Uma disputa que estava restrita aos tribunais gaúchos ganhou holofotes nos últimos dias e se tornou objeto de discussão nacional e de campanhas em redes sociais. Atendendo parcialmente a pedido do Jornal da Cidade Online (JCO), a juíza Ana Paula Caimi, da 5ª Vara Cível de Passo Fundo, concedeu decisão liminar determinando que o Twitter informe os dados cadastrais e endereço dos aparelhos usados pelos administradores dos perfis Sleeping Giants Brasil e Sleeping Giants Rio Grande do Sul. Os criadores do avatar atuam em anonimato, sob argumentação de que isso é importante por questões de segurança.
As informações dos usuários, decidiu a magistrada, deveriam ser mantidas sob segredo de justiça, sendo vedada qualquer forma de divulgação dos dados. Eles somente poderiam ser usados, frisou, para o caso de o JCO decidir mover processos judiciais contra os autores do Sleeping Giants por se sentir prejudicado ou ferido em sua honra.
Embora tenha se tornado de conhecimento público recentemente, a liminar judicial foi proferida em 27 de maio. O Twitter recorreu à segunda instância com um agravo de instrumento, mas a decisão inicial foi mantida pelo desembargador Gelson Rolim Stocker. Até o momento, a rede social, que não comenta os fatos, descumpriu o despacho e não repassou as informações determinadas. Na primeira instância, o caso aguarda sentença de mérito e a juíza fixou, na liminar, multa de R$ 50 mil para eventuais inobservâncias das determinações.
O Sleeping Giants Brasil entrou no ar no Twitter em maio de 2020, inspirado em iniciativa semelhante que surgiu nos Estados Unidos. O perfil é dedicado a alertar empresas que estão expondo suas marcas, mediante anúncios automáticos, em sites destinados a espalhar desinformação e fake news. Com a ajuda de seguidores, o Sleeping Giants faz postagens denunciando que determinada marca está com anúncios programáticos - automatizados e comandados por algoritmos, por vezes sem o conhecimento do anunciante - em uma página acusada de propagar fake news e discursos de ódio. As postagens geram repercussão e diversas empresas bloqueiam esses sites, que deixam de receber os anúncios automáticos e são descapitalizados.
O JCO, cujo endereço é registrado na cidade gaúcha de Passo Fundo, sentiu-se prejudicado pela atuação do Sleeping Giants. Em mais de uma ocasião, o perfil conseguiu desmonetizar a página, simpática ao presidente Jair Bolsonaro.
O JCO ingressou com ação judicial argumentando que o perfil se aproveitava do anonimato para promover “linchamento moral público, constrangendo anunciantes do demandante (...), tudo a fim de desidratar financeiramente o jornal”.
A página, que pertence a José Pinheiro Tolentino Filho, acusou o Sleeping Giants de praticar “discurso de ódio” e justificou ter sofrido “perda de diversos anunciantes por intermédio de reclamações diretas com as marcas”.
Na decisão liminar, a magistrada entendeu que os dados cadastrais e endereços de IP dos dois perfis deveriam ser fornecidos com base no artigo 5º da Constituição: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Ela indicou que é preciso assegurar o direito de serem movidas ações judiciais caso uma parte considere-se prejudicada pela outra. As informações não poderiam ser usadas para outros fins.
“Nesse sentido, resta evidente que as publicações são feitas em perfil gerenciado por um ou mais usuários não identificados, de forma que obstaculiza a parte autora demandar diretamente contra os autores das postagens que reputa difamatórias à sua honra”, despachou a juíza.
A magistrada não relatou condutas ilícitas por parte do Sleeping Giants Brasil e negou outros dois pedidos do JCO que tinham o objetivo de excluir os perfis do Twitter e apagar mensagens já postadas.
O entendimento foi de que as publicações do Sleeping Giants estão abrigadas pelas liberdades democráticas, sem abuso de direitos. No despacho, a juíza registrou que não era possível reportar como “inverídicas” as publicações dos perfis contra o JCO. Ela lembrou que o jornal é alvo de investigação na CPI das Fake News.
“Não vislumbro abuso do direito fundamental à liberdade de expressão pelos perfis cuja exclusão o autor requer, uma vez que não se pode indicar a inveracidade das postagens, especialmente diante do fato de que a atuação do demandante (JCO) e seu sócio foi objeto de pedido de inclusão na investigação da comissão parlamentar de inquérito, denominada CPI das Fake News”, diz trecho da decisão.
Foi destacado que, de acordo com as cortes superiores de Justiça, é recomendável garantir prevalência “à liberdade de informação e de crítica”, salvo quando for “violado o dever ético da veracidade do discurso”.
“Nessa linha de raciocínio, havendo dúvida sobre a veracidade das postagens, ao menos em sede liminar, deve-se privilegiar a liberdade de expressão dos perfis apontados pelo autor”, escreveu a juíza.
O Sleeping Giants Brasil, embora seja o objeto da discussão, não é parte direta da ação judicial. No processo, os únicos envolvidos são o JCO, como autor, e o Twitter, na condição de demandado. O perfil criticou a decisão da juíza de Passo Fundo.
“Nosso papel é mostrar para as empresas quando suas marcas estão colaborando com conteúdo falso ou odioso, para que elas possam decidir se seguirão financiando a articulação do ódio e notícias fraudulentas, ou não. E isso não é ilegal. Em defesa da privacidade dos brasileiros, para que ninguém tenha seu sigilo violado sem ter cometido ato ilícito nenhum e corra riscos de perseguição física ou virtual”, escreveu o Sleeping Giants, no Twitter.
A repercussão do caso, que gerou críticas à decisão judicial, motivou a divulgação de nota oficial pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris).
“A decisão da magistrada (...) não determinou em juízo liminar a exclusão do perfil ou das postagens, de forma a garantir a liberdade de expressão, mas deferiu a identificação por ser vedado o anonimato. (...) Aceita-se a crítica, mas a ampliação da interpretação do alcance da decisão, que não a de assegurar a quem se sente lesado o direito de conhecer os responsáveis pelas postagens, é politizar a questão e não pode ser aceita pelo Judiciário”, manifestou a entidade.