Instituição que mais saiu empoderada da Constituinte de 1988, com ampliação de atribuições e independência jurídica, administrativa e financeira, o Ministério Público (MP) brasileiro enfrenta momento delicado, cujo produto é o atual racha que atinge a corporação e levanta questionamentos sobre o futuro.
A face mais visível da crise tem, de um lado, procuradores das forças-tarefas da Lava-Jato, sobretudo de Curitiba e de São Paulo, acusando possíveis tentativas de cerceamento de investigações por parte do comando nacional do Ministério Público. Só nesta semana, o procurador Deltan Dallagnol, que capitaneou seus pares na era dourada da Lava-Jato, deixou o comando da força-tarefa no Paraná.
Embora tenha alegado questões familiares, Dallagnol e o procurador-geral da República, Augusto Aras, estavam em rota de colisão há meses. Em São Paulo, os procuradores da força-tarefa renunciaram coletivamente, justificando a medida por supostos vetos a investigações e "incompatibilidades insolúveis" com a procuradora Viviane Martinez, chefe do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo e quadro de confiança de Aras.
No outro vértice da batalha, Aras está promovendo mudanças no MPF, indicando centralização de inquéritos de impacto e maior necessidade de os procuradores prestarem contas sobre o ofício. Investigadores apontam interferência no trabalho, enquanto Aras diz que a Lava-Jato curitibana é uma "caixa de segredos". No meio da briga, com acusações mútuas de contaminação por interesses políticos, reside a credibilidade, a imagem e o futuro do MPF junto à sociedade.
— Há uma luta fratricida dentro da instituição. Temo muitas coisas para o futuro. Fui um dos grandes lutadores pelo poder de investigação do MP para derrubar a PEC-37 (proposta de emenda à constituição que pretendia dar exclusividade à polícia em investigações criminais). Meu temor é que os reflexos políticos de alguns excessos acabem, no futuro, trazendo retaliações políticas. Deltan tem o direito de colocar em risco o nome e a historia do MP? Essa é a questão — diz Lenio Streck, procurador aposentado do MP do Rio Grande do Sul, jurista e professor da Faculdade de Direito da Unisinos.
Ex-procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Sergio Porto igualmente manifesta preocupações com o futuro, mas faz avaliação elogiosa da Lava-Jato, operação que é o cerne da atual crise que aflige a instituição.
— Na minha visão de cidadão, a Operação Lava-Jato contribuiu decisivamente para o aperfeiçoamento da vida em sociedade. Fez um enfrentamento de circunstâncias que não poderiam deixar de ser enfrentadas, e deu uma lição para a sociedade de respeito à ordem jurídica, sob pena de responsabilização. Ainda que se possa atribuir equívocos pontuais sobre a condução da operação como um todo, penso que o saldo é muito positivo. Mas, no momento em que há não uma simples divergência, mas uma quebra, perde a sociedade, perde o MP e perde o Judiciário — avalia Porto.
Ex-prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, na condição de senador, foi subrelator-geral da Assembleia Nacional Constituinte, plenário em que foram discutidas e votadas todas as garantias do MP, inclusive a atuação nos chamados direitos difusos e coletivos: a instituição ganhou poderes de defender os interesses da sociedade em setores como patrimônio cultural e histórico, meio ambiente e urbanismo, entre outros.
— Sem dúvida, foi na Constituinte que tudo mudou completamente. Até então, o MP tinha função limitada à área criminal. A partir dali, passou a atuar em todos os setores, adquirindo importância institucional e social. Como ganhou essa dimensão muito grande, é natural que tenha suas questões internas. É um processo que está se iniciando. Não dá para avançar o sinal sobre o que vai acontecer e qual a pretensão de cada um — avalia Fogaça.
Aras assumiu a PGR por indicação direta do presidente Jair Bolsonaro em outubro de 2019, sem concorrer na eleição que resulta na lista tríplice levada ao governo, e desde então entrou em conflito com as forças-tarefa da Lava-Jato. O estilo do procurador-geral diverge sobretudo do adotado pelo seu antecessor Rodrigo Janot, no cargo entre 2013 e 2017, nos tempos fecundos da Lava-Jato.
Um dos pontos de tensão é a requisição de acesso ao acervo da Lava-Jato de Curitiba. Aras se referiu ao arquivo como “caixa de segredos”, por supostamente conter informações sobre milhares de pessoas. Ele solicitou acesso internamente e de forma irrestrita, sem apontar um documento específico, motivo pelo qual a força-tarefa negou a liberação. Aras chegou a recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), o que foi provisoriamente negado pelo ministro Edson Fachin.
Reestruturação institucional
Além da disputa pelos papéis, Aras pretende criar, dentro da estrutura da PGR, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), órgão ao qual as forças-tarefas como as da Lava-Jato estariam vinculadas.
Para procuradores insatisfeitos, isso seria uma excessiva centralização de poder. Também há, nos bastidores, falta de confiança e dúvidas sobre as relações políticas de Aras, para quem Bolsonaro já sinalizou publicamente com uma possível futura indicação ao STF.
— O PGR (Aras) está desmontando. Está fazendo tudo aquilo que disse que não iria fazer. Está controlando tudo e desmontando — diz um procurador de atuação destacada na Lava-Jato, sob condição de anonimato.
