O plano de recuperação econômica do Brasil foi o eixo central dos primeiros cem dias do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a serem completados nesta segunda-feira (10). O novo arcabouço fiscal e a concepção da reforma tributária puseram o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no posto de principal auxiliar da equipe de Lula para alcançar as promessas de campanha de recuperar os investimentos públicos, combater a pobreza e retomar um ciclo de desenvolvimento.
O período inicial do mandato também foi marcado pelo embate com o Banco Central (BC) sobre a taxa de juro, o relançamento de programas sociais das gestões petistas, as dificuldades em costurar uma base confiável no Congresso e os atos golpistas do dia 8 de janeiro.
— É no campo da economia que se trava a grande batalha. Ali reside a esperança de popularidade do presidente. E foi onde surgiram as propostas mais sedutoras na campanha, de picanha e cerveja para todos. Lula tem demonstrado certa impaciência com o rumo do crescimento econômico. Ele mesmo acha que se fez menos do que deveria — diz o comentarista político e ex-deputado Fernando Gabeira.
Caixa
O cálculo inicial era de que a União teria rombo de cerca de R$ 230 bilhões em 2023 – o que foi revisado recentemente para R$ 107,6 bilhões. Ainda nos primeiros dias, Haddad anunciou medidas que previam corte de despesa de R$ 50 bilhões. Para aliviar o caixa, de R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões deverão vir de aumento da receita, com a tributação de atividades hoje desregulamentadas e que não recolhem ao Tesouro, como as apostas esportivas e o e-commerce, sobretudo em relação a gigantes chinesas do setor. Para 2024, a Fazenda manifestou o compromisso de zerar o déficit nas contas da União.
Outra obsessão do governo é substituir o teto de gastos, que limita o crescimento das despesas à correção pelo IPCA, indicador oficial da inflação. A premissa do lulismo é de que esse modelo engessa os investimentos públicos, prejudicando a indução ao desenvolvimento e as parcelas mais pobres da população.
Embates
Haddad apresentou como alternativa o novo arcabouço fiscal, que deverá ser enviado ao Congresso. Pela regra, o governo poderá ampliar seus gastos de acordo com o crescimento da receita. Para cada R$ 100 adicionais que entrarem em caixa, a União poderá aplicar R$ 70 em aumento de despesas. Embora careça de detalhamento, a medida sinalizou a intenção de Haddad de observar o equilíbrio das contas públicas. Isso levou o mercado financeiro a receber a proposta com bons olhos, enquanto setores da esquerda e do PT, ligados ao desenvolvimentismo, torceram o nariz, tecendo críticas a Haddad.
Ainda na economia, Lula chamou para si os embates com o presidente do BC, Roberto Campos Neto, pelas decisões recentes da instituição de manter a taxa de juro em 13,75%. Para o governo, o indicador é injustificadamente elevado, irá restringir o crédito e travar a retomada.
– Na economia, o que fica é a incapacidade do governo de lidar com a herança institucional que recebeu, principalmente quanto à autonomia do BC. A política monetária é quase tudo, e isso impacta na estratégia do governo de reindustrialização, que não vai acontecer nos marcos atuais impostos pelo BC. Está sendo instalada uma crise de crédito que pode levar o governo ao ocaso – avalia Elias Khalil Jabbour, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisa
Para ele, Lula acertou ao tensionar publicamente com o BC sobre o assunto – pesquisa Datafolha do início de abril mostrou que 80% dos entrevistados avaliam que o presidente age corretamente ao pressionar pela queda. Jabbour entende que a atual taxa de juro serve apenas aos “rentistas” e defende Haddad das críticas da esquerda, apontando que é necessário considerar o ambiente político de divisão e de força da direita que emergiu das urnas em 2022. Para o professor, planos econômicos fiéis exclusivamente aos princípios da esquerda desenvolvimentista poderiam levar o governo Lula ao colapso político.
Na economia, o que fica é a incapacidade do governo de lidar com a herança institucional que recebeu, principalmente quanto à autonomia do BC. A política monetária é quase tudo, e isso impacta na estratégia do governo de reindustrialização, que não vai acontecer nos marcos atuais impostos pelo BC.
ELIAS KHALIL JABBOUR
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– O novo arcabouço fiscal reflete a correlação de forças da sociedade e o governo de frente ampla. Transformar Haddad em espantalho é injusto. Temos de analisar à luz do que ocorreu nos seis últimos anos. O que ele propõe é não aumentar imposto. E colocar a pagar quem não o faz. É uma estratégia para driblar os limites colocados pelo próprio arcabouço fiscal – diz Jabbour, salientando que países ricos tributam lucros, dividendos, fortunas e itens como helicópteros e lanchas.
O cientista político Luiz Felipe d’Avila, candidato do Novo à Presidência da República em 2022, afirma que os primeiros cem dias de Lula foram de “retrocesso”.
