Com o objetivo de melhorar a circulação próximo ao Mercado Público, intervenções feitas em vias como as ruas Marechal Floriano Peixoto e José Montaury em 2015 tornaram-se armadilha para os cegos que circulam pelo local.
O ponto mais crítico, na esquina das ruas Marechal Floriano Peixoto com Voluntários da Pátria, é um convite a um acidente. Com a via nivelada e o piso tátil instalado de forma inadequada – o relevo ficou quase no nível do piso, o que dificulta sua detecção –, quem não enxerga muitas vezes acaba no meio da rua. O local é ponto de circulação de ônibus.
– Canso de tirar eles daqui. É um perigo – conta uma ambulante.
O trecho perigoso fica justamente entre a Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs) e um prédio onde ocorrem cursos diversos para pessoas com deficiência visual. E o risco de atropelamento não é o único problema. Pequenos postes foram instalados muito perto da faixa em alto relevo que serve como guia, tornando-se obstáculos à travessia. Seguindo pela Marechal Floriano em direção à Rua José Montaury, mais um desserviço: próximo demais dos comércios da via, o piso tátil é frequentemente obstruído por mostruários das lojas ou produtos de ambulantes.
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– Antes da reforma, era mais acessível. Tinha o degrau, dava para circular. Assim melhorou por um lado, porque está bom para quem é cadeirante, mas piorou para o outro – diz Altair Fagundes de Oliveira, secretário da Acergs.
Conforme Altair, o erro não foi por falta de aviso. Na época das obras, a Acergs procurou a prefeitura para conversar sobre as intervenções, mas não teve retorno. O atual diretor do departamento de acessibilidade e inclusão social, Gabriel Alban, admite que a obra foi equivocada. Segundo ele, foram emitidas notificações à antiga Secretaria Municipal de Urbanismo (Smurb) e à empresa responsável pelo trabalho para que fosse corrigido. Até agora, nada foi feito.
Questão se repete na Osvaldo Aranha
Em corredores de ônibus nas avenidas Osvaldo Aranha, Protásio Alves e Saturnino de Brito, onde a calçada foi colocada na altura da rua, o problema se repete. O instrutor de informática Francis Guimarães, 24 anos, descobriu isso quando, sem a referência do degrau, foi parar no meio do corredor de ônibus.
– Quando me dei conta estava, às sete da noite, cheio de ônibus, no meio da Osvaldo. Não vou mais para lá. Está muito perigoso – conta Francis, que agora faz um trajeto mais longo para buscar a esposa na faculdade de Direito da UFRGS: desce do ônibus perto do Mercado Público e caminha mais de um quilômetro até a Rua Sarmento Leite.
Segundo a prefeitura, os corredores de ônibus receberão piso tátil e sinalização com botoeiras sonoras. O nivelamento contestado pelas entidades que representam pessoas com deficiência visual será mantido.
– A obra está em fase de conclusão. Vai ser colocado o piso tátil na região correta para melhorar a sinalização. Às vezes é melhor atender a um grupo maior: tem mais cadeirantes, idosos, obesos e pessoas com carrinhos de bebês do que cegos. Estamos buscando uma melhoria, mas é complicado de conseguir agradar a todo mundo – disse Alban.
Assista abaixo à saga de um cadeirante para sacar dinheiro em Porto Alegre:
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Prédios e comércio dificultam para cadeirantes
Se as ruas do Centro já são complicadas para cadeirantes, o mais problemático é o acesso aos estabelecimentos e prédios comerciais, na opinião do metroviário José Gabriel dos Reis Folador. No dia em que circulou com a reportagem, esbarrou em diversas situações em que suas opções variavam entre depender da boa vontade das pessoas ou fazer um caminho mais longo para conseguir acessar um local ou serviço.
– Aqui tem uma cerveja boa, mas também não tem acesso – apontou para o degrau na entrada de um bar, em um passeio pelo Mercado Público.
E a falta de acesso não fez distinção entre público e privado. Em frente à Estação Mercado, para chegar ao catamarã, o cadeirante precisa vencer dois lances de escada. A alternativa: ir até o estacionamento de veículos do Cais Mauá, por onde também é possível embarcar. No Mercado Público, é impossível ir ao banheiro com os elevadores interditados há mais de dois anos e escada rolante desativada – a alternativa é ir até o trensurb.
Nem mesmo serviços essenciais escapam à falta de condições. À esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua Riachuelo, um cadeirante mostrou como a escada da Farmácia Popular torna impossível ser atendido ali.
– Eles sempre me atendem aqui fora. O ruim é quando chove – relatou o homem enquanto aguardava pelos medicamentos.
Falta de acesso provoca segregação
Cadeirante há nove anos, Gabriel queixa-se pouco das más condições de circulação das vias em geral: desvia rapidamente dos buracos em calçadas e em pisos de pedra, como os da Praça da Matriz e ao redor da Estação Mercado. Com a cadeira manual, mostra habilidade ao subir e descer calçadas sem rampa de acesso – e são muitas. Segundo ele, a segregação provocada pela falta de acessibilidade é o que mais incomoda.
– Os estabelecimentos são o maior problema. Além de lidar com a própria deficiência, o cadeirante precisa lidar com a deficiência do local – diz.
Frequentador de bares da região central da Capital, o metroviário inverteu a lógica da boemia: em vez de ir nos lugares em que se interessa, vai onde é possível chegar. E, não raro, passa por situações surreais, como a vivida em um bar tradicional do Bom Fim:
– O acesso é só pela escada. Os funcionários dizem que, lá dentro, é tudo acessível. Mas como eu vou chegar até lá? Tem coisa que não dá para entender – relata.
* Colaborou Júlia Soares