Uma nova forma de parlamentares distribuírem recursos do orçamento federal, criada há apenas dois anos e considerada pouco transparente e de difícil fiscalização, está abocanhando uma fatia cada vez mais graúda do dinheiro público.
Menos conhecidas do que as emendas de relator, mas igualmente polêmicas, as chamadas transferências especiais deverão despejar R$ 161,9 milhões em municípios gaúchos em 2022 – um salto de aproximadamente 600% em comparação a 2020, primeiro ano de vigência desse instrumento, e bastante superior ao crescimento nacional de 428% verificado no mesmo período.
Essa disparada gera alarme entre especialistas em finanças públicas pelo fato de que o dinheiro cai na conta de prefeituras e governos estaduais sem vinculação a qualquer obra ou projeto específicos, o que dificulta o acompanhamento dos gastos e a fiscalização de órgãos de controle como o Tribunal de Contas da União (TCU). Na prática, atualmente, não há vigilância efetiva.
Quando a União repassa parte dos impostos dos brasileiros a uma prefeitura ou a um Estado, o recurso costuma estar atrelado a um projeto específico. É como a placa exposta em qualquer obra pública: ali consta a fonte da verba, para que fim será usada, as datas de início e de previsão de término dos trabalhos. Isso permite às entidades de fiscalização e a qualquer pessoa acompanhar a aplicação do dinheiro e o andamento do serviço até o fim. No caso das transferências especiais, é como se a placa fosse arrancada.
A partir da emenda constitucional 105/2019, a cada ano todo parlamentar federal tem direito de oferecer até metade do valor de suas emendas individuais a prefeituras ou a governos estaduais sem o carimbo de um projeto específico. Para 2022, isso representa R$ 8,8 milhões potencialmente livres em um total de R$ 17,6 milhões por legislador – a outra metade deve obrigatoriamente ser aplicada na saúde.
O gestor que recebe o dinheiro desvinculado pode usá-lo como bem entender, quando quiser, desde que seja para finalidades próprias do Executivo, pelo menos 70% sejam aplicados em investimentos e não o utilize para pagar dívidas ou salários. Além disso, como é uma emenda impositiva, sua aplicação é obrigatória, e os reais caem direto na conta do beneficiado sem precisar passar por análise prévia. Por essa rapidez e facilidade, recebeu os apelidos de “emenda Pix” e “Pix orçamentário”.
— Quando se trata de uma transferência definida, com destinação específica, só se pode começar uma obra, por exemplo, depois do projeto aprovado e de toda a legislação atendida. Há um controle prévio, contínuo e eficaz. No caso do "Pix orçamentário", isso não existe. É um recurso de fácil entrega, difícil fiscalização e de nenhuma transparência — afirma Renatho Melo, diretor do Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop), consultoria sediada em Brasília que realizou uma análise das transferências desse tipo para o Rio Grande do Sul a pedido de GZH.
Ou seja, não é preciso atender aos requisitos de uma entidade financiadora, como a Caixa, para abastecer o cofre. O dinheiro está pronto para uso assim que entra na conta e não há, no site do Ministério da Economia ou nas páginas de transparência de Estados e municípios, como acompanhar sua aplicação. O gestor pode informar, se quiser, o destino da transferência em uma aba de prestação de contas no sistema informatizado do orçamento. O problema é que pode dizer o que quiser, sem comprovar, ou simplesmente deixar o campo em branco.
Conforme o estudo do Inop, a quantidade de prefeituras gaúchas beneficiadas por esse mecanismo saltou de 87 para 230 entre 2020 e 2021 (nenhuma emenda favoreceu a gestão estadual). Ainda não se sabe o número a ser atendido em 2022 porque os nomes dos beneficiados só são definidos em um segundo momento. O universo de parlamentares que aderiram à nova modalidade de distribuir dinheiro também explodiu: passou de oito no primeiro ano de vigência para 19 no segundo e, na atual previsão orçamentária, inclui 27 dos 34 representantes federais gaúchos.
— A adesão vem disparando em razão da liquidez dessa verba. O parlamentar quer que o recurso chegue rapidamente a quem ele prometeu, principalmente se levarmos em conta que o ano que vem será eleitoral — afirma Melo.
