Com previsão de serem creditados ainda nesta semana, antes da vedação eleitoral, que ocorre a partir de 2 de julho, os R$ 176,9 milhões em transferências especiais – também chamadas de emendas Pix, ou Pix orçamentário – chegarão a 397 dos 497 municípios do RS em 2022. Em ano de eleições, o montante, usado por 29 dos 34 parlamentares do Estado, supera em 132% os R$ 76,3 milhões de 2021 e em 662% os R$ 23,2 milhões liberados em 2020, conforme levantamento do Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop), feito a pedido de GZH.
Criada em 2019, pela emenda constitucional 105, essa modalidade é uma nova maneira de distribuição de recursos do orçamento federal. Menos conhecida do que as emendas de relator (o orçamento secreto), mas também considerada pouco transparente e de difícil fiscalização, essa alternativa está no centro das polêmicas que envolvem a contratação de shows sertanejos com cachês milionários em municípios brasileiros com população inferior a 50 mil habitantes, por exemplo.
O processo funciona da seguinte maneira. Metade das emendas individuais a que os parlamentares federais têm direito anualmente (R$ 17,6 milhões, em 2022) pode ser destinada via Pix orçamentário. Segundo o diretor do Inop, Renato Melo, a diferença é que a transferência especial é instantânea e faz com que a etapa do recurso em conta seja imediatamente creditada aos municípios, sem necessidade de projetos, análise ou vinculação prévia aos ritos tradicionais de aferição de políticas púbicas.
– É como se o governo federal se transformasse em um banco, que faz a transferência às prefeituras ou aos governos estaduais que, por sua vez, utilizam esses recursos conforme a decisão do gestor, sem seguir programas ou diretrizes de apresentação de projetos – resume Melo.
Constitucionalmente, 50% do montante das emendas individuais deve ser empregado na saúde. A outra metade pode ser 100% usada nas transferências especiais, basta que o deputado ou senador assim o deseje.
Outra distinção é que o dinheiro depositado deve carimbar se será para “investimento” ou “custeio”. Na primeira opção, necessariamente, terá de ser convertido em patrimônio, ou seja, vai financiar asfaltos, praças, compras de veículos, reformas ou algo que seja permanente. Já no segundo caso, cobrirá as chamadas despesas correntes. É neste ponto que se enquadram as contratações de shows e eventos.
– Existe um limbo: quem fiscaliza? A União? Porque o recurso é federal. Os municípios? Porque recebem. Os tribunais de contas locais ou Ministério Público? Ou seja, quando dizemos que não tem fiscalização ou controle é porque não sabemos isso, não se pode afirmar que alguém utilizou de maneira incorreta, mas o nosso papel é cobrar. Então, o Pix orçamentário sofre desse problema com a transparência – explica o diretor do Inop.
Dúvidas
Integrante de uma rede de pessoas que estuda a pauta orçamentária no país, o professor de Administração Pública da UFRGS Diogo Demarco acrescenta que o regime de governança nacional vem sofrendo com sucessivas instabilidades. Nos últimos anos, relembra, isso tem gerado muitos impactos por conta de questões que foram definidas e que ainda vão trazer efeitos, caso das emendas constitucionais 95/2016 (do teto de gastos), 105/2019 (das transferências especiais), 86/2015 (emendas impositivas) e 100/2016 (emendas impositivas de bancada).
Para Demarco, há muitas questões sobre a tramitação desse tipo de recurso:
– Há muitas dúvidas de como operacionalizar o processo. Lamentavelmente, é importante que surjam e que venham à tona situações como a que presenciamos (das contratações de shows milionários em pequenas cidades). De fato, temos muitos questionamentos e poucas respostas – constata.
“Beneficia quem está no poder”
Em se tratando de um ano eleitoral (2022 será o primeiro a conviver com o advento das emendas Pix), o doutor e docente do Programa de Pós-Graduação em Economia do Desenvolvimento da PUCRS Adalmir Marquetti alerta que o orçamento público deveria ser pensado como fator determinante para o processo de crescimento do país. Ele afirma que, no caso das emendas Pix, existe “perversão da política fiscal”, que é controlada pelo setor público, mas em benefício único dos agentes já detentores de mandato, sejam eles prefeitos, governadores, deputados ou senadores.
– Com as emendas secretas e Pix, o orçamento público é usado para ter controle do Congresso e, em ano de eleição, tem o objetivo de reeleger os parlamentares com mandato, beneficiando sempre quem já está no poder, independentemente de quem esteja – adverte.
O professor da UFRGS Diogo Demarco salienta que, além de afetarem o planejamento público e fragilizarem os mecanismos de transparência e de controle social, as transferências especiais ampliam a “desigualdade na disputa dentro do sistema eleitoral”.
Ele recorda que um deputado, que possui em média R$ 17 milhões em recursos para destinar para suas bases eleitorais, teria, pelo menos, R$ 65 milhões ao longo de um mandato. Desde 2020, metade disso podendo ser destinada via Pix orçamentário.
– É muito desigual com alguém que pretenda se lançar defendendo uma parcela da sociedade e da democracia. Quem já está (no cargo) tem muito mais condições de permanecer e, com isso, ocorre algo negativo para a democracia que é a ausência de alternância no poder – pontua Demarco.