A aprovação pela Câmara dos Deputados de um projeto de lei que flexibiliza a liberação de novos agrotóxicos no país reacendeu a discussão sobre o impacto do uso de produtos químicos na produção de alimentos e nos ganhos de competitividade das lavouras. Há 20 anos tramitando no Congresso, o PL 6299/02 foi votado em regime de urgência na noite de quarta-feira (9), numa manobra que surpreendeu boa parte do plenário.
Ao cabo das discussões, o texto foi aprovado por 301 votos a favor e 150 contrários. Na bancada gaúcha, foram 19 votos favoráveis, nove contra e três ausências (veja abaixo).
Com 52 páginas, o texto submetido aos deputados e agora remetido ao Senado tem como mudança central a concentração de poder para liberação de agrotóxicos no Ministério da Agricultura. A medida esvazia competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Atualmente, o registro de cada nova substância precisa de aval dos três órgãos, ficando a Anvisa responsável pelo estudo do impacto na saúde pública e o Ibama, no meio ambiente. Ao ministério, cabe verificar a eficiência e o potencial de uso. Pelas novas regras, Anvisa e Ibama passam a apenas avaliar e homologar decisões do ministério, sem poder de veto.
O projeto também limita o tempo para análise dos pedidos de registro a no máximo dois anos. Há também a criação do registro temporário, a ser concedido em até 30 dias para substâncias novas destinadas a pesquisa e experimentação ou até mesmo quando o pedido não tiver obtido resposta dentro do prazo. Para tanto, basta o agrotóxico já ser liberado em ao menos três países integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Uma das principais justificativas para as mudanças na legislação é a suposta letargia dos órgãos públicos na liberação de produtos necessários para o Brasil seguir competindo com outras potências agrícolas internacionais. Somente nos últimos três anos, porém, já foi autorizado o emprego de 1.552 novos pesticidas. Há no mercado nacional, hoje, 3.477 agrotóxicos, 44% deles aprovados no governo Jair Bolsonaro.
A bancada ruralista e entidades vinculadas ao agronegócio comemoram a aprovação do projeto, apresentado em 2002 pelo então senador Blairo Maggi, à época sem partido e que depois seria ministro da Agricultura do presidente Michel Temer. Para a CropLife Brasil, associação que reúne especialistas, instituições e empresas que atuam na pesquisa e no desenvolvimento de mudas, sementes, defensivos químicos e produtos biológicos, trata-se de uma modernização que acompanha a evolução da ciência nas últimas três décadas.
“A legislação atual não atende mais às necessidades técnicas de avaliação dos produtos e a alteração da lei se faz necessária para dar aos agricultores a mesma oferta de produtos inovadores que seus concorrentes já empregam na proteção de lavouras. Além de adicionar critérios de segurança, irá colocar o Brasil em posição de igualdade com as práticas já adotadas em países onde a agricultura é importante na economia, a exemplo dos Estados Unidos, Canadá e Austrália”, disse a entidade, em nota.
Em contrapartida, ambientalistas e organizações de defesa do meio ambiente classificam como retrocesso a adoção de regras consideradas muito permissivas. O Observatório do Clima, coalizão de 56 entidades de defesa ambiental, aponta como grave, por exemplo, a retirada da lei atual da proibição ao uso de produtos cancerígenos.
Para nós, o pior é o sumiço da vedação a substâncias teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas. Ou seja, o Ministério da Agricultura agora pode achar aceitável liberar o uso de produtos que causam câncer
SUELY ARAÚJO
Especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama no governo Temer
— Para nós, o pior é o sumiço da vedação a substâncias teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas. Ou seja, o Ministério da Agricultura agora pode achar aceitável liberar o uso de produtos que causam câncer. A título de uma suposta modernização, fala-se no texto que a liberação vai levar em conta análise de riscos “políticos, econômicos, sociais e regulatórios, bem como os efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente”, mas não fica claro como vão fazer isso. É um cheque em branco — afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama no governo Temer.
Chamado de “PL do Veneno” por ambientalistas, o projeto também altera a denominação das substâncias, que deixariam de ser chamadas de agrotóxicos e passariam a ser definidas como “pesticidas”. Como o texto original foi alterado pelos deputados, deve retornar ao Senado para nova apreciação, com votação prevista para ocorrer até o final do semestre.
