Dos juros do aluguel ao convívio com a vizinhança. De danos ambientais ao casamento. Do transporte de mercadorias à reprodução assistida. Todas as normas que regem a vida privada no país estão agrupadas no Código Civil Brasileiro, que está prestes a ser modificado pelo Congresso Nacional. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apresenta nesta segunda-feira (26) uma proposta de atualização da legislação, que passará pelo escrutínio de senadores e deputados.
Desconhecido da maior parte da população e apelidado entre juristas de "constituição do homem comum", o Código Civil consolida direitos e deveres de todos os brasileiros desde antes do nascimento até depois da morte, estabelecendo, por exemplo, critérios para a distribuição de herança e para a doação do corpo para estudos.
A versão atual do calhamaço legislativo tem 2.046 artigos e foi sancionada em 2002 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, após tramitar por 26 anos no Legislativo. A redação anterior datava de 1916.
Sentindo necessidade de atualizar o diploma, Pacheco criou no ano passado uma comissão de juristas para propor a revisão, que repartiu os trabalhos em nove subcomissões. Das discussões entre os grupos e de sugestões recebidas, surgiu o anteprojeto de reforma do código, que será divulgado nesta segunda.
Um dos principais objetivos do presidente do Senado é atualizar as normas à luz dos tempos atuais, em que as relações interpessoais e de consumo se deslocam cada vez mais para o ambiente digital.
A despeito da intenção de Pacheco, o assunto que tende a monopolizar os debates, caso seja incluído no texto, será a permissão para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha autorizado a união gay em 2011, essa previsão ainda não consta no texto da lei.
Em relatório parcial publicado no final do ano, uma das subcomissões de juristas propôs alterar o texto do artigo 1.514 do código, que diz que o casamento ocorre no momento em que "o homem e a mulher" manifestarem essa vontade ao juiz. A intenção seria substituir a expressão por "duas pessoas", abrangendo todos os cidadãos.
Outra novidade sugerida pelos especialistas foi a criação de uma seção específica para o direito digital, que estabelece uma série de princípios para o uso da internet, como a proteção de dados pessoais, o respeito à privacidade e a liberdade de expressão. Por outro lado, também estipula uma série de regras, como a punição de plataformas na qual forem distribuídos conteúdos que causem danos a terceiros.
Doutor em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor da mesma universidade e especialista em Direito Civil, o advogado Bruno Miragem avalia que as mudanças mais perceptíveis ocorrerão justamente nos temas relacionados ao direito digital, diante do avanço da tecnologia nas últimas décadas.
— Há questões como a celebração de contratos pela internet, requisitos para que esses atos sejam válidos e negócios envolvendo bens digitais. Por exemplo, se uma pessoa tem 1 milhão de seguidores e uma rede social e morre, aquilo que hoje é um ativo econômico importante fica sem destinação. A ideia é que a revisão possa contemplar essas questões — explica.
Miragem é presidente de uma comissão especial criada na seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS) para acompanhar a revisão do código. O grupo deverá apresentar sugestões ao texto e acompanhar a discussão no Senado e na Câmara Federal.
A juíza de direito Clarissa Costa de Lima prevê alterações relevantes na área do direito de família, contemplando temas como a multiparentalidade (quando há mais de um vínculo materno ou paterno) e a multiconjugalidade (quando o indivíduo estabelece vínculos com mais de uma pessoa).
Em uma das audiências públicas organizadas para discutir a revisão, a magistrada apresentou uma sugestão para a revisão: limitar o direito de um credor romper o contrato por inadimplência nos casos em que o devedor já cumpriu a maior parte do acordo ou já honrou a maior parte do débito.
— Em alguns casos é demasiado forte o rompimento do contrato. Por exemplo, se o devedor já pagou 90% do que era devido. A ideia é limitar esse direito de desfazer o contrato e dar oportunidade para que o devedor que, de boa-fé, esteja sujeito a um motivo excepcional ou imprevisto, regularize a situação — explica Clarissa, diretora da Escola da Magistratura da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris).
Após a apresentação do texto, nesta segunda-feira, o conteúdo começará a tramitar no Senado na forma de projeto de lei e poderá receber emendas. Ainda não há previsão de quando irá à votação. Se aprovado, o texto ainda precisará passar pela Câmara dos Deputados e pela sanção do presidente da República.
O que pode mudar
Alguns itens que constam em relatórios parciais da comissão de juristas nomeada por Rodrigo Pacheco e que devem aparecer no projeto de revisão do Código Civil:
- Casamento entre pessoas do mesmo sexo: hoje, Código Civil diz que o casamento se realiza "no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal". Tendência é de que o trecho que especifica gêneros seja alterado para "duas pessoas".
- Direitos dos animais: relatório parcial sugere que redação passe a considerar os animais "seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica". Prevê ainda que a relação entre pessoas e animais pode ensejar disputa pela tutela dos bichos e pedidos de indenização em caso de malefícios aos animais.
- Regras para o ambiente digital: uma seção específica deve abordar direitos e deveres dos cidadãos na internet, além regular atividades no meio eletrônico, como celebração de contratos e a utilização de aplicativos. Foram sugeridas regras para grandes plataformas, como redes sociais, em que está incluída a responsabilidade por mitigar a circulação conteúdos ilícitos.
- Heranças: texto passaria a permitir que cônjuges ou companheiros renunciem à herança deixada em caso de morte do marido ou esposa. Hoje, há diferentes interpretações sobre o tema na Justiça. Em outro trecho, texto prevê que o patrimônio digital passe a íntegra a herança de pessoas falecidas.
- Testemunhas: texto atual do Código Civil proíbe que crianças e adolescentes menores de 16 anos sejam admitidos como testemunhas em processos. Sugestão é de que esse dispositivo seja revogado, com a condição de que o testemunho deve ser dado em depoimento especial. Previsão já consta no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).