Para esse procurador, uma das consequências dos atos e declarações de Aras será a anulação em série de condenações da Lava-Jato nos tribunais superiores.
Nesta semana, por exemplo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em um processo que contou com informações prestadas oficialmente por Aras, emitiu decisão liminar determinando que processos da Lava-Jato com tramitação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sejam distribuídos ao “procurador natural do caso”, e não diretamente à força-tarefa que atua na Corte.
O conceito do promotor ou procurador natural do caso é uma garantia legal do cidadão e do sistema judiciário. Ela preconiza que um investigador será responsável por determinado tipo de inquérito em todas as ocasiões em que ele surgir, sem escalação de acordo com suas características para investigar uma pessoa ou situação específica. Se o natural do caso estiver assoberbado ou impossibilitado, ele poderá redistribuir para outros colegas.
Na gestão Aras, esse é um tema que se tornou sensível nas forças-tarefa da Lava-Jato, que vêm sofrendo acusações de quebrar a regra do procurador natural, sem respeito às distribuições por sorteio eletrônico, e até supostamente “escolhendo” o que investigar ou não, diante da volúpia de crimes desbaratados e seus desdobramentos nos últimos anos.
A discussão é se, ao suscitar o tema do procurador natural, Aras estará enfraquecendo as forças-tarefas e interferindo na autonomia de trabalho dos membros do MP. Há visões distintas sobre o cenário, que envolve as competências administrativas e as funcionais do órgão.
— A gestão administrativa do MP deve buscar o desempenho eficaz e transparente de suas atribuições constitucionais e, em momento algum, pode representar ameaça à independência funcional de seus membros. A independência funcional faz parte do DNA do MP. Se não for plenamente resguardada aos seus integrantes, seja para os que atuam sós ou para os que atuam em força-tarefa, o MP é desnaturado e a sociedade se torna refém de pessoas poderosas que podem usar sua influência para praticar crimes e tentar permanecer impunes — diz o procurador Roberson Pozzobon, membro da força-tarefa de Lava-Jato em Curitiba.
Próximo de Dallagnol e também crítico das ações de Aras, Pozzobon avalia que o procurador-geral se equivocou ao tentar acessar de forma ampla e irrestrita o banco de dados da operação no Paraná.
— Questões administrativas, essencialmente atividades-meio do MPF, são decididas diariamente em diversas instâncias do MPF. Diferentemente das questões administrativas, o compartilhamento de provas e processos é relacionado à atividade-fim. Centenas de pedidos de compartilhamentos de dados já foram operacionalizados com diversos órgãos e instituições públicas, inclusive com a própria PGR. Todos esses pedidos foram específicos, para instruir processos determinados e observaram requisitos legais — avalia o procurador.
Para ex-integrantes da instituição, Aras não interfere na autonomia funcional, aquela que diz respeito ao rumo que o procurador irá dar aos inquéritos, ao propor as mudanças em curso.
— Aras está mexendo no plano administrativo, não no funcional. Ninguém dirá aos procuradores o que eles devem fazer nos processos. É importante marcar essa linha entre o administrativo e o funcional — opina Streck.
Para Porto, que teve a experiência de comandar o MP gaúcho, o “procurador-geral é o chefe administrativo do MP” e, por isso, “ele tem legitimidade para estar informado e buscar esclarecimentos de dúvidas, ainda que não possa dizer ao procurador o que ele deve fazer”.
— Há limites para a atuação de ambos, do PGR e dos procuradores. Nessa linha, existe uma garantia constitucional que chama juiz ou procurador natural. É um ponto bastante delicado. Uma força-tarefa tem uma designação especial, mas ela seria naturalmente responsável por aquele determinado caso? Se a criação da força-tarefa não é para tratar do caso A ou B, mas do problema como um todo, não há violação do promotor natural. Mas, se é para tratar de situação específica, aí temos uma violação. Num primeiro momento, pode parecer que uma força-tarefa viola a garantia do promotor natural — analisa Porto.
Retrocessos
Para a classe dos advogados, críticos dos métodos e dos altos índices condenatórios da Lava-Jato, as medidas de Aras têm respaldo legal e não irão conferir “retrocessos” na persecução criminal e no combate à impunidade, eventuais consequências que estão sendo apontadas frequentemente por Dallagnol.
— Não penso que haverá desarticulação ou diminuição do trabalho efetivo. A autonomia e a independência são a marca da instituição, que é maior do que as pessoas. O MPF é muito maior do que as forças-tarefas, que devem ser pontuais, não permanentes. O que ocorre é que alguns agentes públicos desejam imunidade geral para todos os seus atos e isso não existe em Estado democrático — pontua o advogado criminalista e professor Alexandre Wunderlich.
Pozzobon se mantém otimista e afasta o vislumbre de que haverá anulações de condenações em massa, o que seria destrutivo para a imagem do MP.
— Desde 2014, investigados, réus e condenados desviam dos fatos e, a partir de teses absurdas, buscam cavar uma saída para a impunidade. Como muitas vezes não conseguem enfrentar as provas cabais dos crimes que praticaram, eles tentam argumentar falhas procedimentais em busca de anulações — diz Pozzobon, salientando que “centenas” de pedidos de anulação já foram rejeitados por “total ausência de fundamento”.