No Rio Grande do Sul, as mudanças são acompanhadas de perto pela Federação da Agricultura (Farsul). Embora evite se manifestar sobre projetos de lei que ainda não tiveram a tramitação concluída, a entidade ressalta o ganho de agilidade para o agronegócio quando o governo passa a adotar o modelo americano de regulação, que considera a análise de risco, ante o modelo europeu, baseado na precaução. Para o vice-presidente da Farsul, Domingos Velho Lopes, a manutenção no processo de órgãos como a Anvisa e o Ibama asseguram a credibilidade dos estudos.
Lopes cita ainda que as principais culturas do Estado, como soja e arroz, não devem ter ganho imediato de produtividade, mas a garantia de produção alinhada com os mais modernos avanços tecnológicos.
As novas moléculas são muito mais eficazes, exigem um volume menor de doses e são mais seletivas, causando menos danos. Isso nos mantém num patamar de modernidade tecnológica que assegura os altos índices de produtividade
DOMINGOS VELHO LOPES
Vice-presidente da Farsul
— As novas moléculas são muito mais eficazes, exigem um volume menor de doses e são mais seletivas, causando menos danos. Isso nos mantém num patamar de modernidade tecnológica que assegura os altos índices de produtividade — comenta.
À frente do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande Sul, entidade com 17 mil sócios, entre eles profissionais diretamente envolvidos na aplicação cotidiana de agrotóxicos, como engenheiros agrônomos e florestais, Cezar Henrique Ferreira diz que a flexibilização aumenta os riscos à saúde e ao meio ambiente. Sem fazer oposição frontal à iniciativa, Ferreira sustenta que medidas que amplificam o uso de pesticidas devem ser acompanhadas de ações que possam mitigar os riscos e fornecer alternativas ao consumidor.
— É legítimo querer ganhos de produtividade, mas, à medida que se facilita o registro de produtos que podem afetar a saúde, seria importante termos incentivo à produção ecológica e orgânica. Também considero fundamental o aumento da fiscalização no uso dessas substâncias e uma assistência técnica qualificada no momento da aplicação nas propriedades — salienta Ferreira.
A votação na bancada gaúcha
A favor
- Afonso Hamm (PP)
- Alceu Moreira (MDB)
- Bibo Nunes (PSL)
- Carlos Gomes (Republicanos)
- Covatti Filho (PP)
- Giovani Cherini (PL)
- Giovani Feltes (MDB)
- Jerônimo Goergen (PP)
- Liziane Bayer (PSB)
- Lucas Redecker (PSDB)
- Marcel van Hattem (Novo)
- Marcelo Brum (PSL)
- Marcelo Moraes (PTB)
- Márcio Biolchi (MDB)
- Marlon Santos (PDT)
- Maurício Dziedricki (PTB)
- Nereu Crispim (PSL)
- Osmar Terra (MDB)
- Sanderson (PSL)
Contra
- Afonso Motta (PDT)
- Bohn Gass (PT)
- Fernanda Melchionna (PSOL)
- Heitor Schuch (PSB)
- Henrique Fontana (PT)
- Marcon (PT)
- Maria do Rosário (PT)
- Paulo Pimenta (PT)
- Pompeo de Mattos (PDT)
Ausentes
- Daniel Trzeciak (PSDB)
- Paulo Caleffi (PSD)
- Pedro Westphalen (PP)
Veja algumas mudanças aprovadas na Câmara:
- Apesar de a Constituição chamar esses produtos de "agrotóxicos", o relator muda o termo, na lei, para "pesticidas".
- Quando usados em florestas e em ambientes hídricos, os agrotóxicos passam a ser chamados pelo projeto de "produtos de controle ambiental", e seu registro caberá ao Ibama.
- O prazo máximo para o registro varia de 30 dias (para pesquisa, por exemplo) a dois anos (produto novo ou matéria-prima nova).
- Atualmente, devido à complexidade da análise dos riscos e à falta de testes em humanos, os pedidos podem demorar cerca de sete anos para terem um parecer.
- Caso o pedido de registro não tenha parecer conclusivo expedido no prazo, o órgão será obrigado a conceder um registro temporário (RT) para agrotóxico novo ou uma autorização temporária (AT) para aplicação de um produto existente em outra cultura para a qual não foi inicialmente indicado.
- Para isso, basta que o produto em questão seja usado em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que congrega 37 nações com diferentes níveis de exigências sobre o assunto.
- Centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise desses produtos para uso agropecuário.