Ele salienta que, do rombo original de mais de R$ 200 bilhões, apenas um quarto tem previsão de ser compensado com corte e otimização de gastos. D’Ávila entende que os investimentos mínimos constitucionais, determinados para setores como saúde e educação, deveriam ser revistos.
— Falta controlar a despesa, rever subsídios e mexer nos gastos obrigatórios. Quase 90% do orçamento brasileiro é gasto obrigatório. É um absurdo e isso só cresce. Exemplo: gastamos quase 6% do PIB (Produto Interno Bruto) em educação, acima dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mas temos um dos piores ensinos. Acaba sendo para sustentar a máquina. A eficiência do gasto dos hospitais geridos pela iniciativa privada é melhor do que dos unicamente estatais – afirma D’Ávila.
Para o cientista político, o arcabouço fiscal elaborado por Haddad está fadado ao fracasso e traz ameaças embutidas.
— É uma fórmula que depende muito do crescimento da arrecadação, em um país que não pode mais aumentar impostos, já estamos no topo. Dizer que vai conseguir R$ 150 bilhões taxando jogo eletrônico e bugiganga chinesa é brincadeira. O que vamos ter é o risco de aumento de imposto — avalia d’Ávila.
Simplificação
Embora reticente, ele comenta que o governo federal será merecedor de “aplausos” se conseguir aprovar uma reforma tributária que simplifique o modelo brasileiro.
— O problema é colocar em votação e começar a ceder a pressões setoriais. Tenho receio de que não saia o Imposto do Valor Agregado (IVA). Precisamos de simplificação e alinhamento da legislação tributária com as regras internacionais. O investidor que vem ao Brasil quer saber as regras. Hoje, temos um manicômio tributário em que tudo acaba em judicialização. Se mudanças vierem a se confirmar, será importante – ressalta D’Ávila.
Retomada de iniciativas de mandatos anteriores
Programas sociais que foram modificados ou enxugados no governo do então presidente Jair Bolsonaro constaram entre as principais apostas do governo Lula para construir agenda positiva e alavancar os investimentos públicos. Na prática, foram relançamentos de políticas dos governos petistas implementadas entre 2003 e 2016.
A principal aposta foi a volta do Bolsa Família no valor de R$ 600 (no governo Bolsonaro se chamou Auxílio Brasil), turbinado com valores adicionais por criança e jovem de cada grupo beneficiário. Alavancar o Bolsa Família foi possível após a aprovação da PEC da Transição, ainda em dezembro de 2022, com a permissão para efetivar gastos sociais fora do teto. A medida é parte da estratégia de Lula de aquecer o consumo popular.
Ainda foram retomados o Minha Casa, Minha Vida, o Mais Médicos e o próximo deverá ser o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), voltado ao setor de infraestrutura, mas com novo nome.
Para Luiz Felipe d’Ávila, o recado dos relançamentos é negativo, sobretudo do PAC. O cientista político e ex-candidato avalia que o programa de obras foi um “desastre”, “símbolo de “escândalos” e de “dinheiro mal gasto”.
— Deveríamos estar focando em energias renováveis. Além disso, estamos com excedente de gás e poderíamos estar preparando para exportar. Tudo é pautado pela questão política e isso é ruim — avalia d’Ávila.
Para Elias Khalil Jabbour, a retomada é positiva porque “são programas de renome internacional”. Ele avalia que o Mais Médicos tem capacidade de levar atendimento de saúde e salvar vidas nos grotões.
Henrique Fontana, ex-deputado federal pelo PT-RS e ex-líder de Lula e de Dilma Rousseff na Câmara, celebra a aprovação da PEC da Transição antes da posse, que liberou um “padrão mínimo de investimento” em 2023.
— Seja PAC ou não o nome, um grande programa de investimentos públicos e obras de infraestrutura é extremamente necessário. Em primeiro lugar, porque o Brasil tem defasagem importante em infraestrutura. Em segundo, porque o país ainda vive momento de baixa atividade econômica. Temos de gerar mais empregos e isso vai ser uma obsessão — diz Fontana, hoje secretário-geral do PT.
Congresso
Embora tenha conseguido articular a votação da PEC da Transição ainda na composição anterior do Congresso, é fato que Lula enfrenta dificuldades para construir uma base sólida de apoio. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já deu recados públicos de que, atualmente, o governo não dispõe dos votos suficientes para aprovar reformas no Legislativo.
Sem as rédeas do Congresso, o Palácio do Planalto vê Lira buscar uma mudança constitucional na tramitação das medidas provisórias (MPs), dando mais poder à Câmara em detrimento do Senado. É um impasse que se arrasta e ameaça levar à caducidade de algumas MPs importantes já editadas pelo governo Lula, como a da composição ministerial e a de programas sociais.
