Na tarde de 16 de fevereiro, terça-feira de Carnaval, vibrou o celular de um membro do Comitê Científico Covid-19 do governo do Rio Grande do Sul. Quatro dias antes, havia ocorrido aumento de 32% nas hospitalizações e 16% nos óbitos, mas a mensagem não trazia números. Era o relato de um médico, assustado com o súbito surgimento de novos pacientes.
O desabafo informal ganharia contornos oficiais dias depois, quando a mais dramática face da pandemia tingiu de preto todo mapa de distanciamento controlado, levou hospitais à beira do colapso e pressionou o governador Eduardo Leite. Enquanto a comunidade médica cobrava restrições severas à mobilidade social, empresários e prefeitos exigiam manutenção da atividade econômica.
A tensão inaugural residia na cogestão. Estipulada em agosto, ela permite aos prefeitos descer um degrau na escala de cor das bandeiras, amainando critérios de isolamento. Na prática, transformou o mapa de risco em mera referência, sobretudo quando não se confirmou a explosão de casos após as festas de fim de ano. No pós-Carnaval, em quatro dias a situação desandou.
Na sexta-feira (19), enquanto o comitê de dados exibia ao governador 11 regiões sob bandeira preta e 10 sob vermelha, o comitê científico elencava sugestões de aperto à quarentena, inclusive com distribuição de máscaras à população. Leite passou parte da tarde discutindo uma reação com o gabinete de crise e no início da noite surgiu numa live com olheiras profundas e semblante preocupado. Diante de um inédito mapa rubro-negro, anunciou a suspensão geral de qualquer atividade das 22h às 5h.
– É o pior momento que enfrentamos – resumiu.
Foi um susto generalizado, mas ainda assim prefeitos de 10 regiões recorreram. No comitê científico, o temor era uma reunião marcada para a segunda-feira (22), quando o governador discutiria o futuro da cogestão. Preocupado com um recuo iminente, o grupo emitiu duas notas oficiais no final de semana e viu proliferar apelos no canal de WhatsApp no qual mais de 60 especialistas haviam trocado até então 21.320 mensagens.
– Nós sabíamos que a situação iria piorar e queríamos a suspensão da cogestão – diz a médica Lucia Pellanda, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde (UFCSPA).
No Palácio Piratini, as pressões vinham de todos os lados. Donos de academias faziam barulho na Praça da Matriz, pedindo enquadramento como setor essencial, enquanto entidades empresariais buscavam apoio em interlocutores políticos. Na Assembleia Legislativa, as audiências foram apelidadas de sessão de terapia, com os dirigentes desfiando seus dramas diante de deputados impotentes ante a lotação das UTIs. Os empresários compreendiam a gravidade do cenário, mas também ressaltavam o risco de calamidade econômica, com quebradeira e desemprego. Apesar do entendimento tácito de que o panorama era grave, ninguém deixou de marcar posição. Um dos mais acionados no governo era o chefe da Casa Civil, Artur Lemos. Cordato, ele recebia todas as demandas, mas com pouca margem para negociação.
– Os empresários dizem não ter culpa pelo aumento da transmissão, mas não estamos em busca de culpados. É uma situação crítica e todo mundo sabe que a única coisa que pode frear o contágio é a diminuição na circulação de pessoas – argumenta.
Depois de um fim de semana insone, Leite reuniu na manhã de segunda-feira (22) o conselho ampliado, colegiado que abriga representantes dos poderes, dos empresários, de entidades da sociedade civil e da saúde. Ouviu reclamações veementes do setor de restaurantes e mais uma vez apelos dos médicos pelo fim da cogestão. À tarde, na audiência com os prefeitos, pela primeira vez abriu a transmissão à imprensa. Estava disposto a negociar, mas queria deixar claro quem advogava pela flexibilização.
A vitrine não intimidou os prefeitos e Leite acabou cedendo. O anúncio de que a proibição das atividades agora seria das 20h às 5h soou como paliativo para uma comunidade médica exaurida e desanimada. Mesmo frustrado, o comitê científico voltou à carga. Em reuniões diárias, alertava para a necessidade urgente de novas medidas de restrição ante a lotação crescente dos hospitais e um morticínio que alcançava três em cada quatro pacientes em UTI.
A reação também era forte. Ofendidos por um documento em que o comitê relatava o aumento da transmissão em festas e eventos, empresários do setor emitiram nota de repúdio e pediam respeito. Coordenador do comitê, cabia ao secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luís Lamb, mediar as tensões.
– O comitê jamais quis culpar o setor de eventos, mas no momento atual a classe médica clama pela preservação da vida – afirma Lamb.
Na quarta-feira (24), prenunciando um mapa completamente preto, Lamb e a secretária da Saúde, Arita Bergmann, fizeram um relato cru da situação ao gabinete de crise. Leite decidiu suspender a cogestão e escalou Arita para dar um choque de realidade na reunião com os prefeitos marcada para o dia seguinte. A secretária abriu o encontro citando aumento de 206% nas internações por covid-19 e a necessidade intransponível de 60 novos leitos de UTI por dia.
– Estamos apavorados – admitiu Arita, pouco antes de o governador anunciar a suspensão da cogestão.
Nem mesmo a presença do chefe do Ministério Público, Fabiano Dallazen, garantindo rigor nos casos de desobediência, reduziu o tom das reclamações. De nada adiantou. Pouco depois, Leite antecipou a divulgação do mapa de distanciamento controlado, com as 21 regiões sob alerta máximo, e revogou qualquer mecanismo de flexibilização dos protocolos. Às 22h, exausto e ainda sem almoçar, se recolheu em silêncio na ala residencial do Piratini. Sentado no sofá com Chica e Bento, seus cães de estimação, dispensou também o jantar e pediu para diminuir a luz.
O novo mapa divulgado nesta sexta-feira (5) permanece todo preto, coloração predominante por pelo menos mais duas semanas. Com atividade econômica reduzida e sérios problemas de caixa, entidades empresariais pedem agora leve suavização dos protocolos ou diluição do prazo de pagamento de ICMS. No fim da tarde, o governo determinou à Fazenda que estude possibilidade de atenuar o calendário dos impostos e proibiu supermercados de venderem, presencialmente, itens considerados supérfluos - basicamente, tudo que não é higiene, alimentação e limpeza.