Ainda que seus olhos não mostrem mais do que manchas escuras em um imenso branco, Valdir da Silva é capaz de registrar em imagens o que sente. Cego desde os 24 anos após um acidente de trabalho, Valdir hoje mora em Porto Alegre, é fotógrafo e, aos 42 anos, com a ajuda muito especial da filha Vitória, de seis, mostra como aprendeu a enxergar a vida de outro jeito.
Em 1999, Valdir trabalhava em uma fábrica de calçados, em Nova Hartz, no Vale do Sinos. Ensinava um colega a lixar palmilhas quando pontas de tachinhas voaram em seu olho direito. Desequilibrou-se e bateu em um galão de solvente, que caiu no chão e atingiu seus olhos. No consultório, o oftalmologista decretou: ficaria cego em seis meses.
— Era um baque, imagina, ter 24 anos e não enxergar mais. Pensei em tentar o suicídio. Mas percebi o quanto estava sendo egoísta, pensando só na minha dor. Não estava pensando nos meus pais, nos meus irmãos. O sofrimento seria muito maior para eles — conta.
A previsão do médico estava quase certa: sete meses depois, Valdir havia perdido quase toda a visão. Foi morar com uma irmã em Canoas para ficar mais próximo dos especialistas, e gastou R$ 100 mil tentando enxergar de novo. Não adiantou. Começou a frequentar a Associação dos Deficientes Visuais de Canoas (Adevic) – queria aprender a lidar com a cegueira. Impôs metas para isso: primeiro, reaprender algo básico, como caminhar sozinho. Em seguida, foi incentivado pela coordenadora do Núcleo de Apoio Pedagógico e Produção Braille, Deloni Mossmann Siqueira, a dar outro passo: expressar-se de um jeito que pouca gente imagina ser possível a um cego. Em uma prancheta adaptada, começou a desenhar. Em seguida, Deloni mostrou que Valdir poderia fotografar usando "os outros sentidos e entrar no ambiente, por meio da energia, da voz, do barulho, do calor, para desenvolver a questão da fotografia".
— Ele tinha muita memória visual e eu já tinha orientado um colega dele a fotografar. Primeiro, começamos a tirar fotos pelo celular, e eu fui auxiliando na parte pedagógica — conta Deloni.
Valdir duvidou no começo, mas depois se surpreendeu e apostou na atividade. Com o tempo, comprou uma máquina fotográfica e começou a registrar a natureza, o pôr do sol, a praia e as pessoas. Tudo aquilo que não conseguia enxergar, mas podia sentir:
— O que me desafia é fotografar aquilo que vejo com os olhos do coração. É o barulho, a essência. Amo fotografar o pôr do sol do Guaíba, por exemplo. Conforme o calor do sol vai diminuindo, eu vou clicando.
Recentemente, o fotógrafo ganhou uma parceira: a filha Vitória, de seis anos. Interessada, a menina auxilia o pai a atravessar a rua, indica qual o melhor ângulo na hora de tirar fotos e, no fim, opina na escolha das imagens.
— Eu amo fotografar com o papai, do que eu mais gosto é (de tirar fotos) de bichinhos — afirma a menina, sorridente, enquanto abraça Valdir.
— Fotografar com a Vitória é uma emoção indescritível. Ela tem o jeitinho dela de me falar as coisas, a sua inocência de me descrever tudo. Ela é meu anjo — derrete-se o papai.
Valdir costuma realizar exposições e faz palestras motivacionais gratuitas em escolas, universidades e empresas expondo sua trajetória de vida e a paixão pela fotografia. Agora, busca um equipamento profissional — quer fazer um documentário, filmado por ele, que fale sobre a deficiência e conscientize as pessoas a respeito da acessibilidade:
— Eu me sinto poderoso com a máquina na mão. A lente são meus olhos, a cada clique é uma batida do meu coração. Porque eu sei que a lente vê horizontes que eu não consigo ver. O meu maior desafio não é fotografar: é fazer que as pessoas entendam que, apesar a minha deficiência, eu posso fazer isso.
Há seis anos, Valdir sofreu outra perda: sua filha mais velha, na época com 19 anos, morreu em um acidente de carro. Mais um desafio do qual não fugiu:
— Dói e parece que foi ontem. Mas chegou o momento dela. Eu tenho que entender isso. A mesma coisa é a perda da minha visão. Nunca usei um antidepressivo, nem bebida, nem droga. O que resolve é eu olhar pra frente. Eu me ajoelho para agradecer, jamais para reclamar.
Mesmo em meio a dificuldades, Valdir não perde o otimismo em encarar a vida. Atualmente, o fotógrafo se mantém apenas com o dinheiro que ganha da aposentadoria. Mas a dificuldade maior, afirma, é o preconceito.
— Quando estou no meio de outras pessoas, sou tratado de uma forma diferente de quando estou sozinho. Tem muita gente que não entende porque eu estou ali e tem preconceito com a deficiência — explica.
Esse novo modo de encarar as coisas, recebido em boa parte da fotografia, era a intenção inicial da professora Deloni. Nos anos de trabalho com pessoas com deficiência, ela conta do desafio que é evitar a sensação de limitação e a descrença na capacidade de atingir objetivos.
— Uma vez, um aluno deficiente visual me falou que tinha o sonho de dirigir. Coloquei ele dentro do meu carro e andamos pelo pátio, ele ficou realizado. Eles podem fazer de tudo, basta acreditar — afirma Deloni.
Ao voltar a acreditar, Valdir deu outro significado ao seu acidente. Hoje, diz sequer procurar a cura.
— Gastei R$ 100 mil tentando recuperar a visão. Hoje, eu respondo que não quero voltar a enxergar, porque descobri a felicidade assim. Minha deficiência não é um ponto final na minha história, é só uma vírgula.
Evgen Bavcar
Entre os anos 1990 e 2000, um fotógrafo cego e filósofo ficou famoso por seu trabalho. Esloveno naturalizado francês, Evgen Bavcar, hoje com 71 anos, exibiu em Porto Alegre em 2001 a mostra Noite, Minha Cúmplice. No mesmo ano, apareceu no documentário brasileiro Janela da Alma, no qual 19 pessoas com diferentes graus de deficiência visual falam como se veem. Cego desde os 12 anos, em decorrência de dois acidentes, para o artista, a fotografia nunca significou exclusividade de quem pode enxergar.