Especialistas criticam risco de desvios e de uso político do orçamento
O recurso remetido a prefeitos e governadores por meio das transferências especiais pode atender a uma demanda emergencial verdadeira. Mas, na avaliação de especialistas em finanças públicas, também pode ser usado como moeda de troca por apoio político, favorecer a reeleição de parlamentares que concedem as emendas ou dos gestores que as recebem em razão da falta de critérios para uso. Os obstáculos à fiscalização representam ainda um risco adicional de corrupção.
Em análises que fizemos em outros Estados, já identificamos muitos casos de parlamentares que mandam dinheiro para parentes que são prefeitos
RENATHO MELO
Diretor do Inop
Para o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), Roberto Livianu, embora a divisão do orçamento federal por esse mecanismo esteja amparada pela atual legislação por meio de emenda constitucional, acaba deturpando princípios democráticos básicos.
— São os detentores do poder usando esse poder em seu próprio benefício, contrariando o princípio constitucional do interesse público. Se respeitassem esses princípios, haveria total transparência. As cartas deveriam estar todas sobre a mesa, e não embaixo dela — analisa Livianu.
Esse descontrole já pôs o TCU em alerta. No começo de dezembro, o ministro Raimundo Carreiro atendeu a um pedido do deputado Vinicius Poit (Novo-SP), que havia solicitado apuração de transferências especiais a 1.325 entes federativos, e assinou um despacho para que a Corte passe a monitorar os repasses via "Pix orçamentário".
— Em análises que fizemos em outros Estados, já identificamos muitos casos de parlamentares que mandam dinheiro para parentes que são prefeitos — revela o diretor do Inop, Renatho Melo.
Além de abrir a possibilidade de monitoramento, que ainda não se confirmou, o ministro do TCU determinou a formação de um painel de especialistas no tema para discutir meios de ampliar o controle público sobre esse novo mecanismo de apropriação do dinheiro oriundo dos impostos pagos pela população.
Transferências especiais devem somar R$ 3,28 bilhões no país em 2022
O volume de dinheiro da União injetado nas prefeituras por meio de transferências sem carimbo cresce em ritmo acelerado no Rio Grande do Sul, mas o fenômeno não é exclusividade gaúcha. Em todo o país, o chamado “Pix orçamentário” deverá somar R$ 3,28 bilhões – mais de cinco vezes o montante observado em 2020, quando essa ferramenta começou a ser utilizada.
Essa cifra poderia ser ainda maior em razão de um projeto aprovado pelo Congresso de estender às transferências especiais às emendas de bancada. Como o assunto está sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF), acabou não entrando no orçamento atual, mas poderá inflar ainda mais os gastos livres no futuro.
O pano de fundo desse fenômeno é o esforço do Congresso para gerir uma fatia cada vez maior do orçamento nacional. Atualmente, os parlamentares federais já controlam metade das verbas destinadas a investimentos: as emendas saltaram de R$ 3,3 bilhões em 2015 para 26,5 bilhões em 2021, o equivalente a 53% do dinheiro público disponível para investir no país.
O problema é que o parlamento está querendo governar o país sem ter a responsabilidade por isso. Quer apenas o bônus, sem qualquer ônus
DARCY FRANCISCO CARVALHO DOS SANTOS
Especialista em finanças públicas
— Eu concordo que é preciso agilizar os repasses a municípios e Estados, mas repassar dinheiro sem destinação específica é um absurdo. O problema é que o parlamento está querendo governar o país sem ter a responsabilidade por isso. Quer apenas o bônus, sem qualquer ônus — analisa o especialista em finanças públicas Darcy Francisco Carvalho dos Santos.
Em entrevista recente ao jornal Estado de S.Paulo sobre esse tema, o deputado federal e presidente do MDB Baleia Rossi argumentou que os repasses via emendas parlamentares ajudam as bases eleitorais dos políticos e permitem a realização de inúmeras ações em setores como a saúde. Mas reconhece que a falta de transparência em parte desses repasses, como o chamado orçamento secreto (em que não se divulga o autor do repasse, enquanto na transferência especial não se sabe o destino dela), “cria uma série de distorções ruins para a democracia”.
— A administração pública não pode contar com a sorte de que ninguém vá fazer mau uso do dinheiro. É preciso garantir isso por meio de controle — resume Santos.