As medidas têm força de lei quando assinadas pelo presidente da República, mas a vigência é de 60 dias, prorrogáveis por igual período. Depois disso, perdem a validade se não forem aprovadas pelo Congresso.
Relações internacionais voltam a ter protagonismo
Lula fez campanha prometendo reforçar as relações diplomáticas do Brasil com o mundo, o que os críticos entendiam estar adormecido sob Bolsonaro. Em novembro passado, ainda como presidente eleito, ele esteve na 27ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP27, no Egito. Lá, ergueu outro alicerce: assumiu compromissos com a pauta ambiental e a proteção da Amazônia.
Antes de retornar ao Brasil, fez visita ao presidente e ao primeiro-ministro de Portugal. Já no poder, esteve com Joe Biden nos EUA, reuniu o Mercosul ao encontrar-se com os líderes argentino, Alberto Fernández, e uruguaio, Luis Lacalle Pou. Recebeu o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz e, nos próximos dias, irá embarcar para a China, com a hipótese de emendar agendas oficiais em outras nações no caminho de volta.
Com as milhas, Lula buscou estreitar laços junto aos principais parceiros comerciais, potências do globo e vizinhos estratégicos.
— O rompimento do isolamento começou antes da posse, com a ida de Lula ao Egito. Ali, ele decidiu mudar a política ambiental do Brasil, cujos resultados ainda não apareceram. Os índices de desmatamento em fevereiro foram pouco superiores a 300 quilômetros quadrados, o que é um recorde para o mês. Isso mostra que ainda não engrenou o trabalho da Marina (Silva, ministra do Meio Ambiente), que tem como objetivo reduzir o desmatamento, algo que ela e o governo conseguiram fazer entre 2004 e 2012 — diz Fernando Gabeira.
Ele avalia os movimentos como positivos para restabelecer vínculos do Brasil que estavam “amortecidos ou congelados”. E destaca que a retomada abriu caminho para a volta do Fundo Amazônia, considerado “solução parcial” para a proteção da floresta, com financiamento da Alemanha e da Noruega. Os EUA prometeram contribuir para a iniciativa, mas até agora isso não avançou.
Golpismo
Outro fato marcante dos cem dias foi a tentativa de golpe de grupos bolsonaristas em 8 de janeiro, com a invasão e depredação da sede dos Três Poderes. A ofensiva afetou a largada do governo por demandar atenções, esforços, investimentos e até intervenção na segurança do Distrito Federal. Mas, Lula capitalizou o episódio ao reunir em torno da defesa da democracia todos os governadores e poderes constituídos.
No limiar entre a pauta ambiental e dos direitos humanos, Lula também obteve destaque ao decretar emergência de saúde e visitar a terra indígena Yanomami. Em cenário de desnutrição, doenças e ameaças pelo garimpo, o atual presidente demarcou diferença em relação ao antecessor por determinar socorro ao povo originário.
Creio que cem dias é um marco muito curto para avaliar um governo de quatro anos. É preciso muita má vontade militante para dizer que não deu certo. E muito boa vontade militante para dizer que deu certo. O jogo está por ser jogado
FERNANDO GABEIRA
Comentarista político e ex-deputado
Moro
Por outro lado, houve declarações polêmicas, como a de que o senador Sergio Moro (União-PR) teria feito “armação” no caso da operação da Polícia Federal que prendeu membros de facção criminosa que planejavam executar o ex-juiz e outras autoridades. Em vez de capitalizar o fato de a PF, sob o seu governo, ter neutralizado um atentado contra um adversário político, Lula enrolou-se em uma contenda política que deu mais holofotes a Moro, o ex-juiz da LavaJato que o condenou por acusação de corrupção em julho de 2017.
— Lula, em vez de rever suas premissas, parece ter resolvido voltar para se vingar daqueles que acredita terem sido culpados pela situação que passou. Ele foi o maior responsável, claramente não superou o que aconteceu e não fez a devida autocrítica — afirma o cientista político e ex-deputado estadual Fábio Ostermann (Novo-RS).
Ostermann avalia que Lula deixou para trás, em curto prazo, a promessa de governar pela pacificação do Brasil:
— Ele abandonou o discurso do centro democrático. É um governo sem rumo, às vezes pautado por visão revanchista. Percebemos isso pela indicação da Dilma para presidir o banco dos Brics.
A crítica é de que a indicação não teve critério de qualificação, e serviu como desagravo a Dilma, apeada do poder em 2016 em processo de impeachment. O cumprimento da promessa de campanha de revogar os decretos de Bolsonaro que facilitavam a posse, o porte e a compra de armas de fogo também ganhou holofotes.
— Creio que cem dias é um marco muito curto para avaliar um governo de quatro anos. É preciso muita má vontade militante para dizer que não deu certo. E muito boa vontade militante para dizer que deu certo. O jogo está por ser jogado — pondera Gabeira.