depois de quase duas décadas, deixou a carreira de executiva de contas em um banco, um curso de sommelier de cervejas serviu para revelar uma nova versão de si mesma: de piercing, tatuagens à mostra, calça jeans e camiseta, resolveu apostar em uma vida mais simples e reinventou a ideia de sucesso.
— Minha vida mudou completamente. Gosto de trabalhar um milhão de horas, e continuei fazendo isso. A diferença é a sensação de não trabalhar. É renascimento mesmo. Me considero outra pessoa — avalia.
A mudança de rumo que culminou na esquina das ruas Sarmento Leite e José do Patrocínio, onde, em 2016, abriu as portas do bar de cervejas artesanais, começou em 2013. Depois de 10 anos morando em São Paulo — os últimos na badalada Rua Oscar Freire —, e há dois anos de volta em Porto Alegre, ela já tinha tomado a decisão de deixar o emprego quando resolveu ir a Campos do Jordão para aprender mais sobre uma paixão antiga: tomar cerveja.
Única mulher de uma turma de 12 alunos, impressionou-se com o que descobriu durante as aulas do curso intensivo de sommelier, que durou dois meses. A infinidade de sabores, aromas, insumos e possibilidades de produzir cerveja aguçou sua curiosidade e reanimou a vontade de planejar e criar coisas novas sufocada nos últimos anos de trabalho como bancária.
— Cerveja sempre foi minha bebida preferida, mas eu não entendia nada do assunto. Lá, tudo começou a fazer sentido. Um universo de coisas que eu nunca tinha ouvido falar foi se abrindo na minha frente — recorda.
De volta a Porto Alegre, retornou à sala de aula, desta vez no primeiro curso de sommelier de cervejas do Rio Grande do Sul, mais longo que o anterior. Mais tarde estudou técnica cervejeira pelo Senac e tornou-se juíza certificada pelo Beer Judge Certification Program (BJCP), dos Estados Unidos — já julgou campeonatos no Brasil e no Uruguai e, em 2019, irá à Argentina. Ainda em 2013, criou sua primeira receita de cerveja. A Nego Veio, uma saison — tipo de cerveja aromática e refrescante — que leva aroeira, butiá e semente de coentro, foi produzida com a ajuda de dois amigos cervejeiros. O trio reuniu-se na cervejaria de um deles e virou a noite preparando a bebida. O resultado foi tão bom que ela é vendida até hoje nas torneiras do Penz — onde há outras duas receitas suas sempre à disposição.
Rumo definido, seguiu-se um ano e meio de planejamento até que montou o bar com o irmão Ruiz, que comanda a cozinha. O ponto na José do Patrocínio foi comprado de um amigo, e reformado para se adequar ao desejo da dona: transformá-lo em um lugar aconchegante, onde os clientes pudessem sentir-se em casa.
O projeto vingou. Em pouco mais de dois anos, o local quase dobrou o número de torneiras — de 10 para 18, sendo 15 de chope e três de outros tipos de bebidas fermentadas — e já foi destacado por organizações que entendem de cerveja. Desde o começo, a proposta foi estendida para além do happy hour: o espaço promove cursos e workshops diversos, de culinária à produção de cerveja, além de sediar periodicamente provas de formação de juízes — na semana em que a reportagem visitou Rosária, tinha recebido o presidente da BJCP, o norte-americano Gordon Strong.
— Sempre estamos estimulando as pessoas a estudarem. Porque eu sou nerd, né. Não coloco só cervejas fáceis (de tomar). Quero que as pessoas participem dos cursos para poderem degustar coisas diferentes, entender o que estão comprando. A gente está em um estado onde as pessoas entendem um pouco de vinho, mas cerveja ainda é complicado — diz.
Mudança de estilo e busca por igualdade
A vida como empreendedora não apenas mudou drasticamente a rotina de Rosária — antes matutina, agora não raro vai dormir às 3h para estar de pé cinco horas depois —, mas também seu estilo pessoal. No dia em que pediu demissão, colocou um piercing no nariz e, pouco tempo depois, tatuou "Alive" (vivo, em inglês), inspirada em um música da banda Pearl Jam, quase como um recado para si mesma. Existia vida, e muita, fora da rotina convencional e estressante que levava.
Também gravou na pele a paixão pela cerveja, cobrindo parte do braço esquerdo com coloridas folhas de lúpulo e um gnomo degustando a bebida. O uniforme de trabalho é dos mais informais: calça jeans e camiseta.
Desde que inaugurou o bar, seu meio de transporte são as próprias pernas. Do apartamento onde vive com a gata Catarina, no Centro Histórico, são apenas alguns minutos até o estabelecimento na Cidade Baixa.
Continua fã incondicional da bebida que mudou sua vida, e aproveita o único dia livre da semana para frequentar um bar que reúne outros fanáticos pelo assunto. As noites de folga frequentemente viram pub crawl ("maratona etílica"), nem sempre gourmet: por vezes, a saideira é tomando cerveja comercial em posto de gasolina. E tudo ótimo.
A entrada em um universo até anos atrás dominado por homens também despertou seu lado ativista. Hoje integra dois coletivos femininos, um em âmbito nacional e o outro gaúcho, que discutem formas de inserir as mulheres no mercado cervejeiro. Inspirada na abadessa alemã Hildegard von Bingen, pioneira em identificar as propriedades conservantes do lúpulo, no século 12, Rosária criou uma série de receitas novas que irão surgir nas torneiras do bar ao longo do ano.
— Como sommelier e na fermentação tem muita mulher, mas na produção de cervejas ainda existe preconceito. No começo a discussão era mais quente, hoje está mais pacífica. A cerveja une as pessoas: é impressionante a troca de conhecimento, todos se ajudam. É uma rede de troca de informações fantástica — diz.