* Cristina Bonorino é professora titular de Imunologia da PUCRS e pesquisadora 1c do CNPQ. Escreve mensalmente.
Daqui a 20 anos, leremos algum artigo que citará como curiosidade o fato de que, em 2015, ser homossexual era ilegal em 76 países, sendo que sete desses - na África e no Oriente Médio - puniam homossexuais com a morte. Em fevereiro do ano passado, o presidente de Uganda anunciou que assinaria uma lei antigay, uma vez que os cientistas não mostram ligação entre biologia e orientação sexual. Leis como essa entendem que, como não existe um gene para a homossexualidade, esta é uma escolha, portanto um comportamento que pode ser modificado - ao ser punido.
O editorial da revista Nature de 10 de junho mostra a resposta da Academia de Ciências da África do Sul, ao produzir um amplo estudo sobre sexualidade humana e implicações das suas conclusões para a legislação. O estudo destrói a mentira política de que leis antigay possuem qualquer base científica e mostra como tais leis dificultam o combate ao HIV e a outras doenças sexualmente transmissíveis. Toda a evidência genética gerada nos últimos 20 anos sobre o assunto foi compilada ali, e uma frase repetida constantemente no texto é a de que homossexualidade é apenas uma das características do espectro sexual.
Há 20 anos, acreditava-se que a sexualidade humana era binária - feminino ou masculino, determinado pelo par de cromossomos sexuais - dois cromossomos X sendo a fêmea, e um X e um Y, um macho. O programa genético seria gerar uma fêmea, a não ser que houvesse ativação dos genes do cromossoma Y, gerando então o macho. Essa ideia é hoje considerada simplista pelos biólogos, que, à medida que refinaram suas tecnologias de análise genética, encontraram algo muito mais complexo. A primeira evidência foi anatômica: crianças cujos órgãos sexuais diziam algo diferente dos cromossomos. Hoje sabemos que, até cinco semanas de gestação, o embrião pode desenvolver-se tanto como macho quanto como fêmea. Na sexta semana, a gônada que se desenvolver, testículo ou um ovário, secreta hormônios que a favorecem. Os hormônios sexuais influenciam características físicas além da genitália, como os pelos que surgem na puberdade. Um único gene, chamado SRY, é suficiente para desenvolver testículos, e indivíduos XX que possuam um pedacinho do Y contendo SRY desenvolvem-se como machos. Outro gene, WNT4, é fundamental para desenvolver ovários. Indivíduos XY com cópias extras de WNT4 desenvolvem-se como fêmeas.
Essas descobertas inauguraram uma nova era de compreensão do desenvolvimento sexual, em que diferenças genéticas sutis poderiam ter efeitos marcantes. Centenas de outros genes já foram descritos desde então, com nuanças de atividade que exercem profunda influência no desenvolvimento sexual, nem sempre com efeitos anatomicamente aparentes. Casos em que células XY são encontradas em mulheres XX; comportamento diferente de células XX e XY - a fronteira entre os dois sexos clássicos é cada vez menos definida, e muitas pessoas vivem décadas sem saber da sua constituição genética. Algumas só descobrem na idade adulta, muitas vezes em consultas médicas nada relacionadas a sexo ou sexualidade.
A ciência tem hoje uma visão menos dicotômica do sexo, mas a sociedade ainda não incorporou esse conhecimento. Em alguns países, as conquistas dos direitos de ativistas LGBT garantem proteção para homens e mulheres que cruzam essas barreiras tanto na aparência como na escolha do parceiro, mas na hora da definição do sexo do bebê, existe forte pressão para conformidade com o modelo binário. Hoje sabemos que por volta dos três anos a criança começa a comunicar a sua identidade de gênero; e que por volta dos nove anos expressa atração por meninos ou meninas. Não existe qualquer evidência de que isso seja aprendido ou influenciado pelo meio, ao contrário do que muitos pregam. Biologicamente, sexo é um espectro.
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O presidente de Uganda recebeu pilhas de evidências científicas - não as que ele queria. O editorial da Nature termina louvando a coragem dos cientistas africanos ao abordar um tema tão tenso naquele continente. Direitos civis só existem onde são apoiados pela maioria, onde o Estado os sustenta, nos disse o filósofo John Gray em sua conferência do Fronteiras do Pensamento, esta semana. Os editores da Nature sabem que seus leitores, nós, cientistas, já conhecemos os dados relatados no estudo, mas pedem que compartilhemos suas conclusões, pois muitas vezes o óbvio precisa ser reiterado constantemente para de fato servir como ferramenta transformadora da sociedade. Para que daqui a 20 anos as estatísticas citadas aqui sejam resquício de uma época em que muitos pensavam daquela maneira apenas por não conhecer completamente os fatos. Feito.
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